José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
Autora: Carmen Hein de Campos
A chamada feita pelo Boletim do IBCCRIM “Mulher envie seu artigo” para publicação em março/2016, durante as comemorações do Dia Internacional das Mulheres (8 de março), motivou este artigo.
Estudo realizado por Tatiana Santos Perrone e Vanessa Menegueti publicado no Boletim n. 258 (maio 2014) identificou a desigualdade de gênero nas publicações do Instituto. Entre 2011 e 2013 o percentual de artigos publicados pelas mulheres no Boletim e na Revista não chegou a 30%, ou seja, bem inferior ao número de artigos publicados pelos homens em ambas as publicações. Conforme o diagnóstico das autoras, em 2011 a participação das mulheres nas publicações foi de 17,6%, em 2012 subiu para 32% e em 2013 caiu para 23,2%. Excluindo a Coluna Descasos, a participação cai para 13,6% em 2011, 20% em 2012 e 11,8% em 2013, evidenciando ainda mais a baixa participação feminina nos Boletins.
No entanto, fiquei com a seguinte curiosidade: o percentual dos artigos publicados corresponde ao número de artigos enviados pelas mulheres? Ou seja, qual a relação entre o número de artigos enviados e de artigos publicados? É possível que todos os artigos enviados tenham sido aceitos, mas pode ser que, proporcionalmente, os artigos das mulheres tenham sofrido maior rejeição. Entretanto, os números apresentados não deixam dúvidas sobre a baixa participação feminina nas duas publicações do Instituto.
Pergunto-me se, após mais de 40 anos de produção feminista nas ciências criminais, essa baixa produção ainda estaria relacionada ao próprio campo de estudos (direito penal, processo penal e criminologia) tradicionalmente masculino, conforme apontam inúmeros estudos feministas (Smart, 1974; Naffine, 1987; Alder, 1995; Bertrand, 1995; Gelsthorpe, 1994; 2002). Ou será que as mulheres ainda são minoria nesse campo e consequentemente escrevem menos? Ou, adicionalmente, estaria relacionado à natureza dos escritos das mulheres que interessam às mulheres e que tradicionalmente não se publicam em revistas criminais, mesmo as mais críticas como é o caso das do IBCCRIM? Esses e outros fatores podem estar ligados à baixa produção das mulheres na área. Não pretendo aqui responder a todas essas indagações, mas levantar algumas questões, a partir da aproximação feita pela criminologia feminista, para continuar o debate proposto pelas autoras.
Em um brevíssimo panorama sobre os estudos feministas em criminologia pode-se afirmar que as publicações feministas no campo das ciências criminais, especificamente da criminologia crítica,([1]) tornaram-se mais visíveis na década de 1970, período que coincide com a explosão política e acadêmica do movimento feminista. Embora nos anos 60 artigos sobre mulheres e o sistema de justiça criminal tivessem sido publicados (Gelsthorpe, 2002:112), será Carol Smart em seu clássico livro Women, Crime and Criminology: a feminist critique (1976) a fazer uma forte crítica aos estudos criminológicos sobre criminalidade feminina. Smart afirma que as mulheres e o crime eram uma tímida área dentro da criminologia e que eram necessárias mais pesquisas e investigações feministas para criar uma criminologia feminista (Smart, 1976).
A crítica feminista à criminologia continua nos anos seguintes. Nos anos 1980 o debate sobre gênero ganha força e repercute em todos os estudos, incluindo a criminologia. No período, a crítica feminista atinge as principais teorias criminológicas existentes, demonstrando que elas ignoravam ou estereotipavam as mulheres (Naffine, 1987; Olmo, 1998; Campos, 2013), e algumas propõem novas perspectivas de aproximação (Leonard, 1982).
Destaca Larrauri (1991) que a crítica feminista à criminologia foi talvez o acontecimento mais importante no século passado, provocando profundas mudanças na disciplina e revelando seu caráter androcêntrico. Temas como violência de gênero, violência doméstica, estupro, aborto e a relação das mulheres com a criminalidade, até então ignorados, passam a ser prioridade nos estudos feministas.
