José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
Autor: Leonardo Marcondes Machado
A presunção de inocência, nos moldes de um Estado Democrático de Direito, teria surgido com o Iluminismo, especialmente pela sua base juspolítica em torno dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade entre os homens, afastando-se, portanto, de um modelo centrado na figura do hostis, do inimigo, do herege etc.([1] )
O reconhecimento expresso da presunção de inocência encontrou lugar no art. 9.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, o qual expressamente consignava que todo homem deveria ser presumido inocente até que fosse declarado culpado e, se julgado indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário para detê-lo deveria ser severamente reprimido pela lei.
Segundo Zanoide de Moraes, isso era, de fato, algo revolucionário na época. Estabelecer um modelo processual penal fundado na consideração do investigado/acusado como inocente representava um giro completo na história do sistema de justiça criminal. Significaria uma nova ordem processual penal, um novo parâmetro, agora pautado na proteção do indivíduo, e não mais na repressão autoritária aos inimigos. Em vez do hostis alienigena e do hostis judicatus, entraria em cena o investigado/acusado cidadão. Em resumo: antes um sistema penal do inimigo, agora a perspectiva de um modelo cidadão.([2] )
A fórmula cunhada pela Assembleia Nacional Francesa permitiria entrever, pelo menos, duas dimensões da presunção de inocência: regra processual probatória e regra de tratamento pessoal. No tocante a esta última dimensão, explica Gomes Filho que representaria nítida medida de contenção de abusos em relação à liberdade ambulatorial: “(...) visava especialmente à restrição dos poderes absolutos do rei e de seus juízes em relação à prisão, cuja expressão mais evidente eram as chamadas ‘lettres de cachet’, por meio das quais era possível a eles dispor arbitrariamente da liberdade dos súditos”.([3] )
A partir de então, outros diplomas legislativos, até mesmo na ordem internacional, incorporaram a presunção de inocência, como a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 1969.
Por fim, em 1988, assegurada em nossa Constituição, no seu art. 5.º, LVII, com status de direito fundamental. Assim, prevê o dispositivo constitucional que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Giamberardino explica que o tratamento do acusado como efetivamente inocente é um postulado político próprio da reforma humanista penal e processual penal. Trata-se de noção contemporânea à Escola Clássica, que fora objeto de contestação, primeiramente, pela criminologia positivista, em seus pressupostos científicos, e, em seguida, pelos teóricos ligados a regimes autoritários, em seus fundamentos políticos.([4] )
Cesare Bonesana, o famoso Marquês de Beccaria, em clássica obra iluminista, publicada em 1764, já dizia que “um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que seja decidido ter ele violado as condições com as quais tal proteção lhe foi concedida”.([5] )
Outro representante do pensamento clássico, Francesco Carrara, em publicação de 1873, tratava da presunção de inocência como “postulado” fundamental da ciência processual e das demais garantias processuais penais.([6] )
O primeiro ataque, no entanto, veio da Scuola Positiva italiana, forte nas ideias de periculosidade e defesa social, a partir de uma base criminológica de viés etiológico individual. Ferri considerava a presunção de inocência um “exagero individualista”, inaceitável quando estendida a criminosos atávicos mais irredutíveis e perigosos. Ademais, inadmitia o seu reconhecimento a todos os investigados/acusados, assim como a todas as situações processuais. A presunção de inocência ficaria limitada à etapa investigatória preliminar e desde que não houvesse prisão em flagrante delito ou confissão. Também seria excluída pela reincidência ou quando se tratasse de criminoso habitual, louco ou nato.([7] )
Garofalo, também representante da Escola Positiva italiana, tinha verdadeira repulsa pela presunção de inocência. Afirmava tratar-se de um discurso “vazio” e “absurdo”.([8] ) Nessa linha, sustentava a prisão preventiva como regra, resposta normal às imputações criminais em função da antecipação de pena.([9] )
Um segundo ataque à presunção de inocência ocorre, no início do século XX, pela Escola Técnico-Jurídica, de Vicenzo Manzini, Alfredo Rocco e Arturo Rocco. Se a crítica anterior era de cunho político-criminal, fundada em suposta incapacidade do modelo penal clássico em reprimir a expansiva criminalidade da época, esta será de viés lógico-dogmático, baseado em alegadas deficiências técnicas na elaboração de alguns fundamentos do pensamento clássico-iluminista.([10] )
Manzini, professor de direito penal e processo penal na Universidade de Torino, tornou-se referência nesse movimento de oposição à presunção de inocência, a qual considerava “grosseiramente paradoxal e irracional”. Argumentava da seguinte forma: se devemos presumir a inocência do imputado, pergunta o bom senso, por que então se procede contra ele?([11] ) Ligado ao governo fascista de Benito Mussolini, que comandou a Itália a partir de 1922, foi o principal responsável pela ideia de um princípio de “não culpabilidade” em vez de inocência; terminologia, aliás, empregada pelas Constituições italiana e brasileira.([12] )
O Código de Processo Penal brasileiro de 1941, fruto do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945), apresenta o mesmo viés autoritário da legislação italiana – Codice di Procedura Penale Alfredo Rocco – de 1930.
