INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 280 - Março/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

A vedação legal e o duplo grau de jurisdição no procedimento do júri

Autora: Cristina Emy Yokaichiya

O duplo grau de jurisdição no procedimento do júri possui peculiaridades com vistas a respeitar a soberania dos vereditos, assegurada constitucionalmente no art. 5.º, XXXVIII, da CF. Logo, somente se admite apelação da decisão do Conselho de Sentença com base no rol taxativo do art. 593, III, do CPP.([1] )

Diferentemente do procedimento criminal ordinário, o recurso de apelação da decisão dos jurados não gera alteração da sentença pelo Tribunal ad quem (salvo se a questão for meramente de dosimetria da pena ou de equívoco do juiz presidente no momento de sentenciar), mas submete o acusado a novo julgamento perante o Tribunal do Júri.

No momento da interposição e nas razões de recurso, faz-se necessário indicar em qual das alíneas do referido art. 593 se fundamenta a indignação, já que os recursos de apelação no Tribunal do Júri são vinculados.([2] ) Observa-se, contudo, que o art. 593, § 3.º, última parte, do CPP, prevê a impossibilidade de uma segunda apelação lastreada na alínea d,referente a julgamento manifestamente contrário à prova dos autos.([3] )

Isso quer dizer que, se um acusado foi julgado perante os jurados e houve um recurso, de qualquer das partes, com a fundamentação na alínea d, caso seja submetido a novo júri por determinação do órgão ad quem, há vedação legal para interposição de outro recurso com fundamento na mesma alínea.

Na hipótese de um homicídio, se o acusado é condenado com todas as qualificadoras no primeiro júri e a defesa apela diante da decisão manifestamente contrária à prova dos autos, caso o réu seja condenado ou absolvido no segundo júri, as partes não podem mais impugnar a sentença com fulcro na alínea d.

Existem situações, porém, em que a vedação legal do art. 593, § 3.º, do CPP pode gerar indevida limitação ao duplo grau de jurisdição.

Quando o acusado é absolvido no júri, os juízes populares limitam-se a analisar autoria, materialidade delitiva e teses defensivas de absolvição.([4] ) Assim, os demais quesitos relacionados a qualificadoras, ou a outras circunstâncias, tais como privilégio, inimputabilidade relativa ou desclassificação, restam prejudicados, nos termos do art. 490, parágrafo único, do CPP, visto que tais quesitos sequer são submetidos a votação.

Caso haja recurso pela acusação,([5] ) e o Tribunal ad quem entenda que o réu deva ser submetido a novo júri por força do acolhimento de apelação com base no art. 593, III, d, do CPP, há de se assegurar o duplo grau de jurisdição ao condenado – em segundo júri – com base na mesma alínea d em relação a outras circunstâncias que não tenham sido abordadas no primeiro recurso, afastando-se a previsão do art. 593, § 3.º, do CPP.

As razões de um primeiro recurso contra a absolvição limitado a contestar a materialidade, a autoria e as teses defensivas não podem, por certo, abordar as qualificadoras e outras circunstâncias, uma vez que não foram apresentadas e julgadas pelo Conselho de Sentença. Assim, a decisão do Tribunal de Justiça a respeito da apelação não verifica, por exemplo, se as qualificadoras são ou não manifestamente contrárias à prova dos autos; versa, tão somente, sobre os primeiros quesitos votados, determinando, caso dê razão à acusação, a realização de novo júri.

Não é aplicável a previsão legal do art. 593, § 3.º, do CPP nessa situação. Primeiro, porque significaria supressão do duplo grau de jurisdição e, depois, porque contrariaria a interpretação constitucional da expressão “pelo mesmo motivo” presente em tal dispositivo legal.

Em outros termos, para a garantia do duplo grau de jurisdição, a defesa deve poder apelar em relação às qualificadoras do crime de homicídio ou outras circunstâncias que não tenham sido abordadas no primeiro recurso, se manifestamente contrárias às provas dos autos. A vedação legal para a apelação limita-se ao que efetivamente já foi objeto de revisão pelo órgão ad quem.

Há de se ressaltar que a segunda apelação pela defesa não pode versar sobre o mesmo motivo da apelação anterior; se esta focaliza a absolvição, em momento algum discute elementos como as qualificadoras do homicídio. Ou seja, a análise sobre todos os elementos não decididos no Conselho de Sentença responsável pela primeira absolvição nunca foi submetida ao duplo grau de jurisdição. O mesmo ocorre se houver uma condenação anterior, com recurso da defesa, e, posteriormente, uma nova condenação mais ampla, com elementos anteriormente não apreciados em segunda instância.

