INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 280 - Março/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Um balanço sobre a implementação das audiências de custódia na cidade do Recife

Autoras: Manuela Abath Valença, Helena Rocha C. de Castro, Marcela Martins Borba e Érica Babini Lapa do Amaral Machado

Em fevereiro de 2015, após um convênio firmado entre o Conselho Nacional de Justiça e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, instaurou-se o projeto de audiência de custódia na capital paulista. Desde então, encetou-se um processo ainda em curso de adoção das audiências em outras cidades brasileiras e, em agosto do mesmo ano, foi a vez do Recife.([1] )

As audiências de custódia são um projeto fundamental para a redução do encarceramento provisório e da violência institucional, uma vez que possibilitam o contato direto do preso em flagrante com um juiz de direito logo após sua prisão. Essa iniciativa também fez com que o Brasil passasse a respeitar a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), segundo a qual qualquer pessoa presa ou detida tem o direito de falar com um juiz imediatamente após o ocorrido.([2] )

Elas são um ato horizontal, informal e dotado de oralidade, avançando em direção às premissas de um processo penal democrático.([3] ) A realização desse ambiente é um ganho para o sistema de justiça criminal brasileiro e poderá proporcionar a tomada de decisões mais responsáveis sobre a decretação da prisão preventiva. Por outro lado, são um espaço em potencial de controle da atividade policial, posto que, ao se analisar o flagrante, dá-se a oportunidade de avaliar as condições a que foi submetido o preso.

Desde novembro de 2015, passamos a fazer um monitoramento dessas audiências em Recife.([4] ) Neste trabalho, abordaremos três impasses que observamos no curso das audiências: a) a manutenção de um padrão de decisão sobre prisão preventiva que se restringe ao aspecto material de acautelamento do meio social (função preventiva da pena); b) o abuso das medidas cautelares alternativas; e c) a ausência de preocupação das organizações envolvidas nas audiências de custódia com os relatos de violência policial. Vejamos cada um deles.

Antônio,([5] ) negro e com 32 anos de idade, foi preso em flagrante pela suposta prática de roubo de um celular, utilizando-se de uma faca, segundo a narrativa dos policiais militares que o prenderam. Na audiência, o autuado informou que não teria usado a faca, mas apenas puxado o celular das mãos da vítima. No auto de prisão em flagrante, não constava o depoimento da vítima. Antônio é primário, portador de bons antecedentes e possui residência fixa. É usuário de crack. Elefoi preso preventivamente na audiência e se somou aos 64% dos presos provisórios que superlotam o sistema carcerário pernambucano.

Diversas pesquisas realizadas no Brasil sobre prisões preventivas apontam para uma persistência em sua utilização como uma medida punitiva e de segurança pública, aplicável, sobretudo, àqueles indivíduos considerados perigosos, e uma ameaça à ordem pública. A medida cautelar perde a sua justificativa processual para servir às finalidades do Direito Penal, funcionando como verdadeira pena antecipada.([6] ) Foi assim com Antônio. Na decisão que decretou a sua prisão encontramos a seguinte fundamentação:

“o flagranteado cometeu o delito evidenciando enorme sanha de ameaçar a pessoa da vítima, consistente em usar arma branca para praticar assalto. Além disso, disse ser viciado em CRACK e que usou todo o seu dinheiro e o dinheiro do irmão para consumir drogas. Ele flagranteado está numa vida totalmente inconseqüente por causa do CRACK e, assim, se solto for, sua inconseqüência de uso de drogas e violência para conseguir manter o vício se voltará contra a sociedade, sendo sua prisão necessária para a garantia da ordem pública”.

Assim, as audiências de custódia, embora se apresentem como uma medida político-criminal de redução do encarceramento provisório,([7] ) pouco poderão alterar os percentuais dos presos sem julgamento no Brasil, se não houver uma mudança na percepção da finalidade da cautelar.

Outro aspecto diz respeito à utilização das medidas cautelares alternativas. O caso de Zélia poderá ilustrar a problemática. Zélia, de 41 anos, negra, solteira, mãe de duas filhas e que passava as festas de fim de ano em Recife, foi presa em um estabelecimento comercial ao tentar furtar uma unidade de queijo do reino, um desodorante e roupas.

A liberdade de Zélia foi concedida, mas a ela foram impostas medidas cautelares de comparecimento bimestral em juízo, proibição de frequentar festas, bares e assemelhados, recolhimento domiciliar noturno, proibição de usar drogas e de ausentar-se da comarca.

Aos indivíduos que vêm sendo liberados na cidade do Recife são aplicadas diversas medidas cautelares, como no caso de Zélia. A imposição dessa pluralidade de restrições fere um pressuposto básico da cautelar que é a adequação da medida às circunstâncias do fato.([8] ) Na verdade, as cautelares alternativas aparecem como um corretivo dado àquele ou àquela que certamente delinquiu, mas não merece o encarceramento provisório.

