José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
Autoras: Érika Mendes de Carvalho e Daiane Ayumi Kassada
É possível constatar, especialmente nos últimos tempos, grande preocupação com a configuração da responsabilidade penal das pessoas físicas e jurídicas por danos ambientais ocorridos no contexto de atividades empresariais. A expansão da intervenção punitiva – que ganhou fôlego com a criminalização das pessoas jurídicas – vem acompanhada, na atualidade, da incorporação de medidas preventivas de afastamento da responsabilização penal (programa de criminal compliance), da possibilidade de atenuação pela previsão de um programa de governança corporativa ou mesmo da minimização das consequências gravosas com a adoção de um compliance post factum. O programa de criminal compliance consiste basicamente em um conjunto de medidas estabelecidas pela empresa para prevenir práticas delitivas (v.g., crimes ambientais) em decorrência das atividades desenvolvidas pela organização empresarial. É necessária, porém, a designação de um indivíduo que possa fiscalizar o devido cumprimento do mesmo: o compliance officer. Cabe, então, perguntar: o compliance officer pode ocupar posição de garante e ser responsabilizado por um crime omissivo impróprio? A ele podem ser imputados resultados lesivos ao ambiente?
Essa preocupação com a determinação e a delimitação da responsabilidade daquele que atua como compliance officer faz sentido, sobretudo, em razão da reinvenção estrutural e organizativa da atividade empresarial, que passa a assumir programas preventivos orientados a evitar delitos no âmbito da atuação empresarial e/ou a reparar os impactos produzidos por estes.(1)
A adoção de uma teoria formal do dever jurídico (art. 13, § 2.º, do CP), aliada à previsão do art. 2.º da Lei 9.605/1998 (que dispõe que “quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la”), deve impulsionar a doutrina a se posicionar acerca do tema, discutindo o verdadeiro papel do compliance officer e a responsabilização deste como autor ou partícipe de um crime omissivo impróprio no âmbito da atividade empresarial.
Nesse contexto, é preciso advertir que o agasalho de uma perspectiva exclusivamente formal da posição de garante pode comprometer uma delimitação adequada da responsabilidade penal do sujeito, de outro, contudo, tomar por base somente uma diretriz material pode conduzir a um menoscabo da legalidade necessária para assegurar a liberdade do sujeito ante a incidência da intervenção criminalizadora. Diante da possibilidade de atribuição da responsabilidade penal com a mera incidência da condição formal de garante, seria preferível a análise do domínio nos termos propostos por Schünemann,(2) porém, a saber: não como fundamento único para atribuir um resultado a alguém, mas para reforçar ou elidir a responsabilidade penal quando, embora formalmente ocupe a posição de garante, não tenha o sujeito o domínio atual sobre a causa essencial ou sobre o fundamento do resultado. Assim, apenas quando figurar formalmente como garante e tiver o referido domínio será possível promover uma equiparação lógico-objetiva entre ação e omissão.
No que diz respeito ao compliance officer,verifica-se que este, mediante ato de delegação do administrador empresário, assume os deveres de supervisão e de vigilância do foco de perigo oriundo das atividades empresariais,adquirindo, a princípio, o domínio por aquisição voluntária derivada. A responsabilidade do compliance officer dependerá, todavia, das funções e deveres que tenha assumido em termos concretos. Logo, antes de se cogitar a atribuição automática de deveres de garante ao responsável pela fiscalização do cumprimento das normas, técnicas e procedimentos em determinada organização empresarial – traçados, especificamente, no programa de criminal compliance –,deve-se constatar como, de fato, ocorre a configuração material da posição do compliance officer na empresa e quais competências lhe são efetivamente atribuídas.(3)
Infere-se que tal exame trará importantes reflexos para a exclusão de eventual responsabilidade penal do compliance officer por crimes omissivos impróprios ambientais. Com efeito, embora o compliance officer assuma formalmente deveres de fiscalização do cumprimento das medidas preventivas, não possui, em regra, capacidade executiva de evitar o resultado e tampouco possui o domínio atual sobre a fonte de perigo.
Dessa forma, segundo o princípio do domínio, a suposta posição de garante do compliance officer se torna bastante questionável, já que unicamente exerce um poder de fiscalização/controle, mas não influi e nem está inserido no processo produtivo empresarial interno e, por isso, tampouco exerce domínio sobre ele.
Essas considerações se aplicam em parte às informações obtidas pelo compliance officer no cumprimento de medidas de prevenção de riscos no âmbito das atividades empresariais por meio de inspeções e alertas para a eventual ocorrência de determinados perigos. Aqui, concretamente, o compliance officer exerce um domínio informativo(4)e, portanto, possui um dever com conteúdo delimitado: informar a autoridade competente a fim de que esta possa tomar as devidas decisões. Contudo, mesmo nesse cenário não seria cabível imputar-lhe a ocorrência de eventual resultado lesivo, já que em momento algum tinha o domínio sobre a fonte geradora de perigo.
Ante a crise de validade e legitimidade presente nos crimes omissivos como um todo assinalada por Juarez Tavares,(5) cumpre delimitar com cuidado seu âmbito de incidência e afastá-los sempre que – como ocorre em relação aos compliance officers – inexistam bases sólidas que permitam a imputação do resultado e, consequentemente, autorizem a responsabilização penal.
Notas
(1) Sobre a matéria, vide Andrade, Andressa Paula de; Carvalho, Érika Mendes de; Ferreira, Pedro Paulo da Cunha. Criminal compliance ambiental: medidas prévias ao delito e comportamento pós-delitivo positivo corporativo. Revista dos Tribunais, v. 959, set. 2015, p. 209-239.
(2) Acerca do “domínio sobre o fundamento do resultado”, vide, Bernd. Fundamento y límites de los delitos de omisión impropia. Madrid: Marcial Pons, 2009. p. 282 e ss.
(3) Dopico Gómez-Aller, Jacobo. Posición de garante del compliance officer por infracción del “deber de control”: una aproximación tópica. In: Arroyo Zapatero, Luis; Nieto Martín, Adán (dir.). El derecho penal en la era compliance. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2013. p. 177.
(4) Vide, Bernd. El dominio sobre el fundamento del resultado: base lógico-objetiva común para todas las formas de autoría incluyendo el actuar en lugar de otro. Revista de Derecho Penal, Buenos Aires, n. 2, 2005, p. 55-56.
(5) Tavares, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 30.
Érika Mendes de Carvalho
Doutora e Pós-doutora em Direito Penal pela Universidad de Zaragoza.
Professora Associada de Direito Penal na Universidade Estadual de Maringá.
Daiane Ayumi Kassada
Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá.
Pós-graduanda em Ciências Penais pela Universidade Estadual de Maringá.
Advogada criminalista.
IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040