INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 280 - Março/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Crimes sexuais: visão interdisciplinar

Autora: Rafaela Caldeira Gonçalves

Apenas a partir do século XX, no campo das Ciências Humanas, entre elas a Jurídica, foi reconhecida a necessidade de conciliação entre a racionalidade científica, método empregado nas Ciências Naturais e durante muito tempo desta copiado, e a interdisciplinaridade, compreendida como uma predisposição para o encontro entre diferentes pontos de vista relativamente ao objeto a ser conhecido e à transformação criativa da realidade.

Tal mudança de postura, no campo do Direito, tem razão na percepção sobre a insuficiência das respostas jurídicas como meios eficazes de solução e contensão de conflitos, bem como na promoção de valores como justiça e dignidade humana, em especial após os horrores da Segunda Guerra Mundial.

É nesse contexto, portanto, que se pretende ressaltar que a postura interdisciplinar também deve ser exercida no campo jurídico, no sentido de se promover um alargamento de sua lógica para abranger outros processos de conhecimento que correspondam à vida real dessa ciência, em nítida preocupação com a eficácia de seu trabalho, mais do que sua validade. Esse era o entendimento sustentado pelo jusfilósofo Luis Recaséns-Siches, ao defender o papel criador do juiz na produção do Direito, tendo pregado em suas obras a necessidade de que a atividade jurisdicional seja permeada pela influência de outras ciências.

Tecidas tais considerações, o que se propõe é analisar a imprescindibilidade da intersecção do Direito com outras ciências, na produção da prova nos crimes sexuais, para que o que prevaleça seja realmente o ideal de Justiça tanto no cuidado a ser dispensado à vítima quanto na preocupação no que se refere à busca da verdade, tão urgente quando da aplicação do Direito Penal.

A primeira grande dificuldade nesse tocante diz respeito ao fato de serem tais delitos sempre cometidos às escuras, sem que haja testemunhas. A esse aspecto soma-se a frequente ausência de vestígios, detectáveis por prova pericial, observado o decurso do tempo havido entre o abuso e a narrativa da vítima à polícia.

Mais delicadas são essas circunstâncias quando tais infrações se dão no contexto intrafamiliar, visto que, como menciona Hannah Arendt, o direito a essa convivência é, antes de tudo, um direito que integra a condição humana.([1] ) A inclusão da convivência familiar entre os direitos fundamentais se deve ao fato de ser instrumento essencial na formação de um ego maduro, capaz de discriminar a realidade, pensar sobre ela e, a partir de sua capacidade de antecipação, analisar os possíveis caminhos a serem escolhidos, até assumir por opção e com responsabilidade a ação a ser realizada. Desse modo, quando o exercício dessa convivência é de alguma forma comprometido, em especial em função de condutas abusivas de alguns de seus integrantes, muitas são as consequências, que vão além de danos físicos e, em especial nas vítimas infantes, as atingem de maneira indelével.

Assim, a inexistência de vestígios físicos, aliada à falta de testemunhas presenciais, acaba por determinar a valorização da palavra da vítima, favorecendo a sua exposição a inúmeros depoimentos no afã de produzir a prova e possibilitar a condenação do acusado.

Nesse panorama, se mostra de profunda importância a intersecção do campo do Direito com a Saúde Mental e a Psicologia, para a compreensão das consequências desse fenômeno que é a violência praticada por aqueles que têm o dever de proteger e de cuidar, em especial no que se refere às crianças e aos adolescentes, quanto à implicação de tais atos em seu desenvolvimento social e em seu aparelho psíquico.

Apenas recentemente o sistema judicial se deu conta da revitimização sofrida por quem tem de narrar por inúmeras vezes: na polícia, na perícia médica, no atendimento por profissionais técnicos da Justiça, em atendimentos psicológicos e perante o juiz na audiência, as violências sofridas. A essa revitimização soma-se a obrigatoriedade de sua oitiva no processo criminal, atribuindo a ela um protagonismo na colheita de elementos de prova.

Fato é que, enquanto as vítimas infantes têm a dificuldade de expressar os abusos sofridos, a criança mais velha pode ter a capacidade verbal de relatá-los, mas pode ser relutante em razão do medo de represálias, culpa associada com o ato, ou medo da dissolução da família, o que torna a instrução do processo criminal ainda mais sensível e complexa. É certo que as oitivas se fazem sempre acompanhadas de algum parente, embora muitas vezes este fique perturbado durante as audiências, transmitindo às crianças mensagem direta ou indireta de não revelar.

