INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 280 - Março/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Para além da prisão: efeitos civis da política criminal de drogas em relação às mulheres

Autoras: Mariana Tonolli Chiavone Delchiaro e Juliana de Oliveira Carlos

Quando o caso de Paula([1]) chegou à Defensoria Pública do Estado de São Paulo, havia pouco a ser feito. Usuária problemática de drogas há anos, sofreu o acolhimento institucional do filho André quando este tinha tenra idade. Durante o processo, a tentativa de reinserção da criança na família extensa([2]) foi infrutífera e a ação culminou com destituição do poder familiar. Em situação de rua, ela nunca foi encontrada para participar da ação que cuidava dos interesses de seu filho.

Após o trânsito em julgado da ação, Paula bateu às portas da Defensoria Pública para retomar a guarda do filho, ocasião em que foi informada de que André, então com oito anos de idade, acabara de ser adotado – adoção, aliás, improvável àquela idade. Paula chorou dizendo que havia “perdido seu filho para o crack”. Não quis, porém, recorrer às alternativas judiciais existentes (mas pouco eficazes) para reverter o quadro anunciado.

Surgiu então uma ideia baseada na possibilidade de André, caso assim se manifestasse, ter acesso à ação de destituição do poder familiar:([3]) Paula poderia estabelecer contato com o filho por meio de carta a ser juntada àquele processo.

A carta representaria a única possibilidade de comunicação entre Paula e seu filho, quando e se este quisesse conhecer sua origem. No documento, ela poderia contar sua história, explicar as razões que levaram à situação de destituição do poder familiar e registrar orientações de como ser encontrada. Uma esperança muito pequena, mas a única que Paula poderia ter àquela altura. Para ela, a carta representaria um desabafo; para André, uma possível conexão com o passado. Para ambos, uma possibilidade que as regras processuais jamais previram.

Dias depois, Paula voltou à Defensoria Pública trazendo sua carta, que foi aceita pelo Magistrado da Vara da Infância e juntada ao processo de destituição do poder familiar.

O caso de Paula ilustra efeito ainda pouco discutido da repressão às drogas sobre as mulheres: a ingerência sobre a maternidade das usuárias. A guerra às drogas, cuja faceta criminal (o encarceramento) já atinge desproporcionalmente as mulheres, infiltra-se em outros domínios, resultando em punições de natureza diversa, mas tão deletérias quanto o cárcere.

No Brasil, como em outros países latino-americanos,([4]) as mulheres vêm sofrendo de forma severa com a criminalização das condutas relacionadas a drogas. O crime de tráfico de drogas (art. 33 da Lei 11.343/2006) é causa atualmente de 60% das prisões de mulheres no Brasil, proporção que chega a 72% das presas no Estado de São Paulo.

Por sua vez, o uso de drogas, embora não seja punível com pena privativa de liberdade, ainda é considerado crime (art. 28 da mesma Lei), produzindo estigma e segregação às pessoas que utilizam substâncias entorpecentes.

O preconceito é ainda mais acentuado no caso das mulheres, sobre as quais pesa, além da ilicitude do ato, o julgamento moral pela não adequação ao papel tradicionalmente feminino, identificado com serenidade e obediência às regras sociais.

O estigma se manifesta, por exemplo, em hospitais e maternidades onde relatos de histórico de uso de drogas ou de episódios (mesmo que isolados) de uso na gravidez são suficientes para, na visão dos profissionais dessas maternidades, atestar incapacidade para o exercício da maternagem.([5])

Uma vez que a questão extravasa as entidades de saúde e chega ao Poder Judiciário, este pode impor medidas civis, tais como acolhimento institucional das crianças, destituição do poder familiar, esterilização involuntária, entre outras. Essa é a realidade que tem chegado à Defensoria de São Paulo com frequência.

Vale registrar o caso paradigmático de mãe que, ao chegar à maternidade em trabalho de parto, visando a preservar a saúde do bebê, confiou ao médico a informação de que havia sofrido uma recaída de uso de cocaína durante a gravidez.

No dia seguinte, o hospital encaminhou relatório ao Ministério Público, por meio do qual atestava que a mãe não reunia condições de exercer a guarda do filho, por ser usuária de drogas. Prontamente, o parquet ajuizou ação de acolhimento institucional, tendo sido concedida liminar em primeira instância para encaminhar a criança ao Serviço de Acolhimento Institucional (Saica).

A Defensoria Pública interpôs agravo de instrumento em face da decisão, que restou, então, reformada liminarmente pelo Tribunal de Justiça, determinando-se o desacolhimento imediato do recém-nascido.

O preconceito em relação ao uso de drogas fez com que o bebê passasse seus primeiros quinze dias de vida em entidade de acolhimento institucional, privado do aleitamento materno e da convivência familiar, direitos fundamentais de toda criança.