Registre-se que o Min. Francisco Campos, em sua Exposição de Motivos do Código de 1941, fez questão de citar o pensamento de Alfredo Rocco e seu trabalho de reforma do processo penal italiano. Observa Malan que, malgrado Francisco Campos nunca tenha se declarado fascista, ou assumido abertamente a influência do regime de Mussolini na ordenação do Estado Novo, é sintomática essa referência na Exposição de Motivos.([13] )
A ideologia autoritária de Campos, positivada no Código brasileiro de 1941, sempre em nome da “defesa social”, fica patente em sua obra intitulada O Estado nacional, in verbis: “De par com a necessidade de coordenação das regras do processo penal num código único para todo o Brasil, impunha-se o seu afeiçoamento ao objetivo de maior facilidade e energia da ação repressiva do estado. As nossas leis vigentes de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão terá de ser deficiente, decorrendo daí um indireto estímulo à criminalidade. Urgia abolir semelhante critério de primado do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se podia continuar a transigir com direitos individuais em antagonismo ou sem coincidência com o bem comum. O indivíduo, principalmente quando se mostra rebelde à disciplina jurídico-penal da vida em sociedade, não pode invocar outras franquias ou imunidades além daquelas que o garantem contra o exercício do poder público, fora da medida reclamada pelo interesse social”.([14] )
Não é por outra razão que Francisco Campos é considerado um dos mais importantes intelectuais orgânicos do autoritarismo brasileiro do século XX, além de artífice da base jurídica do regime de exceção do Estado Novo varguista.([15] )
Diante dessa breve enunciação de propósitos à legislação processual da época, ainda em vigor, apesar de reformas parciais, fica muito difícil imaginar uma dimensão que assegure de fato a presunção de inocência. Em verdade, segundo Zanoide de Moraes, o Código não só rejeitou a dimensão juspolítica da presunção de inocência como acabou forjado a partir de uma estrutura de “presunção de culpa” e de persecução penal de “inimigos”.([16] )
A realidade do sistema de justiça criminal brasileiro tornou-se uma verdadeira contradição, inclusive em nível normativo. Isso porque a estrutura do Código é absolutamente incompatível com o modelo constitucional e, pior, não passamos pela devida constitucionalização do direito processual penal. A prática do processo penal continua sendo, na maior parte dos casos, flagrante manifestação de um sistema inquisitório sem qualquer filtragem de constitucionalidade ou convencionalidade.
Leonardo Marcondes Machado
Mestrando em Direito do Estado pela UFPR.
Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC.
Professor de Direito Processual Penal e Delegado de Polícia Civil/SC.
Notas
[1] Zanoide de Moraes, Maurício. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 531.
[2] Idem, p. 77-79.
[3] Gomes Filho, Antônio Magalhães. Medidas cautelares e princípios constitucionais. In: Fernandes, Og (coord.). Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas: comentários à Lei 12.403, de 04.05.2011. São Paulo: Ed. RT, 2011. p. 20-21.
[4] Giamberardino, André Ribeiro. Crítica aos obstáculos epistemológicos da prisão cautelar. Dissertação (Mestrado em Direito) – PPGD/UFPR, Curitiba, 2008, p. 53.
[5] Beccaria, Cesare. Dos delitos e das penas. 18. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 35.
[6] Carrara, Francesco. Il diritto penale e la procedura penale. Opuscoli di diritto criminale. Prato: 1873. vol. V., p. 17-19.
[7] Ferri, Enrico. Sociologia criminale. 4. ed. Torino: Fratelli Bocca Editori, 1900. p. 729-730.
[8] Garofalo, Raffaele. La detenzione preventiva. La scuola positiva. Torino: Fratelli Bocca Editori, 1892. p. 199.
[9] Garofalo, Raffaele. Criminologia: estudo sobre o delicto e a repressão penal. São Paulo: Teixeira, 1893. p. 407-410.
[10] Zanoide de Moraes, Maurício. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 117.
[11] Manzini, Vincenzo. Tratado de derecho procesal penal. Trad. Santiago Sentis Melendo e Marino Ayerra Redín. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1951. t. I, p. 254-255.
[12] Giamberardino, André Ribeiro. Crítica aos obstáculos epistemológicos da prisão cautelar. Dissertação (Mestrado em Direito) – PPGD/UFPR, Curitiba, 2008, p. 54.
[13] Malan, Diogo. Ideologia política de Francisco Campos: influência na legislação processual penal brasileira (1937-1941). In: Melchior, Antônio Pedro et al. Autoritarismo e processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 46.
[14] Campos, Francisco. O Estado nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2001. p. 121.
[15] Malan, Diogo. Ideologia política de Francisco Campos: influência na legislação processual penal brasileira (1937-1941). In: Melchior, Antônio Pedro et al. Autoritarismo e processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 79.
[16] Zanoide de Moraes, Maurício. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 159.
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