José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
Autor: Carlos Henrique Pereira Alcântara
Em análise às diversas figuras típicas presentes no Código Penal, parece inquestionável a destacada proteção que o legislador dispensou ao patrimônio. A própria disposição dos delitos no diploma legal já sinaliza a importância que a tutela patrimonial representa para o equilíbrio e harmonia da vida em sociedade, ao menos sob a ótica legislativa: o Título II, denominado “Dos crimes contra o patrimônio”, situa-se logo após o primeiro Título do Código Penal, destinado à proteção da pessoa, e abarca nada menos que 29 artigos (155 a 183) e uma série de modalidades delitivas, com maior ou menor grau de reprovabilidade. De igual modo, não passa despercebida a existência de infrações pluriofensivas ou complexas, que, embora não guardem relação exclusiva com a questão patrimonial, também estão previstas naquele cabedal de crimes, como é o caso do latrocínio (que igualmente representa uma ofensa à vida da vítima) ou da extorsão mediante sequestro (cuja prática também cerceia a liberdade do ofendido).
A par dessas observações, interessa-nos particularmente a análise de uma previsão específica para os delitos patrimoniais, muitas vezes esquecida nos acalorados debates doutrinários sobre a matéria, embora merecedora da mesma atenção: a “filiação”. Isso porque o Código Penal apresenta, em seu art. 181, II, uma isenção de pena ao agente que comete um crime contra o patrimônio de seu ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, civil ou natural, salvo se o delito for de roubo, extorsão ou envolver violência ou grave ameaça à pessoa, ou, ainda, se a vítima possuir idade igual ou superior a 60 anos (art. 183). Trata-se de uma imunidade absoluta ou substancial, também conhecida como escusa absolutória, que representa, segundo a doutrina, uma condição negativa de punibilidade do crime.([1])
Diversas são as razões invocadas para isentar o agente de pena em tais casos. Hungria leciona que a referida imunidade absoluta teve nascimento no direito romano, sendo a honorabilidade considerada mais importante do que a punição incondicional dos crimes patrimoniais, especialmente quando praticados intrafamília. Desse modo, a actio furti não era admitida quando o autor fosse filho ou cônjuge do ofendido.([2]) Por sua vez, Magalhães Noronha reconhece que a predominância dos interesses da família, o reduzido impacto social e a menor reprovabilidade do agente, assim como a manutenção da paz e da concórdia no seio familiar, são alguns dos fatores que explicam a previsão da escusa absolutória em comento.([3]) Mirabete, de seu turno, defende que causas de isenção de pena nos crimes patrimoniais nascem justamente como medidas de oportunidade, de política criminal, considerando que a punição traria prejuízos muito maiores à ordem pública do que benefícios, mormente porque poderia afetar a honra e a paz da família.([4]) Por sua vez, Nucci exemplifica que o furto ocorrido no seio familiar deve ser absorvido pelos cônjuges ou parentes, buscando-se evitar a cizânia entre os membros da família, bem como para protegê-la e não dar cabo ao prestígio por ela auferido.([5]) Nota-se que o Estado prefere renunciar ao ius puniendi para preservar a paz social e familiar como medida de política criminal.
Tendo isso em vista, importante discutir o que se entende hoje por filiação, até mesmo para averiguar que tipos de relações familiares o legislador quis abranger com a escusa absolutória prevista no art. 181, II, do CP. E, nesse ponto, não há como deixar de socorrer aos conceitos próprios do direito de família, ramo do ordenamento que traz diversos institutos aptos a regular as relações entre pais e filhos, cônjuges e conviventes, e também aquelas entre pessoas ligadas por vínculos de consanguinidade, afinidade e afetividade.([6])
Nesse passo, cabe ressaltar que essa aproximação entre Direito Penal e Direito Civil é fundamental para a compreensão do conteúdo de diversas figuras delitivas. Tecendo considerações a respeito da racionalidade do sistema penal na tutela do patrimônio, Velludo Neto defende que o jurista deve, na medida do possível, empregar no âmbito penal conceitos do direito privado, tais como se apresentam. Isso se justifica não só pela preservação da unidade e coerência do ordenamento jurídico, mas também para reforçar o caráter subsidiário do direito penal, que não pode desnaturar completamente os conceitos construídos no direito civil ao importá-los para o mundo do crime, sob pena de criar uma indevida autonomia ao sistema penal e acentuar uma situação de insegurança jurídica.([7])
Com base nesse raciocínio, entendemos que seria ilógica a elaboração de uma figura própria de filiação no campo penal, alheia à constante transformação, evolução e modernização do direito de família. Os laços familiares, hoje em dia, não se restringem mais ao matrimônio e às relações consanguíneas ou biológicas, sobretudo porque a paternidade passou a englobar relações de afeto, carinho, amor, respeito e solidariedade. A antiga família patriarcal, consagrada na hegemonia do poder do pai, discriminação dos filhos, desconsideração das entidades familiares e predomínio de aspectos patrimoniais sobre os afetivos, cedeu espaço a famílias plurais, formadas pela união estável, casamento e comunidades integradas por qualquer dos pais e dos filhos, nas quais o que realmente prevalece é a felicidade recíproca.([8]) Nesse sentido, Cunha Pereira sustenta que a verdadeira paternidade só se torna possível mediante um ato de desejo ou vontade, o que pode ou não coincidir com o elemento biológico.([9]) E é com base nessa visão que se reconhecem e atribuem efeitos jurídicos à chamada filiação socioafetiva, englobando, por exemplo, os adotados e os “filhos de criação”.([10])
Embora o legislador tenha acertadamente incluído a adoção judicial entre as escusas absolutórias dos crimes patrimoniais (parentesco civil), não fez o mesmo com a filiação sociológica do “filho de criação”. E não há razão para essa desigualdade de tratamento. Se entre um padrasto e enteado, por exemplo, houver laços de afetividade, amor e cuidado recíprocos, gerados pela convivência (às vezes até mesmo por longos anos), de modo que ambos se tratem como “pai” e “filho”,([11]) é inaceitável que Estado-juiz imponha uma sanção penal a um deles, caso pratique um furto em detrimento do outro. Isso decorre da própria lógica subjacente à escusa absolutória: preservar a paz, a harmonia e a integridade familiar.
