INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 280 - Março/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Lola Aniyar de Castro: uma criminóloga crítica que se define por sua vocação transformadora!

Autoras: Jéssica Raquel Sponchiado e Paula Pereira Gonçalves Alves

Em pleno contexto de crimes econômicos, a realidade de mulheres e homens pobres encarceradas/os não pode ser esquecida. A vida de pessoas transformada em números de processos criminais e tratada de forma desumana entra em contradição com os discursos acadêmicos de pós-modernidade. A realidade carcerária demonstra o quão retrógrado é o tratamento de conflitos sociais por meio do sistema penal. As obras, os textos e o histórico de Lola na criminologia e na política são exemplos de como se deve estar atento à realidade do sistema em sua totalidade.([2])

Enquanto mulher, criminóloga, política e humana, Lola atuou de forma muito resistente em diversos espaços de poder em defesa da liberdade. A experiência no senado venezuelano permitiu-lhe tentar pôr em prática vários princípios da atividade criminológica. Ela apresentou projetos de lei que tinham como objetivo uma política criminal alternativa, propôs reformas concretas ao Código Penal para restituir a igualdade entre homens e mulheres e foi oponente ao Círculo de Viena, no que diz respeito ao combate às drogas, por todo caráter imperialista e colonialista que ele apresentava.

Além disso, Lola foi governadora do Estado de Zulia, onde pôde travar outras lutas, tais como a desmilitarização da polícia, e assumiu a representatividade da Venezuela perante a Unesco e o cônsul em Nova Orleans, EUA. Segundo a própria criminóloga, o exercício da atividade parlamentar proporcionou uma atividade de práxis criminológica, ainda que estivesse em patamares do poder. Ela afirma e reconhece seus passos na estreita linha da criminologia crítica diante do grande precipício do poder abaixo de seus pés: “governamos de acordo com os nossos princípios. Muitos deles são incompatíveis com o êxito político. Não mudamos tudo. Mas nunca se dirá, ao menos, que não tentamos...”.([3])

A relevância de se conhecer e estudar seus trabalhos acadêmicos é evidente por demonstrar que a importação de teorias criminológicas e de políticas criminais desenvolvidas em contexto europeu e norte-americano sem a devida contextualização com as realidades social, econômica e política dos países latino-americanos é algo que deve ser pontuado por teorias latino-americanas. Como bem afirma, se criminologia é controle social, criminologia é poder.

Lola Aniyar de Castro está entre as referências que tentaram apontar a necessidade de uma transformação diante da criminologia na América Latina com foco na seletividade do controle social formal e informal acerca do crime e do criminoso.([4]) Militante ativa na área da criminologia, denunciou o controle e o papel do sistema penal por trás das relações de produção baseadas na exploração do ser humano, na submissão, na marginalização, no fortalecimento do capital transnacional. É marcante, em seus escritos, a intenção de demonstrar a “transcendência que a criminologia tem como instrumento de legitimação ou de subversão à medida que aponta funções e motivos. Assim, a criminologia desenvolve-se, ou não, segundo as necessidades instrumentais dos diferentes sistemas de dominação”.([5])

A formação jurídica no Brasil, que apresente um programa criminológico voltado para a nossa realidade de economia periférica, não pode deixar de analisar as obras de Lola Aniyar de Castro. Um dos temas que ocupa o dia a dia das pesquisas científicas é a questão do sentimento de insegurança social e do medo diante da criminalidade. Lola já discutia tal problemática na realidade latino-americana enquanto um conflito social que se converteu em ponto político central dos programas eleitorais e dos meios de comunicação em massa. Diante de tal contexto, a autora apresenta ideias sobre a eficiência de uma nova prevenção ao delito por meio da participação cidadã e de um novo modelo policial, de forma a contextualizar a situação com a realidade periférica.([6])

O diferencial de Lola para a criminologia, na América Latina, consiste na metodologia que exige construir-se em e para cada sociedade, em cada momento histórico e em cada conjuntura específica. Afirma que: “Apenas uma criminologia desse tipo pode ser chamada, em nosso continente, de latino-americana, por ter sido feita da América Latina para a América Latina (...). A criminologia latino-americana é uma pesquisa sobre a realidade sociopolítica do continente”.([7])

O método histórico-concreto e o método dialético, tão relatados nos escritos de Lola Aniyar de Castro,([8]) partem da ideia de que os fatos sociais não estão isolados, nem podem ser compreendidos fora de seu contexto histórico. Desse modo, fatos sociais estão articulados à totalidade do sistema social e obedecem à sua racionalidade. Nessa linha de pensamento, apesar das grandes diferenças culturais, políticas, sociais e econômicas entre os países da América Latina, o fato social de os países periféricos serem dominados pelo capitalismo dos países centrais e de as políticas internas refletirem tal divisão colaborou com o desenvolvimento do Grupo Latino-Americano de Criminologia Comparada e o posterior Manifesto dos Criminólogos Críticos (México, 1981), cujo objetivo era a construção de uma teoria crítica do controle social na América Latina. O Manifesto dos Criminólogos Críticos seria a história da criminologia na América Latina.([9]) De acordo com Lola, são os países concebidos como periféricos unidos em busca da libertação.