A interpretação constitucional de “pelo mesmo motivo” presente no art. 593, III, d, do CPP exige, pois, que a expressão se refira aos motivos da apelação (e não à alínea d do artigo do CPP). Fosse a expressão cingida à contrariedade manifesta à prova dos autos, estaria admitida a imposição de pena sem possibilidade de revisão jurisdicional, em afronta manifesta à Constituição Federal, que reconhece “a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei”, assegurada “a plenitude de defesa”, nos termos do art. 5.º, XXXVIII, a.

A vedação do § 3.º existe porque é ilógico incitar o Tribunal de Justiça a se manifestar em sentido contrário a posicionamento anterior em um mesmo caso. Não irá o órgão ad quem decidir que as provas são manifestamente contrárias à condenação, quando antes julgou que eram contrárias à absolvição.([6] )

Para que fique claro, o raciocínio supraexposto não pode ser aplicado ao caso do segundo recurso fundamentado no art. 593, III, d, do CPP, quando o primeiro recurso voltou-se contra uma decisão absolutória, por exemplo, visto que este segundo recurso não pleiteia, nem discute, no sentido estrito, a absolvição do acusado – questão decidida e redecidida pelos jurados soberanos, imutável nos termos do § 3.º do art. 593 do CPP. A segunda apelação restringe-se à apreciação das qualificadoras ou de outras circunstâncias que não tenham sido abordadas no primeiro recurso, desde que manifestamente contrária à prova dos autos. Ou seja, o recurso de apelação fundado no art. 593, III, d, do CPP pode ser utilizado uma única vez em relação a cada temática.

O não conhecimento da apelação em relação a um tópico abordado uma única vez pelo Tribunal do Júri representaria violação ao duplo grau de jurisdição, afrontando diretamente a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), ratificada pelo Brasil e internalizada no ordenamento pátrio por meio do Dec. 678, de 06.11.1992.([7] )

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, inclusive, no caso Mohamed vs. Argentina,([8] ) reconheceu o direito ao duplo grau de jurisdição quando sobrevier condenação oriunda de decisão que revoga sentença absolutória, com a possibilidade de a pessoa acusada ter acesso a um recurso amplo e aprofundado (que permita revisar fatos e provas, e não apenas o direito aplicado, por meio de recursos especiais e extraordinários).

Assim, justamente para que se reconheça a soberania dos vereditos, certo é que o sistema de justiça precisa assegurar a “plenitude de defesa”, não tolerando ilegalidades e injustiças. Por esse motivo, admite-se, inclusive, a utilização da revisão criminal para os casos de decisão condenatória oriunda do Tribunal do Júri.([9] )

Não faria sentido admitir revisão criminal para as decisões condenatórias transitadas em julgado provenientes do Tribunal do Júri e não considerar, por força da soberania dos vereditos, a apreciação, em sede de apelação, de elementos jamais abordados em segunda instância.

Em síntese, a previsão do art. 593, III, d, do CPP, analisada à luz da Constituição Federal e dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, admite a reanálise da decisão do Conselho de Sentença pelo tribunal ad quem quando esta não encontra amparo na prova objetivamente produzida nos autos, ainda que já tenha havido acolhimento de apelação fundamentada no mesmo dispositivo – desde que a primeira apelação não tenha abordado a questão visada pela segunda apelação. Trata-se de exceção ao dogma da soberania das decisões do júri, quando há inadequação da decisão em relação ao contexto probatório.

Cristina Emy Yokaichiya
Mestrado concluído na Faculdade de Direito de USP.
Defensora Pública.

Notas

[1] “Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias: (...) III – das decisões do Tribunal do Júri, quando: a) ocorrer nulidade posterior à pronúncia; b) for a sentença do juiz-presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados; c) houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança; d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos”.

[2] Somente é possível recorrer se a hipótese de recurso se amolda a alguma das alíneas do inc. III do art. 593 do CPP. Caso contrário, a decisão não é passível de apelação.

[3] “Art. 593. (...) § 3.º Se a apelação se fundar no n.º III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação”.

[4] A ordem de votação e os quesitos a serem apresentados aos jurados estão previstos nos arts. 482 a 491 do CPP.

[5] O posicionamento da autora é que, caso o acusado seja absolvido no quesito geral de absolvição, previsto no art. 483, III, não há possiblidade de recurso com fundamento na alínea d do art. 593 do CPP, conforme recente decisão no STF, em medida cautelar no recurso ordinário em habeas corpus (RHC 117.076/DF, DJ 16.09.2013).

[6] Lopes Jr., Aury. Direito processual penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1.235.

[7] Art. 8.2.h da CADH.

[8] Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Mohamed vs. Argentina, Sentença de 23.11.2012.

[9] STJ, REsp 964.978/SP (2007/0149368-9), rel. Min. Laurita Vaz.



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