Entretanto, lamentavelmente, não é esse o entendimento que vem se repetindo em vários acórdãos do TJSP. Os julgados, em sua maioria, sequer chegam a discutir eventual relação de afetividade entre a vítima e o ofensor, ou a possível existência de um vínculo de filiação entre eles; simplesmente refutam a aplicação da escusa absolutória, sob o argumento de que ela comporta apenas uma interpretação restritiva.([12]) Muitos deles se baseiam na teoria de Nucci, segundo a qual a condição negativa de punibilidade em apreço cuida apenas dos ascendentes e descendentes em linha reta (pais, mães, avós, filhos, netos, bisnetos etc.), não se incluindo parentes por afinidade e na linha transversal (sogro, genro, nora, cunhado, padrasto, madrasta, enteado, tio, sobrinho, primo etc.).([13]) Trata-se de uma interpretação meramente literal da lei, que despreza não somente as circunstâncias fáticas de afetividade e respeito mútuos, mas também toda a evolução histórica do Direito de Família.
Por fim, vale ressaltar que a importação para o âmbito penal do conceito de “filiação”, tal como se apresenta na contemporânea concepção de direito de família, atribuindo um novo enfoque à relação de ascendência e descendência para além de aspectos biológicos ou civis, não implica, a nosso ver, interpretação extensiva que viola a finalidade da norma. Pelo contrário, trata-se de uma tentativa de harmonizar os ramos do ordenamento jurídico e aproximar o direito penal da realidade social, contribuindo, desse modo, para a construção de um sistema uno e coerente. Infelizmente, ainda precisamos avançar muito nesse sentido!
Carlos Henrique Pereira Alcântara
Mestrando em Direito Penal pela USP.
Notas
[1] Prado, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 8. ed. São Paulo: Ed. RT, 2010. vol. 2, p. 491.
[2] Hungria, Nélson. Comentários ao Código Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. vol. 7, p. 324.
[3] Noronha, E. Magalhães. Direito penal. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. vol. 2, p. 502.
[4] Mirabete, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2001. vol. 2, p. 363.
[5] Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 7. ed. São Paulo: Ed. RT, 2007. p. 772.
[6] Dias, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6. ed. São Paulo: Ed. RT, 2010. p. 34.
[7] Salvador Netto, Alamiro Velludo. Direito penal e propriedade privada – a racionalidade do sistema penal na tutela do patrimônio. Tese de Livre-Docência apresentada à Faculdade de Direito da USP, 2013, p. 42-51.
[8] Welter, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo: Ed. RT, 2003. p. 146-147.
[9] Pereira, Rodrigo da Cunha. Direito de família – uma abordagem psicanalítica. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 119.
[10] Cassettari, Christiano. Efeitos jurídicos da parentalidade socioafetiva. Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Direito da USP, 2013, p. 131-179.
[11] Idem, ibidem, p. 43-50. Segundo o autor, esses são os requisitos essenciais para a existência da parentalidade socioafetiva.
[12] Como exemplo, vide os julgados: Ap 0001872-47.2008.8.26.0462, rel. Des. Renê Ricupiero, j. 14.07.2011; Ap 0002887-69.2003.8.26.0060, rel. Des. Christiano Kuntz, j. 10.04.2008; Ap 0009307-02.2010.8.26.0495, rel. Des. Geraldo Wohlers, j. 08.10.2013; Ap 0001431-86.2009.8.26.0347, rel. Des. Geraldo Wohlers, j. 09.04.2013; Ap 0011774-58.2012.8.26.0664, rel. Des. Francisco Bruno, j. 14.07.2014; Ap 0001872-55.2012.8.26.0220, rel. Des. Grassi Neto, j. 10.10.2013; Ap 0005284-91.2006.8.26.0482, rel. Des. Otávio de Almeida Toledo, j. 26.02.2013. Todavia, não se pode deixar de citar alguns julgados do TJSP que reconhecem a filiação socioafetiva como causa de isenção de pena: Ap 0012269-48.2006.8.26.0071, rel. Des. Carlos Bueno, j. 30.06.2011; Ap 0017262-04.2006.8.26.0664, rel. Des. Ciro Campos, j. 31.10.2007.
[13] Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal comentado cit.,p. 775.
IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040