Em sua obra Criminologia da libertação,a própria autoraquestiona: “Libertação de quê?”. E responde: “Libertação das estruturas libertadoras. Libertação da ocultação das relações de poder e do funcionamento mascarado dos interesses. Libertação do discurso educativo, religioso, artístico, jurídico e criminológico vinculados às relações de poder. Libertação da razão tecnológica que traz um conceito artificial de desenvolvimento para nossos países”.([10])

Outra referência relevante de se pontuar trata-se da obra Criminologia da reação social, que contribui com os estudos das formas de controle social, tanto o formal quanto o informal. O interessante é que Lola não se limita somente à crítica à totalidade do controle social, mas apresenta propostas sobre cada uma das categorias analisadas (como a educação, a criminalização das drogas e os meios de comunicação em massa).

Citam-se as palavras da mulher criminóloga que tanto lutou, com tamanha lucidez, para tentar transformar a sociedade em que vivia: “Quando o valor mais importante de uma sociedade é a obtenção a qualquer preço, de status e lucro, é inútil esforçar-se para moralizar diante do pequeno ladrão, do estelionatário ou chantagista de pequena monta”.([11])

Ademais, a criminóloga assegura a importância da teoria crítica da Escola de Frankfurt para o pensamento criminológico, no que diz respeito ao exercício de autorreflexão, movimento este que é fundamental para não incidir numa espécie de “cristalização” da criminologia, em razão de ela sempre estar em um determinado contexto histórico.([12])

Ao adentrar em questões de gênero, é possível observar que há cerca de uma década não havia tanto enfoque no assunto por parte dos trabalhos de criminólogas latino-americanas. Não se trata de descartar aquilo que por elas foi feito, inclusive por desbravar caminhos em espaços criminológicos até então tomados pela dominação masculina. Mas é preciso avançar. O processo de desenvolvimento do pensamento criminológico evidencia que uma avalanche de mulheres sediciosas no poder está a caminho, com pesquisas científicas e atuação política em torno da questão criminal. Obrigadas, Lola.

Jéssica Raquel Sponchiado
Mestre em Direito pela Unesp.
Doutoranda em Direito Penal pela USP.

Paula Pereira Gonçalves Alves
Mestranda em Direito pela Unesp.
Pesquisadora.

Notas

[1] Nas palavras de Lola: Um criminólogo crítico se define por sua vocação transformadora. Não só na teoria, mas também da realidade (Aniyar de Castro, Lola. Criminólogos sediciosos: no poder?Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade.Rio de Janeiro, 1996. v. 1, n. 2, p. 59-66, p. 59.

[2] Aniyar de Castro, Lola. Derechos humanos: delincuentes y víctimas, todos víctimas (recetas para investigar en la criminologia latinoamericana de los próximos años).Revista de Derecho Penal: Fundación de Cultura Universitária,Montevideo, n. 16, p. 39-52, nov. 2006

[3] Aniyar de Castro, Lola. Criminólogos sediciosos: no poder?Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade.Rio de Janeiro, 1996. v. 1, n. 2, p. 59-66, p. 65.

[4] Aniyar de Castro, Lola. O triunfo de Lewis Carroll. A nova criminologia latino-americana. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. p. 137.

[5] Aniyar de Castro, Lola. A evolução da teoria criminológica e avaliação de seu estado atual. Revista de Direito Penal e Criminologia, n. 34, p. 92, jul.-dez. 1982.

[6] Aniyar de Castro, Lola. A participação cidadã na prevenção do delito. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1999.

[7] Ibidem, p. 23.

[8] Por exemplo, texto: Aniyar de Castro, Lola. Conocimiento y orden social: criminologia como legitimacion y criminologia de la liberacion. Proposiciones para una criminologia latino-americana como teoria crítica del control social. Capítulo criminológico. Organo del Instituto de Criminologia, 1981-1982, p. 60.

[9] Aniyar de Castro, Lola. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2005. p. 30.

[10] Ibidem, p. 112.

[11] Aniyar de Castro, Lola. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 27.

[12] Aniyar de Castro, Lola. El movimiento de la teoría criminológica y evaluación de su estado actual.Anuario de derecho penal y ciencias penales,Madrid, v. 36, n. 3, p. 545-566, set.-dez. 1983, p. 563.



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