INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 279 - Fevereiro/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Editorial

PPPs e terceirizações nos presídios: a indústria do sofrimento e da punição

Ao lado de um assustador crescimento da população prisional, o Brasil tem nas suas prisões um retrato das maiores violações de direitos humanos do continente.

O quadro de superlotação, insalubridade, tortura e mortes se agrava na medida em que a população prisional cresce em números espantosos: no período de vigência da atual Constituição, o aumento da população prisional foi de 575%.

Nesse contexto, despontam no Congresso Nacional projetos de lei que instituem a terceirização de serviços prisionais ou a contratação de parceria público-privada para a construção e administração de estabelecimentos penais.

O objetivo declarado de humanização das prisões pela iniciativa privada esconde o avanço do capital privado na gestão do sofrimento humano. Já adiantado na construção de presídios e no monitoramento eletrônico, o interesse privado tem nos projetos de privatização seu ponto alto.

Nesse sentido, destacam-se o Projeto de Lei da Câmara 2.694/2015 e o Projeto de Lei do Senado 513/2011. O primeiro prevê a contratação indireta de serviços como a movimentação interna de presos e a assistência jurídica. O segundo, ainda mais amplo e preocupante, estabelece a instituição de PPPs, mediante delegação ao gestor privado da construção e da administração de unidades prisionais, levando a vultosos aportes de verba pública a tais gestores em contrapartida. O PLS 513/2011, inserido na “Agenda Brasil” mediante lobby de empresas interessadas nesse filão de mercado, encontra-se pendente de votação pela Comissão Especial de Desenvolvimento Nacional, que substitui sua deliberação por Plenário, correndo-se o risco de que a referida Comissão venha a aprovar projeto de consequências desastrosas para o Brasil sem que sequer tenha havido discussão ampla e democrática sobre sua constitucionalidade e conveniência.

Ao transformar o preso em fonte de lucro, a privatização significa a forma mais evidente de impulsionar o encarceramento em massa, já que o investimento nesse setor requer um número cada vez maior de prisões e o aumento do tempo do cumprimento de penas. Não é por acaso que o art. 9.º do PLS 513/2011 determina que “o concessionário será remunerado com base na disponibilidade de vagas do estabelecimento penal”. Ao lado do aumento do número de presos, o lucro cresce com a economia de recursos do gestor, representando menor garantia de direitos da população prisional.

O projeto que tramita no Senado não é apenas inadequado, mas inconstitucional, a começar pela delegação da função punitiva para particulares: o monopólio estatal do poder de punir é violado pelo parágrafo único do art. 5.º do PLS, que prevê, expressamente, que “ o quadro de pessoal dos estabelecimentos prisionais será formado e contratado pelo concessionário”.

Na prática, isso representa a transferência do poder punitivo e disciplinar para uma empresa privada, que gerirá todos os aspectos da execução da pena. Como exemplo, a atribuição de uma falta disciplinar passa a ser feita por uma empresa, o que implicará o endurecimento das penas. Se a fonte de lucro do empresário é o maior tempo de aprisionamento do maior número de pessoas, seus funcionários fatalmente exercerão o poder disciplinar com uma lucrativa finalidade.

O lucro das empresas também se manifesta na disciplina do trabalho do preso no projeto, que institui forma de trabalho forçado, proibido pela Constituição, além de afastar todos os direitos trabalhistas garantidos a todo empregado. Ainda mais preocupante é o disposto no art. 17 do Projeto, que expressamente afasta a garantia de que presos idosos e com deficiência tenham trabalho adequado à sua condição. Rechaça, ainda, a garantia de jornada máxima de 8 horas, com descanso semanal.

Ambos os projetos citados ainda violam a Constituição ao privatizar a assistência jurídica, afrontando diretamente o art. 134 da Lei Maior, que traz a Defensoria Pública como único órgão responsável por garantir a defesa dos necessitados. Ao submeter os advogados incumbidos da defesa dos direitos da população carcerária à própria empresa que dirige a unidade prisional, afastando a Defensoria Pública, o projeto praticamente impede que agressões e tortura sejam denunciadas, sendo óbvio que o advogado contratado pela empresa não terá autonomia para tomar providências diante de ilegalidades praticadas por seus próprios contratantes.

A experiência brasileira nessa área é notadamente negativa. Em âmbito nacional, são reiteradas as notícias de corrupção na gestão privada da alimentação dos presos. Por outro lado, os casos de Pedrinhas e Ribeirão das Neves nos alertam para os perigos do modelo em questão.

A situação de total ausência de controle no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, que vem sendo palco de cenas de barbárie, como a decapitação de presos, sevícias e um sem-número de violações de direitos fundamentais, tem como uma de suas razões o fato de que a Administração Prisional Maranhense houve por bem, à margem da legalidade, delegar as funções de segurança interna à iniciativa privada, mediante terceirização de seus quadros. Apenas depois da crise penitenciária, quando imagens de presos mortos foram veiculadas na grande mídia, o Governo Maranhense anunciou o fim da terceirização no Estado.

Outra experiência negativa é o do Complexo Penitenciário de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais. Já em 2014, pouco depois de sua inauguração, o Conselho Nacional de Justiça inspecionou o local, encontrando presos ilegalmente mantidos em celas solitárias, sem a imputação de qualquer falta disciplinar, além de diversas ilegalidades, como presos dormindo no chão, racionamento severo de água e diversas denúncias de agressão praticadas por agentes de segurança privados.

Nos EUA, o recente debate sobre políticas de desencarceramento tem nas prisões privadas uma de suas principais barreiras. As cláusulas contratuais de ocupação dos presídios privados e o mercado gerado por esse campo aberto à iniciativa privada tornam o urgente debate sobre o (des)encarceramento em massa ainda mais difícil. A dimensão e a atualidade do problema podem ser demonstrados pela iniciativa do Senador e pré-candidato à Presidência pelo Partido Democrata Bernie Sanders, que apresentou, em setembro de 2015, projeto de lei para banir as prisões privadas dos EUA, baseando-se em grande número de relatórios(1) que demonstram a falência desse modelo e sua incompatibilidade com a necessária redução das taxas de encarceramento.

Seja pelas flagrantes inconstitucionalidades das propostas de privatização brasileiras, seja porque a experiência empírica de outros países deve ser levada em conta para que não adotemos caminhos de tal forma equivocados, é imperiosa a rejeição dos projetos de lei que, a bem da verdade, acaso aprovados, só terão o condão de agravar ainda mais as condições indignas de aprisionamento e, portanto, causar, nesse aspecto, uma grande vergonha para o Brasil no cenário internacional.

Nota

(1) Nesse sentido, por exemplo, cf. o relatório “Criminal: how lockup quotas and ‘low-crime taxes’ guarantee profits for private prisions corporations”, produzido pelo centro de pesquisas “In the Public Interest”, sediado na Califórnia. O relatório por ser acessado em: . Acesso em: 18 jan. 2016.



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