Cabe esclarecer que o acolhimento institucional é medida de proteção prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que deve ser invocada excepcionalmente, como ultima ratio para casos de violação dos direitos de crianças e adolescentes.([6]) No caso em questão, porém, a tutela do Estado, consubstanciada na indevida aplicação de medida protetiva, foi justamente a responsável pela violação de direitos fundamentais do recém-nascido.

O caso exemplifica como a proibição (criminal e moral) das drogas produz severos efeitos sobre seus usuários, sendo a maternidade impactada de forma desproporcional. No caso das mães usuárias de drogas são adotadas medidas deliberadamente invasivas, pautadas por preconceito e pela crença de que o Estado, por meio da lei e da intervenção de seus profissionais, deve decidir e atuar sobre a vida dessas mulheres e seus filhos.

O ECA, embora tenha sido vanguardista no tocante ao estímulo à convivência familiar, erigindo crianças e adolescentes à condição de sujeitos de direitos, incorporou o discurso da estigmatização e dos preconceitos impostos pela guerra às drogas: “Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes”.([7])

O dispositivo legal condiciona o direito à convivência familiar ao “ambiente livre de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes”, o que pode ser considerado inconstitucional em confronto com o art. 227 da CF, de acordo com o qual a convivência familiar é direito fundamental, não podendo ser subordinado a qualquer condição.

Evidentemente, a criminalização do porte de drogas para uso pessoal reforça a estigmatização das usuárias, o que dificulta o acesso a tratamentos voluntários de saúde e o acionamento da rede de proteção social para fortalecimento dos vínculos familiares. Em terreno marcado por preconceito e medo da punição, prosperam medidas pautadas por interferência judicial e institucionalização. Nessa linha, àquele que comercializa substâncias ilícitas verifica-se a aplicação da pena privativa de liberdade; ao usuário, os tratamentos de internação involuntária (e até mesmo compulsória); e, por fim, às crianças cujas mães sejam usuárias (problemáticas ou não) e/ou comerciantes, o acolhimento institucional.

Enquanto voltamos os olhos para a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal (RE 635.659), outras esferas do Poder Público atuam diretamente sobre corpos e vidas de usuárias de drogas e respectivos filhos, ainda que não se valham do repertório penal para tanto. As nuances de intervenção e violência institucional variam desde programas pretensamente voltados para auxiliar usuárias de drogas a ter acesso a métodos contraceptivos (como o programa Gravius, do Governo do Estado de São Paulo, que oferece implante de anticoncepcional de longa duração a usuárias de drogas),([8]) até projetos de lei para esterilização forçada de usuárias de crack (como apresentado pela vereadora de Porto Alegre, Séfora Mota, em 2013).([9]) Tais ações afrontam, de maneira mais ou menos declarada, a autonomia e os direitos reprodutivos das usuárias de drogas, sobretudo das que fazem uso da mais estigmatizada delas, o crack.

Muito se fala sobre como a guerra às drogas perfaz verdadeira repressão à pobreza. Em complemento, é possível dizer que essa guerra atinge as mulheres de maneira ainda mais dura – inclusive sobre a decisão ou exercício da maternidade.

Mariana Tonolli Chiavone Delchiaro
Bacharel em Direito (PUC-SP, 2006).
Especialista em Direito Processual Civil (FGlaw, 2010).
Defensora Pública do Estado de São Paulo.

Juliana de Oliveira Carlos
Bacharel em Ciências Sociais (Unicamp, 2006).
Mestre em Sociologia (USP, 2012) e em Direitos Humanos e Métodos de Pesquisa (Essex – Inglaterra, 2014).
Assessora Técnica da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Notas

[1] Os nomes citados ao longo do artigo são fictícios.

[2]Art. 25 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

[3]Ver art. 48 do ECA.

[4]Giacomello, Corina. Mujeres, delitos de drogas y sistemas penitenciarios en América Latina. International Drug Policy Consortium Briefing Papers (Online), 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2016.

[5]A distinção entre os conceitos inspira-se na formulação de Gradvohl; Osis e Makuch (2014), segundo as quais, “Enquanto a maternidade é tradicionalmente permeada pela relação consanguínea entre mãe e filho, a maternagem é estabelecida no vínculo afetivo do cuidado e acolhimento ao filho por uma mãe”. Gradvohl, S. M. O.; Osis, M. J. D.; Makuch, M. Y. Maternidade e formas de maternagem desde a idade média à atualidade. Pensando fam, Porto Alegre, v. 18, n. 1, 2014. Disponível em: . Acesso em: 23 jan. 2016.

[6]Ver art. 98 do ECA.

[7]Grifo nosso.

[8]Veja reportagem sobre o programa na edição de 11 de janeiro de 2016, do jornal Folha de S. Paulo, disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2016.

[9]Notícia sobre o projeto de lei pode ser encontrada na página web da Câmara Municipal de Porto Alegre, disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2016.



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