José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
Autora: Priscilla Placha Sá
“Cada passo daqueles pés descalços na planície de Tebas aproxima Antígona de seu destino e põe em movimento a engrenagem da tragédia. A tragédia é o choque entre duas razões, duas verdades, duas lógicas.
Antígona, de Sófocles, é o arquétipo da tragédia. [...]
Ela não é uma mulher como as outras. É filha de Édipo, ‘filha selvagem de um Pai e Rei selvagem’.
Nascida da transgressão, condenada a transgredir.”
(Oliveira, Rosiska Darcy de. Elogio da diferença: o feminino emergente.Rio de Janeiro: Racco, 2012. p. 37.)
1. Uma aldeã. Um caçador
Escrever uma história também por mulheres não significa uma história melhor, mas permitiria emergir aspectos relacionais, da experiência e da visão das mulheres e do feminino fortalecendo e valorizando saberes que foram nublados. A um só tempo se reconheceria a sua exclusão da grande narrativa universal([1] ) e tratar-se-ia da (des)igualdade e da inferioridade do feminino.([2] )
É preciso superar entraves opostos por segmentos feministas([3] ) que – em certa medida – reproduzem o que criticam, como (i) a exclusão de alguns grupos femininos e (ii) a adoção de um modelo binário e dicotômico: isso é dos homens, aquilo é das mulheres.
O olhar e a fala que romperiam o grande e hegemônico novelesco mundial podem ser ilustrados em Confissão da Leoa,([4] ) cujos episódios de uma aldeia de Moçambique, ora narrados por um caçador de leões, ora por uma aldeã, deixam fluir o habitus e as estruturas de pensamento do patriarcado, da heteronormatividade e da misoginia([5] ) e põem em xeque-mate em que mãos, de fato, está o poder da morte: “eis que na humanidade, a superioridade é dada não ao sexo que engendra, e sim ao que mata”.([6] )
A controvérsia, porém, sobre o poder de fala da mulher, do feminino e da inferioridade parece estar situada muito antes de ondas feministas das revoluções burguesas ou de meados do século XX: Antígona – interrogando Creonte sobre o poder excludente do Rei – há muito evidencia a oposição do feminino que o faz ser percebido como crime político.([7] )
2. O patriarcado e a heteronormatividade nas Ciências Penais
As Ciências Penais – situadas entre as “ciências duras” – envolvem Dogmática Jurídico-Penal, Criminologia e Política Criminal e servem como gabarito para refletir se há ou não um sexo que as simboliza.([8] )
Por ironia, o possível nascimento de um sistema punitivo organizado é forjado na perseguição às mulheres-bruxas,([9] ) embora não só a elas. Na Escola Positiva italiana, Cesare Lombroso escreveu La Donna Delincuente, retratando a mulher criminosa, embora dele tenha ficado famoso L’Uomo Delincuente.
Uma mirada breve – numa livraria ou biblioteca – permitiria encontrar, quase que só, livros escritos por homens. Claro que o que está em questão não é a qualidade e a competência de tais obras. Os manuais ou códigos comentados indicados nos programas das faculdades (cujas aulas são ministradas por uma maioria de professores), adquiridos por escritórios de advocacia e usados em gabinetes, são escritos por homens (e lidos por eles, pois ocupam, majoritariamente, os cargos de poder das instituições, em especial, na área criminal). Igualmente, os escritos sobre temas tópicos ou específicos.
Não é novidade, porém, o fato de que o saber em questão está escrito no masculino e por homens; na indústria química ou redes de TV, não seria diverso.
O saber jurídico, ao lado de outros ditos essenciais, por excelência (ou talvez por arrogância), com os significantes do masculino (diga-se, um masculino bem específico), deriva do poder e da inserção no espaço público (tal como na àgora grega, na arena romana e na democracia contemporânea), na formulação da lei e no domínio do mundo. Nas Ciências Penais, quiçá a mais masculina do “mundo do Direito”, isso vem como natural por remeter – tanto no real quanto no simbólico – ao que é viril e forte. O simbólico da Lei, que remete ao pai, bem como o real da prisão, evidenciam esse fato.
Não se trata, porém, de quem escreve, mas – por vezes – do que é escrito. O patriarcado e a heteronormatividade desenham-se, de modo sutil, na parte geral, ao se discutir a legítima defesa da honra, por exemplo.
Na parte especial, o caso do marido que surpreende a esposa adúltera e o amante vem repetido, sobretudo, em “manuais” mais antigos, como exemplo de “homicídio privilegiado pelo domínio de violenta emoção após injusta provocação da vítima”. Ainda que manuais recentes abandonem o “sexo” das pessoas envolvidas, o adultério aparece e lembra a lição de um penalista da primeira metade do século passado que admitia a aplicação da minorante no calor das emoções, mas não sob o manto frio da vingança. A morte da esposa do Coronel Jesuíno (personagem de Jorge Amado, que dizia à mulher: “Deite que vou lhe usar”) seria “emblemática” para a hipótese.
