INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 280 - Março/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Tributo a elas: considerações sobre a produção intelectual de mulheres negras

Autora: Haydée Paixão Fiorino

Destacamos a importância da articulação dos referenciais das mulheres negras, sob a perspectiva do feminismo negro, já que durante toda a história da produção de conhecimento acadêmico sua participação é – quase sempre – invalidada pela metodologia tradicional da academia eurocêntrica.

Sendo assim, as contribuições da luta de mulheres negras para a construção do chamado “Pensamento Feminista Negro”([1] ) – que difere do feminismo clássico ao enfatizar a opressão do racismo na vida das mulheres – trazem, a priori, questionamentos sobre as raízes individualistas e eurocêntricas do feminismo, ao focar-se no esforço de identificar as questões centrais do mundo a partir da ótica das mulheres negras.

Patrícia Collins (2002), apontada como uma das grandes referências do feminismo negro norte-americano, em seu livro Black feminist thought ou Pensamento feminista negro, confere ênfase à resistência e luta históricas das mulheres negras, visualizando a natureza interligada entre raça, gênero e classe. Destaca o combate aos estereótipos por meio da autodefinição a partir da produção intelectual negra, ao valorizar as atuações enquanto mães, professoras e líderes comunitárias. Para essa autora, o ponto de vista das mulheres negras é definido com base na opressão vivenciada por elas, ou seja, a partir do lugar que ocupam na estrutura social.

Enquanto intelectual feminista negra contemporânea, reforça o papel imprescindível da construção de “espaços seguros” para as mulheres negras, no tocante à sua autodefinição, independente de “imagens controladoras” de sua condição, como maneira de resistir à ideologia hegemônica reproduzida pelas escolas, pelas mídias impressas e pelos meios de comunicação, agências governamentais e outras instituições do ramo da informação.

Realmente, é repulsiva a formulação discursiva sobre a imagem da mulher negra que a encerra tanto como a criatura ultrassexual da propaganda quanto como a figura da “mãe preta”, aquela escrava/empregada que cuida de todos, que serve a todos. Esse discurso atua para tornar o domínio intelectual um lugar proibido para as negras, já que, mais do que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade – ao lado, talvez, das mulheres indígenas –, elas têm sido consideradas “só corpo, sem mente”.

Analisando fatos históricos, encontramos registros de que muitas famílias brasileiras nos séculos XVI, XVII e XVIII viviam da exploração sexual de duas ou três escravizadas, que eram obrigadas a trazer uma determinada quantia de dinheiro todos os dias. Exploradas como prostitutas, a maioria dessas escravas eram jovens, entre 10 e 15 anos. Segundo Hédio Silva Júnior (2001), essa prática era corroborada por entendimentos dos Tribunais brasileiros, pois o direito de propriedade sobre o escravizado abrangia o direito dos “senhores de escravos” de desempenharem o papel de cafetões e alcoviteiros.

O Código Criminal do Império de 1830 punia o crime de estupro em seu art. 219 cometido contra “mulher virgem menor de dezessete anos” e não mencionava cor/raça. Entretanto, Lenine Nequete, em seu livro Escravos e Magistrados no Segundo Reinado,([2] ) mostra reiterados julgados dos Tribunais entendendo que as mulheres negras eram consideradas indignas de honra ou reputação, produzindo, assim, uma jurisprudência que absolvia os estupradores dessas mulheres. Por essa razão, a Justiça atuava a favor de integrantes da elite econômica escravocrata, principais autores desse crime, tornando essa prática um perigo constante na vida das escravizadas vítimas de tal violência despudorada consentida pelo Judiciário e sociedade brasileira da época.

Ademais, não nos olvidemos que os arts. 60 e 61 do mesmo Código Criminal previam a aplicação de penas corporais extremamente cruéis e desumanas amplamente impostas aos negros e negras escravizados. Clóvis Moura,([3] ) ao definir as expressões castigo e deformações no corpo, ressalta o caráter vilipendioso e aviltante das práticas punitivistas nesse período – próprias de um projeto genocida – ao realizar, constantemente, mutilações, queimaduras, açoites e até degolações, além das próprias deformações físicas das mãos, pés, cabeça, corpo inteiro e psicológicas, advindas do próprio “exercício profissional” de ser escravizado.

bell hooks,([4] ) em seus estudos, analisava a interação da produção de conhecimento intelectual com a experiência pessoal. Sua contribuição foi essencial para a reflexão sobre temas como: a herança emocional deixada pela escravidão na vida das pessoas negras, a relação das mulheres negras com a academia, o sexismo e o racismo, as teorias feministas e o patriarcado, dentre outros.

Mais que reconhecimento, status ou ascensão social, o trabalho intelectual, para ela, não está dissociado da política cotidiana, e se constitui um verdadeiro instrumento para a luta pela libertação e descolonização mental de todas as pessoas oprimidas e/ou exploradas. Ao partir de sua experiência pessoal para atingir a realidade de outras mulheres negras, eleva suas vidas de objetos a sujeitos, criando uma metodologia empírica e, ao mesmo tempo, um recurso de sobrevivência. A autora trata, ainda, dos dilemas enfrentados pelas mulheres negras que optam pela produção intelectual, como, por exemplo, o “receio de incompetência” diante da falta de endosso público e privado em suas relações com a comunidade e a academia.

