INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 277 - Dezembro/2015





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Reflexões sobre confisco alargado

Autor: Juarez Cirino dos Santos e June Cirino dos Santos

1. Introdução

O Ministério Público Federal propôs um pacote de 10 Projetos de Leis de natureza penal e processual penal, todos concebidos na perspectiva de uma política criminal repressivo-populista, difundidos nos meios de comunicação sob o atraente rótulo geral de “medidas contra a corrupção” e apresentados sob as seguintes denominações: 1) investimento em prevenção – um projeto que institui regras de accountability para Tribunais e Ministério Público, supondo que o controle estatístico de produtividade teria efeitos no desempenho efetivo da justiça penal; 2) criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos e proteção à fonte de informação – como se a lei penal não punisse com rigor o peculato, a concussão, a corrupção e outros tipos legais, sem qualquer eficácia de prevenção geral ou especial, ou como se o novo sistema de delação protegida não contivesse ameaças reais e potenciais à dignidade humana e à democracia; 3) ampliação da pena da corrupção, promovida a crime hediondo conforme o valor da vantagem indevidaexigida ou recebida – como se a gravidade da pena ou a estigmatização jurídica suplementar tivessem real influência sobre a criminalidade; 4) aperfeiçoamento do sistema recursal penal – como se a redução de recursos, a absurda desnaturação do habeas corpus e a inadmissível execução provisória da pena não destruíssem conquistas fundamentais da civilização contra o cego poder punitivo do Estado; 5) maior eficiência da ação de improbidade administrativa – como se a agilização da ação de improbidade não ameaçasse ou solapasse direitos do acusado, ou os acordos de leniência não fossem mecanismos que transformam inocentes em culpados pelo medo irracional de danos pessoais maiores; 6) ajustes na prescrição penal contra a impunidade e a corrupção – como se a prescrição penal não fosse conquista universal de pacificação social pelo decurso do tempo, mas fator de impunidade no país mais punitivo do mundo, ou aríete da corrupção do agente público, um problema da cultura e da subcultura individualista do capitalismo neoliberal; 7) ajustes nas nulidades penais contra a impunidade e a corrupção (o velho refrão do discurso populista) – como se as nulidades penais não garantissem direitos fundamentais violados pelo Estado autoritário, cujo poder punitivo é ampliado com a relativização das provas ilícitas, seja pela exigência de demonstrar causalidades complexas (entre provas ilícitas e derivadas), seja pela boa-fé do funcionário produtor da prova ilícita, seja pela convalidação dessa prova por sistemas de preclusão, ou pelo dever de aproveitamento judicial dos atos processuais etc.; 8) responsabilização dos partidos políticos e criminalização do “caixa 2” – como se os partidos políticos fossem o motor da corrupção – e não a ideologia individualista das instituições políticas do Estado capitalista –, ou como se fosse possível reduzir a criminalidade pela “criminalização” de registros contábeis paralelos; 9) prisão preventiva para evitar dissipação do dinheiro público – como se houvesse relação entre prisão e sangria dos cofres públicos, ou como se a prisão preventiva tivesse efeitos de prevenção geral e especial que a prisão definitiva não tem, em qualquer tempo ou lugar; 10) por último, o confisco alargado, por medidas de recuperação do lucro derivado do crime – como se essas medidas não existissem sob a forma de efeitos da condenação, genéricos e específicos, na legislação penal, das quais passamos a tratar.

2. A dogmática do confisco alargado

O anteprojeto do Ministério Público Federal sobre confisco alargado introduz o art. 91-A no Capítulo VI (Dos efeitos da condenação), do Código Penal, com as disposições abaixo indicadas.

2.1 Os crimes determinantes da perda patrimonial

O art. 1.o do anteprojeto do MPF determina a perda em favor da União da diferença de valor entre (a) o total do patrimônio do agente e (b) o patrimônio demonstrado como produto de rendimentos lícitos ou de fontes legítimas, pelo agente, nas hipóteses de condenação pelos seguintes crimes: (a) tráfico de drogas; (b) comércio ilegal ou tráfico internacional de armas; (c) tráfico de influência; (d) corrupção ativa e passiva; (e) crimes de responsabilidade de prefeitos e vereadores definidos no art. 1.o do Decreto-lei 201/1967; (f) peculato doloso; (g) inserção de dados falsos em sistema de informação; (h) concussão; (i) excesso de exação qualificado pela apropriação; (j) facilitação de contrabando ou descaminho; (k) enriquecimento ilícito; (l) lavagem de dinheiro; (m) associação criminosa; (n) organização criminosa; (o) estelionato em prejuízo do Erário ou de entes de previdência; (p) prática organizada dos crimes de contrabando e descaminho, receptação, lenocínio e tráfico de pessoas para fins de prostituição, moeda falsa.

2.2 O conceito de patrimônio

O § 1.o define patrimônio como o conjunto de bens, direitos e valores (a) sob domínio do condenado, ou controlados ou usufruídos pelo condenado, com poderes similares ao domínio, mesmo em nome de terceiros (pessoas físicas ou jurídicas), na data da investigação criminal ou civil, (b) transferidos para terceiros, de modo gratuito ou por valor irrisório, nos 5 (cinco) anos anteriores à instauração da investigação, (c) recebidos pelo condenado nos 5 (cinco) anos anteriores à instauração da investigação, ainda que desconhecido seu destino.