Outro campo – muito óbvio – da dicotomia dos “sexos” é o dos crimes sexuais, no qual os debates (doutrinários e jurisprudenciais) versam sobre o comportamento e a moral sexual da vítima e o seu consentimento para o ato.([10] ) Por curiosidade, em sites que armazenam questões de concursos públicos, a busca para “crimes sexuais” traz enunciados em que há, quase sempre, um nome masculino para o autor e um feminino para a vítima.
Nas delegacias e nos batalhões das polícias militares, até chegar aos fóruns onde estão Poder Judiciário, Ministério Público, Advocacia e Defensoria Pública, os homens também são a imensa maioria, assim como os réus, mesmo que o número de mulheres presas por tráfico de drogas aumente a cada ano.
3. Afinal, o que querem as mulheres?
Discursos sobre ampliar e reconhecer a participação feminina, não raro, vêm acompanhados de argumentos que apenas reproduzem o sexismo, ao justificarem que é necessário “humanizar” tal esfera, como se a violência fosse própria do masculino e a bondade do feminino.([11] ) Borrões sobre o que é natural dos sexos, que, em verdade, é construção cultural ou permanência que transcendeu o Antigo Regime.([12] )
A produção científica das mulheres e do feminino tem marcado posição desde há muito. No âmbito da Dogmática, propõem revisitar o que se compreende como tal, e aparecem em segmentos contemporâneos, como os delitos econômicos; na Criminologia, evidenciam lugar não só em obras adstritas a “gênero”, mas em escritos de viés mais ampliado.
Contudo, o status de referencial teórico e reconhecimento na práxis ainda resta nublado. Parecem mais “autorizadas” ao tratarem do que seria “próprio” do feminino, como violência de gênero, contra criança ou adolescente. Sua atuação nos fóruns e tribunais é percebida em casos em que, não raro, há crime contra mulher ou envolve sua autoria.
A produção de mulheres e do feminino não precisa estar adstrita e ser reconhecida quando e somente se tratar de “questões de gênero”, pois isso implicaria a um só tempo privar os homens e o masculino e limitar às mulheres a escreverem apenas sobre ele.
O fortalecimento, a evidência e a inserção das mulheres e de seus escritos, bem como nas carreiras acadêmicas ou jurídicas, nessa seara, parecem ser capazes de romper com paradigmas dominantes e promover convergências. Embora se saiba que o feminino e o masculino são signos não restritos, respectivamente, às mulheres e aos homens.
Priscilla Placha Sá
Doutora em Direito do Estado pela UFPR.
Professora Adjunta de Direito Penal da PUC-PR e UFPR e do Mestrado em Direitos Humanos e Políticas Públicas da PUC-PR.
Presidente da Comissão de Defesa das Prerrogativas Profissionais da OAB/PR (2016-2018).
Notas
[1] Perrot, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Trad. Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; Heretiér, Françoise. Masculino e feminino I: o pensamento da diferença. Lisboa: Instituto Piaget, 2015.
[2] Oliveira, Rosiska Darcy de. Elogio da diferença: o feminino do emergente. Rio de Janeiro: Racco, 2012. p. 67 e ss.
[3] Embora se saiba complexo tal termo para este artigo, considera-se a proposta de conceituação de Flávia Birolli (Birolli, Flávia. Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática. Vinhedo: Editora Horizonte, 2013. p. 133).
[4] Couto, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[5] Algo similar está em Mulheres de cinza, o primeiro da trilogia As areias do imperador (Couto, Mia. Mulheres de cinzas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015).
[6] Beauvoir, Simone de. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
[7] Oliveira, Rosiska Darcy de. Elogio da diferença: o feminino do emergente. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. p. 37 e ss.
[8] Em abordagem similar: Zaikoski, Daniela. Género y derecho penal: tensiones al interior de sus discursos. Aljaba, Luján, 2016. Disponível em:
[9] Kramer, Heinrich; Sprenger, James. Malleus Maleficarum: o martelo das feiticeiras. 22. ed. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 2011.
[10] Flávia Birolli pondera que esse não é um fenômeno brasileiro e perpassa por quadros mentais que dividem mulheres em castas e não castas ou casos de sexo consentido e sexo forçado (Birolli, Flávia. Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática, p. 106 e ss.)
[11] Musumeci, Barbara Soares; Musumeci, Leonardo. Mulheres policiais: presença feminina na Polícia Militar do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 53 e ss.; 113 e ss.
[12] Hespanha, António Manuel. Imbecillitas: as bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de antigo regime. São Paulo: Annablume, 2010.
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