Angela Davis, outra intelectual e umas das principais ativistas do movimento negro americano dos anos 1960, também apresentou relevantes contribuições no pensamento feminista negro ao discorrer sobre o funcionamento das esferas da sociedade em face das mulheres negras. Possui uma vasta produção. Preocupou-se em estudar, principalmente, os temas relacionados à resistência das mulheres negras, sua saúde, a importância do blues em suas vidas e o sistema prisional norte-americano, além de incentivar a união do movimento de mulheres negras internacional, visitando o Brasil em diversas ocasiões.

Realizou premente crítica ao que ela chama de “complexo industrial de prisões” nos EUA e a relação das mulheres negras encarceradas com o aumento do tráfico de drogas nos âmbitos nacional e internacional. Inclusive, foi uma das pioneiras a trazer relevantes questionamentos sobre o processo de privatização do complexo de penitenciárias, o enorme investimento e os grandes lucros de empresas transnacionais nesse setor. Enfatiza que a população carcerária dos EUA é negra, seguida por latino-americanos.

De maneira idêntica, no Brasil, se não for vítima da letalidade da agência secundária de criminalização – configurada nas polícias –, poderá o sobrevivente estar muito mais vulnerável a cair na malha penitenciária por meio da prática reiterada pela polícia brasileira de “prende primeiro, investiga depois”. Tal fato revela o uso excessivo e arbitrário da prisão provisória, violando a um só tempo o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, assim como os da ampla defesa e contraditório, presunção de inocência e individualização da pena.

Sem surpresa, são as mulheres negras que suportam as consequências psicológicas e materiais do racismo, do patriarcado, do capitalismo e, ainda, de tantas outras formas de opressão, constituindo a maioria de mulheres mortas em abortos clandestinos; vítimas de violência doméstica, de rejeição sistemática de atendimento no sistema público de saúde, previdência e assistência social. Quando não, choram a perda de entes queridos nos tiros disparados à queima-roupa pela polícia ou grafada por meio da canetada condenatória de juízes contra cidadãos negros. Arcam sozinhas com o prejuízo emocional, espiritual e físico de serem vítimas de mortes violentas, silenciosas e sem testemunhas. Por conseguinte, a produção de conhecimento, para quem vive sob essa realidade, se constrói a partir dessa realidade. Não há outro ponto de partida.

Nesse contexto, permanecem ainda no desconhecido inúmeras intelectuais negras com produções importantíssimas na compreensão do papel das mulheres negras na constituição do país, que, no nosso entender, é premissa fundamental para a luta e a emancipação de todas as mulheres brasileiras. Dentre elas, podemos citar Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Luiza Bairros, Jurema Werneck, Edna Roland, Conceição Evaristo, Cidinha da Silva, dentre tantas preciosidades.

A produção dessas mulheres feministas negras é vasta e percorre um grande número de autoras não esmiuçadas aqui por falta de espaço. Porém, sob o mesmo ponto de vista, estabelecem um eixo articulador entre racismo, machismo e capitalismo, explicitando, assim, o impacto do racismo nas relações de gênero, ótica muitas vezes ignorada pelas feministas brancas e/ou pertencentes de classes abastadas. De fato, percebe-se que tanto as autoras norte-americanas([5] ) quanto as brasileiras passaram a refletir sobre a condição da mulher negra a partir de suas próprias experiências e realidades.

A representação do feminismo negro enquanto epistemologia é expressa pela realidade e experiência próprias dessas mulheres. Não obstante estabeleça uma conexão entre teoria e prática, é rejeitada, sistematicamente, pela produção acadêmica de inclinação masculina, branca e europeia. Defendemos, então, a ideia de experiências concretas utilizadas como critério de significado e de credibilidade para reivindicar uma produção de conhecimento realmente emancipadora e revolucionária.

Referências bibliográficas

Collins, Patricia Hill. Black feminist thought: knowledge, counsciousness, and the politics of empowerment. Second Edition. Routledge, 2002. Disponível em: .

Hooks, Bell. Intelectuais negras. Disponível em: .

Werneck, Jurema; Mendonça, Maisa; White, Evelyn C. O livro da saúde das mulheres negras – nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro: Criola/Pallas, 2000.

Haydée Paixão Fiorino
Graduanda em ciência sociais – USP.
Integrante do Kilombagem, do CPECC-USP e engajada em demandas dos movimentos sociais.
Advogada.

Notas

[1] ( ) O feminismo negro não se confunde com o movimento de mulheres negras. Há aqui uma nuance, uma vez que nem toda mulher negra insere sua produção intelectual ou visualiza sua atuação como mulher através das lentes do feminismo.

[2] ( ) Nequete, Lenine. Escravos e magistrados no Segundo Reinado. Brasília: Fundação Petrônio Portella, 1988.

[3] ( ) Moura, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2013.

[4] ( ) bell hooks, escrito assim mesmo em letras minúsculas por uma reinvindicação da própria autora, é pseudônimo de Glória Jean Watkins. O nome é uma homenagem aos sobrenomes da mãe e da avó.

[5] ( ) Vale mencionar, por fim, outras autoras afro-americanas com contribuições ao Pensamento Feminista Negro, como: Audre Lorde, Alice Walker, Evelyn C. White, Angela Gillians, dentre outras antecessoras e sucessoras.



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