Por fim, destacamos a potencialidade que têm as audiências de custódia para funcionar como um mecanismo de combate à tortura e à violência institucional.

Essa potencialidade não vem sendo explorada nas audiências que têm acontecido na cidade do Recife. Raras foram as vezes em que vimos o autuado ser questionado acerca de maus-tratos, torturas, agressões ou ameaças ocorridos durante a prisão. Ainda, há sempre um policial militar dentro da sala das audiências, o que, para alguns, pode representar um elemento inibidor.

Durante o período em que acompanhamos as audiências, notamos que uma parte dos autuados apresentava lacerações e machucados bastante visíveis, aferíveis mesmo ao olhar desatento. Uma das agressões mais comuns, e talvez a mais “discreta”, era a que deixava feridas na região dos pulsos, justamente onde ficavam as algemas, e provavelmente resultantes de “puxões”. Não era raro vermos os autuados massageando a área, algumas vezes em carne viva, quando liberados das algemas.

Tal descaso em torno dos relatos de violência policial se mostrou visível em um caso em que vimos o autuado se queixar espontaneamente de ter sido vítima de maus-tratos por parte dos policiais que o prenderam. Ao final da revelação se seguiu um silêncio. Na decisão escrita acerca da decretação da prisão preventiva, não há qualquer menção ao que o cidadão havia alegado. Também não se manifestou a respeito o Ministério Público.

No Brasil, há uma dificuldade, já observada em pesquisas, de se responsabilizar agentes estatais que praticam tortura.([9] ) Por outro lado, a recente pesquisa empreendida por Orlando Zaccone sobre as decisões que arquivam os autos de resistência no Rio de Janeiro evidencia que o Ministério Público e o Poder Judiciário não questionam, por vezes, a tese de legítima defesa apresentada pela Polícia Civil em caso de mortes de cidadãos, até mesmo quando a perícia tanatoscópica detecta lesões na nuca das vítimas.([10] ) Em uma frase: “a polícia mata, mas não mata sozinha”.([11] ) O silêncio sobre relatos de violência reforça essa premissa.

Em conclusão, não é possível falar em um fracasso das audiências de custódia, posto que a simples condução do preso à autoridade judicial representa uma vitória. Entretanto, para alcançar as suas potencialidades, será preciso insistir em mudanças mais profundas na cultura judiciária e ministerial, que, talvez, as próprias audiências poderão provocar.

Manuela Abath Valença
Doutoranda em Direito pela UnB.
Professora da UFPE e da Unicap.
Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.

Helena Rocha C. de Castro
Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS.
Professora das Faculdades Integradas Barros Melo.
Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.

Marcela Martins Borba
Graduanda em Direito pela UFPE.
Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.

Érica Babini Lapa do Amaral Machado
Doutora em Direito pela UFPE.
Professora da UNICAP.
Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.

Notas

[1] Na capital pernambucana, o projeto foi instituído por meio da Resolução do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco 380, de 10.08.2015.

[2] Nesse sentido, tem-se o art. 7.5 da CADH, promulgada pelo Brasil através do Dec. 678/1992.

[3] Binder, Alberto. Introducción al derecho procesal penal. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1999. p. 103.

[4] O Grupo Asa Branca de Criminologia firmou, em novembro de 2015, um convênio com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), pelo qual se comprometeu a realizar o monitoramento das audiências na cidade do Recife.

[5] Todos os nomes utilizados no trabalho são fictícios.

[6] Nesse sentido, consultar os seguintes trabalhos: Barreto, Fabiana Costa Oliveira. Flagrante e prisão provisória em casos de furto: da presunção de inocência à antecipação de pena. São Paulo: IBCCRIM, 2007; Jesus, Maria Gorete Marques de et al. Prisão provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo [recurso eletrônico], 2014; Vasconcellos, Fernanda Bestteti de. A prisão preventiva como mecanismo de controle e legitimação do campo jurídico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[7] Até mesmo essa finalidade precisa ser mais bem trabalhada entre os atores, sob pena de as audiências se transformarem em mais um estorvo burocrático. Por exemplo, a Associação Nacional dos Magistrados Estaduais ajuizou uma ação no STF para questionar a constitucionalidade da resolução que regulamenta as audiências. Para a entidade, elas são “extremamente retrógradas e trazem pouca ou nenhuma vantagem às partes envolvidas”. Disponível em: Acesso em: 29 jan. 2016.

[8] Art. 282 do Código de Processo Penal.

[9] Jesus, Maria Gorete de. Os julgamentos do crime de tortura. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 3, n. 9, p. 144, jul.-ago.-set. 2010. 

[10] Zaccone, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 142.

[11] Idem, ibidem, p. 23.



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