Nos anos 1990, os estudos de gênero aprofundam-se e as abordagens feministas avançam para os estudos sobre masculinidades, estudos sobre a experiência das mulheres, criminologia feminista da transformação ou feminist standpoint (Cain, 1994), violência doméstica, estupro e reformas legais (Edwards, 1994; Los, 1994), criminalidade cometida por adolescentes ou female gangs (Chesney-Lind, 1999; Campbel, 1999), entre outros.
A consolidação dos estudos feministas revelou uma grande produção feminista em criminologia e crescentes possibilidades para novas perspectivas, como a criminologia feminista negra (black feminist criminology) e a criminologia feminista queer.
A revista Feminist Criminology desde 2006 publica artigos internacionais, revelando a vasta produção feminista em criminologia. No entanto, publicações da América Latina, incluindo o Brasil, são praticamente inexistentes na revista.([2])
Na América Latina, a criminologia crítica pouco trabalhou a questão das mulheres, e o debate de gênero demorou a ingressar nos estudos criminológicos críticos (Olmo,1998).
No Brasil, a violência contra mulheres, especialmente o tema da violência doméstica, cometida por parceiros íntimos constituiu-se em um campo de pesquisa autônomo e de grande relevância (Grossi; Minella; Losso, 2006).
A pesquisa feminista já analisou a atuação do sistema de justiça criminal em casos de homicídios cometidos por parceiros íntimos, estupro, violência doméstica (Mariza Correa, 1983; Ardaillon e Debert, 1987; Maria Filomena Gregori, 1993; Miriam Grossi, 1994; Pasinato, 1998). A atuação das delegacias da mulher (Soares, 1996; Muniz; 1996; Santos; 1999; MACHADO, 2002; Pasinato e Santos (2008), os juizados especiais criminais (Campos, 2001; CAMPOS e CARVALHO, 2006), entre outros. Há destacada produção feminista no campo que interessa às ciências criminais, especialmente à criminologia. No entanto, essa produção teórica aparece muito pouco em revistas especificamente das ciências criminais, como é o caso das publicações do IBCCRIM. Talvez porque as pesquisadoras prefiram publicar em revistas de sua área disciplinar (sociologia, antropologia, entre outras) e tornarem-se referência nessas áreas.
No entanto, o que se passa com a produção das feministas do campo do direito que ainda pouco publicam nas revistas jurídicas?
Concluindo, suspeito que o viés ainda androcêntrico dos estudos penais (direito e processo penal) e da criminologia ainda seja o principal responsável pela baixa produção feminina nas publicações do IBCCRIM. Embora as mulheres sejam maioria nos cursos de direito e possivelmente nas profissionais jurídicas, ainda são minoria em posições de destaque (Tribunais Superiores, instituições de classe etc.), professoras de direito penal e processual penal etc. E isto pode se refletir na baixa produção feminina na área. Alia-se a isso a invisibilidade da produção das mulheres, pouco citadas por autores masculinos. Ou seja, a autorreferência masculina também é fonte de discriminação da produção das mulheres, especialmente feminista. De qualquer modo, há necessidade de ampliarmos as produções das mulheres nos lugares tradicionalmente masculinos. Essa convocatória e o diagnóstico das autoras são uma ótima provocação.
Referências bibliográficas
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Carmen Hein de Campos
Professora do Programa de Mestrado em Segurança Pública da Universidade de Vila Velha – UVV/ES.
Doutora em Ciências Criminais, PUCRS.
Notas
[1] Utilizo o termo no singular, mas estou ciente de que não existe uma única criminologia crítica, assim como não há um feminismo, e sim diversas perspectivas teóricas nos dois campos.
[2] A dificuldade da língua é um fator impeditivo para grande parte das teóricas, pois a revista só aceita artigos na língua inglesa.
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