2.3 As medidas assecuratórias

O § 2.o prevê aplicação (a) de medidas assecuratórias e (b) de alienação antecipada dos bens, direitos ou valores para garantir a perda referida no art. 1.o do Anteprojeto.

2.4 O processo de execução da perda patrimonial

Após o trânsito em julgado da decisão, o processo de execução da perda patrimonial ocorre no próprio juízo criminal da sentença, na forma da legislação processual civil, por requerimento do Ministério Público demonstrando a existência de patrimônio incompatível com os rendimentos lícitos ou fontes legítimas do condenado (§ 3.o).

2.5 A defesa do condenado

É admitida ao condenado a possibilidade de demonstrar a inexistência da incompatibilidade indicada pelo Ministério Público ou a origem lícita dos ativos, apesar da incompatibilidade (§ 4.o).

2.6 Os direitos de terceiros

Finalmente, é excluída a perda ou constrição de bens, direitos ou valores do condenado reivindicados por terceiros, mediante comprovação da propriedade e origem lícita do direito.

Esse é o conteúdo dogmático-legal do anteprojeto do MPF instituindo o chamado confisco alargado.

3. Considerações político-criminais

As propostas legislativas do Ministério Público Federal apresentam, do ponto de vista político-criminal, uma concepção conservadora e autoritária do Sistema de Justiça Criminal. A ideologia neoliberal e a lógica de mercado que informam as propostas destacam a racionalidade de uma aparente modernização do sistema penal, mas escondem a realidade de uma radical burocratização e administrativização do poder punitivo do Estado capitalista, em prejuízo dos princípios políticos e dos direitos humanos garantidos pelo Estado Democrático de Direito.

4. O direito comparado

As justificações dos anteprojetos destacam que o Brasil é signatário de diversos documentos internacionais (a) que colocam o confisco alargado como diretriz de combate ao chamado crime organizado e (b) integram o País nas práticas de cooperação internacionais dirigidas pela máxima de que “o crime não deve compensar” – coisa que ninguém pode discutir.

Entretanto, a moderna criminologia nega natureza científica ao conceito de crime organizado, utilizado para legitimar o poder repressivo do Estado (a) ampliando o poder de polícia sobre a população e o próprio judiciário; (b) reduzindo complicações processuais pelas investigações sigilosas e o segredo de justiça; e (c) justificando as incompetências políticas na solução dos problemas reais do povo, sempre adiados pelo secular combate aos imaginários “inimigos internos” do Estado racista (hereges e bruxas, comunistas, judeus, negros, traficantes de drogas etc.).

Além disso – e neste caso somos compelidos a dizer – a cantilena de modernização e integração no combate internacional ao crime organizado oculta, por exemplo: (a) no âmbito interno, a Constituição brasileira garante a propriedade (art. 5.o, XXII), que só pode ser expropriada por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro (art. 5.o, XXIV); (b) no plano internacional, a 5.a Emenda à Constituição americana exige o due process of law para privação da propriedade (da vida e da liberdade), sobre a base do contraditório e da ampla defesa, além da absoluta proibição de provas obtidas por meios ilícitos.

5. Conflito entre legalidade e legitimidade

A perda para o Estado do produto ou de qualquer proveito do crime, prevista no art. 91, II, b, do Código Penal, é legítima pela relação causal provada entre crime e lucro, demonstrada pela autoria e materialidade do fato punível. Mas a hipótese de perda da diferença entre (a) o patrimônio total do condenado e (b) o patrimônio demonstrado, pelo condenado, como produto de rendimentos lícitos ou fontes legítimas, é fundado em presunção legal, porque inverte o ônus da prova, rompendo um princípio fundamental do processo penal: a prova dos fatos imputados pertence à acusação, incumbindo à defesa apenas criar uma dúvida razoável, obrigando à decisão segundo o princípio da presunção de inocência, expresso na máxima in dubio pro reo. Nessas condições, o anteprojeto introduz uma legalidade penal em conflito com a legitimidade jurídica da medida, em contradição com o princípio da presunção de inocência e seu corolário do in dubio pro reo, subvertendo a lógica da própria economia de mercado, segundo a qual se presume a licitude do patrimônio privado dos cidadãos, até prova em contrário produzida pelos órgãos do Estado, especialmente por meio do Ministério Público. Num país caracterizado pela cultura e pelo mercado informal de trabalho, em que a propriedade de coisas móveis é transferida pela simples tradição, a inversão do ônus da prova do Estado para o condenado, além de contrariar princípios do processo civil e, em especial, do processo penal, pode criar dificuldades ou obstáculos intransponíveis para o cidadão, especialmente quando está em jogo ou está privado de um bem maior: a liberdade.

6. Conclusão

A providencial iniciativa científica e político-criminal do IBCCRIM, de exame crítico das chamadas Medidas contra a corrupção propostas pelo Ministério Público Federal, introduz o princípio do contraditório no processo legislativo, estimulando abordagens dos anteprojetos de leis apresentadas segundo a perspectiva indispensável da Defesa penal, identificada com os mais legítimos interesses da população e capaz de evitar mudanças na legalidade penal e processual penal que atribuiriam todo poder ao Ministério Público!

Juarez Cirino dos Santos
Professor de Direito Penal da UFPR.
Presidente do ICPC – Instituto de Criminologia e Política Criminal.
Advogado Criminal

June Cirino dos Santos
Especialização em Direito Penal e Criminologia no ICPC.
Advogada criminal.



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