Ademais, a violência sexual traz no seu âmago a negação ou a síndrome do segredo que envolve todo o desenrolar do processo de abuso sexual intrafamiliar, tanto nas etapas em que o fato não foi ainda identificado, podendo durar vários anos, acompanhado de frequentes ameaças, como nas fases que se desenvolvem junto aos Sistemas de Saúde ou Justiça, que não estão preparados para lidar com tal tipo de síndrome, sem impactar ainda mais o emocional da vítima. Outrossim, ouvi-la no intento de elevar os índices de condenação não assegura a credibilidade pretendida; pelo contrário, a expõe à nova forma de violência, ao permitir reviver situação traumática, reforçando o dano psíquico. Enquanto a primeira violência foi de origem sexual, a segunda passa a ser psicológica, na medida em que se espera que a materialidade delitiva, que deveria ser produzida por peritos, venha ao bojo dos autos por meio de seu depoimento, sem qualquer respeito às suas condições particulares.

Sabe-se que esse trauma influencia na configuração do aparato neuroendócrino, da arquitetura cerebral, da estruturação permanente da personalidade e dos padrões de relacionamento posteriores, de sorte que as experiências ficam marcadas na herança genética e nos padrões de vínculo, sendo repassadas para a descendência.([2] )

Além disso, não se evita o encontro entre o abusador e a vítima no ambiente forense, circunstância que contribui para reacender o conflito e a ambivalência de seus sentimentos, pois, em muitos casos, nutre forte apego ao abusador, com quem mantém vínculos parentais significativos. Além disso, por si sós, espaços públicos como Fóruns, Delegacias de Polícia, Tribunais, Hospitais para perícias, não são considerados ambientes adequados, em especial para crianças.

Não raro também há uma transferência para a vítima da responsabilidade pelo ocorrido ou pelas consequências da revelação, convencendo-a de que a culpa é sua pela colocação do familiar na cadeia, levando-a a concluir terem os parentes o direito de ficar magoados com ela.

Felizmente, há soluções mais preocupadas com as condições da vítima de violência sexual, em especial a criança, como o Depoimento sem Dano, que consiste na oitiva do menor em uma sala especial, por psicólogos, acompanhados pelo magistrado e pelas partes, cuja interação se dá por meio de intercomunicadores com os primeiros, permitindo que o juiz formule perguntas aos técnicos, que as farão à criança.

Enquanto essa técnica procedimental não se populariza no Judiciário, a auxiliar o julgador sobre o valor da narrativa da vítima, há a Equipe Técnica Multidisciplinar das Varas de Violência Doméstica, composta por Psicólogos e Assistentes Sociais, cuja função é traçar um panorama da família. Tal trabalho técnico tem por escopo avaliar fatores que muitas vezes não são abordados durante a instrução criminal, com a isenção de que dispõem.

Na verdade, nos casos de violência intrafamiliar, os integrantes do sistema de Justiça precisam perceber que apenas uma postura diferenciada e criativa, baseada necessariamente na colaboração de outras ciências, e ainda a ser construída, será capaz de dar respostas aptas a dirimir conflitos dessa natureza.

Já tarda questionamento sobre revisão do Estatuto da Criança e do Adolescente quanto às formas de proceder no que se refere à oitiva de menores, em especial no âmbito da Justiça Criminal, em atenção ao princípio de atendimento ao melhor interesse da criança. Família, sociedade e poder público são responsáveis pela garantia de inúmeros direitos fundamentais às crianças e aos adolescentes. Conciliar o direito à convivência familiar com o direito ao respeito e à dignidade de que são detentores seus integrantes, em especial as crianças, quando a violência sexual aflora, constitui tarefa desafiadora que somente com uma postura interdisciplinar, dotada de diálogo constante e dialético com outras ciências, se pode obter.

Referências bibliográficas

Azambuja, Maria Regina Fay de. Violência sexual intrafamiliar: interfaces com a convivência familiar, oitiva da criança e a prova da materialidade. RT, São Paulo: Ed. RT, v. 852, 2006.

Martins-Costa, Judith. Pessoa, personalidade e dignidade (ensaio de uma qualificação). 2003. Tese (Livre-docência em Direito Civil) –Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo.

Pisa, Osnilda; Stein, Lilian Milnitsky. Abuso sexual e a palavra da criança vítima: pesquisa científica e a intervenção legal. RT, São Paulo Ed. RT, v. 857, 2007.

Siches-Recaséns, Luis. Actes du Congrès Mondial de Philosophie du Droit et de Philosophie Sociale – La Logique Matérielle du Raisonnement Juridique. Belgique, 1971.

Silveira, Renato de Mello Jorge. Crimes sexuais: bases críticas para a reforma do direito penal sexual. São Paulo: Quartier Latin, 2008.

Rafaela Caldeira Gonçalves
Juíza de Direito do Tribunal de Justiça de Estado de São Paulo.
Mestranda em Direitos Humanos na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

Notas

[1] Arendt, Hannah. A condição humana. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. p. 17.

[2] Azambuja, Maria Regina Fay de. Violência sexual intrafamiliar: é possível proteger a criança? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 125.



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