INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 277 - Dezembro/2015





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Anticorrupção ou corruptibilidade das formas?

Autor: Ricardo Jacobsen Gloeckner

Se, como afirma Rui Cunha Martins,([1] ) o processo é o microcosmo do Estado de Direito, a forma seria a espinha dorsal do processo penal. Com efeito, um processo despido de formas, ou melhor, um processo no qual as formas desempenham meras funções acessórias ou laterais, corresponde à própria derrocada das funções exercidas pelo processo, assim como a decretação de sua falência como instituição (lembrando aqui das teorias que enxergam o processo como instituição, na esteira de Fairén Guillén, Couture etc.).

Não é de hoje que a forma processual vem sendo atacada, tanto doutrinária como jurisprudencialmente. No Brasil, em específico, encontramos uma dissociação tal entre as descrições doutrinárias e as formulações dos tribunais que seria possível, sem exagero, afirmarmos que nos encontramos em dois universos distintos, que operariam segundo parâmetros e racionalidades diversas. Uma das propostas legislativas encabeçadas pelo Ministério Público no tratamento da redução à corrupção, seria um “ajuste das nulidades”. De forma preliminar, o “ajuste das nulidades” encerra-se em uma proposta de mais largo espectro, batizada, na falta de melhores denominações, de “pacote anticorrupção”, “medidas anticorrupção” ou ainda, “medidas de combate à corrupção”. O primeiro e imenso problema já ocorre no plano linguístico. De fato, salta aos olhos a impropriedade terminológica (que, contudo, não se esgota neste ponto), utilizada pela legislação, pois o uso de termos como “anti”, “combate” etc., para além de operarem sob a rubrica maniqueísta de duas forças em colisão (o “nós” e o “eles”, que consoante Baratta alicerça um dos pilares da defesa social – princípio do bem e do mal), é sustentada por uma ideologia beligerante ou belicista, que inclusive destaca-se em outras leis, como no caso da Lei 11.343/2006 (war on drugs, war on crime etc.).

Dessa maneira, o primeiro risco, que poderia ser submetido ao escrutínio por meio de uma leitura criminológica crítica, corresponde ao fenômeno que Prittwitz([2] ) denominou como militarização Direito Penal. O segundo risco corresponde à própria transformação do processo penal em um dispositivo político criminal de prima ratio, isto é, convertido em um garantidor da eficiência do Direito Penal. Eis o problema específico que atravessa o corpo dos ajustes, mormente o das nulidades no processo penal. Uma concepção que percebe o processo penal como uma ferramenta exclusiva de aplicação do Direito Penal material (e que, evidentemente, pressupõe uma cisão completa entre direito material e processual, tributária do pensamento de Bulow) tão somente consegue vislumbrar a forma processual como obstáculo. Assim, tornar o processo penal mais “eficiente” requer, sobretudo, a transformação de alguns institutos processuais. Não é à toa que além do recurso à aceleração do processo([3] ) (no mesmo projeto “anticorrupção” encontramos a proposta para o trânsito em julgado da sentença penal condenatória em segundo grau), advoga-se um princípio que se poderia denominar de “elasticidade ou contingencialidade das formas processuais” (cujo escopo é, em última instância, expurgar do ordenamento processual tanto as nulidades como a prova ilícita). Pretende-se abolir quaisquer consequências negativas do desrespeito à forma processual, o que acarretaria a modificação da própria natureza do ato jurídico processual (fattispecie). Os elementos dos atos processuais tornar-se-ão, caso implementadas tais medidas, meros “conselhos normativos” aos magistrados. Por isso, cumprir ou não a forma prescrita para o ato será mera contingência, uma vez que, como referido, a ausência de institutos garantidores contra o desrespeito à forma dos atos processuais tornará iníquo qualquer recurso a remédios processuais. O saneamento ou a convalidação automática desses atos será o corolário de um processo penal que será orientado exclusivamente pelo “princípio da não dispersão probatória”,([4] ) conjugado ao postulado do aproveitamento máximo dos atos processuais (tão ao gosto neoliberal que acaba por se confundir com o princípio da economia processual).

Antes mesmo de adentrarmos na análise do conteúdo trazido pelas reformas, não se pode esquecer de que o termo corrupção, tal como empregado pelos redatores dos conjuntos de medidas, constitui-se como uma via normativa para se garantir a corruptibilidade da forma processual. Em latim, a palavra corrupção advém de corruptus, particípio do verbo rumpere (que significa romper, quebrar). Se, de fato, o termo corrupção admite emprego genérico e aberto, como aquele utilizado na confecção das “medidas” legislativas, a conclusão, portanto, é a de que para se acabar com a corrupção se deve aceitar outra modalidade: a corrupção das formas processuais.

Não é difícil perceber, no “ajuste das nulidades”, a retórica que concebe o processo penal como um mero mecanismo de aplicação da lei penal. A medida n. 7 trata do “ajuste das nulidades penais contra a impunidade e a corrupção” (grifo nosso).

A primeira modificação introduzida pela medida seria, na nova redação dada ao art. 563 do CPP, a fixação de uma espécie de princípio, erigido à categoria jurídica de dever: o do “máximo aproveitamento dos atos processuais”. O parágrafo único do mesmo artigo adverte que a decisão que decreta a nulidade do ato deverá ser fundamentada, inclusive, indicando o motivo pelo qual o magistrado deixou de aproveitar o ato.

A segunda modificação vem operada no art. 564, que cuida de abolir o rol de atos processuais nulos, apresentando uma forma mitigada do princípio da instrumentalidade das formas. O novo art. 564 disporia que todo ato que atingir a sua finalidade não será decretado nulo. No § 1.º do art. 564 o prejuízo será condição necessária para a decretação da nulidade. Por fim, no § 2.º do mesmo artigo consta que o prejuízo não poderá ser presumido, devendo a parte especificar o impacto que a prática irregular do ato trouxe para o contraditório e para a ampla defesa.

A terceira modificação encontra-se no art. 567, que trata da competência. Em suma, o novo artigo dispõe que os efeitos dos atos praticados perante juiz incompetente serão mantidos até a nova decisão proferida pelo juiz competente, da mesma forma no juízo cautelar, salvo “circunstâncias evidentes da incompetência, somadas à negligência do magistrado”.

A quarta modificação introduzida pelo projeto se dá no art. 570, que estabelece a preclusão das nulidades. Os defeitos da fase investigatória, da citação ou denúncia deverão ser julgados pelo magistrado, sob pena de preclusão, até a decisão que analisa a resposta à acusação; já, os vícios que ocorrem entre a decisão que analisa a resposta e a audiência de instrução deverão ser analisados até a abertura da respectiva audiência; no procedimento do júri, as nulidades ocorridas após a pronúncia deverão ser julgadas até o anúncio do julgamento; por fim, os vícios ocorridos na audiência, em plenário ou na sessão de julgamento, deverão ser arguidos e analisados imediatamente.

A quinta modificação, contida no art. 571, diz respeito novamente à preclusão. A nulidade deverá ser arguida na primeira oportunidade pelas partes. Além disso, o § 1.º afirma a inoperância da preclusão quando constatado justo impedimento para a arguição. O § 2.º afirma que, não obstante a preclusão, a parte poderá requerer a renovação do ato, interrompendo-se a prescrição, que será contada a partir do momento em que o ato deveria ter sido alegado.

A sexta modificação encontra-se no art. 572, que trata do saneamento das nulidades. Traz, como primeira causa, a preclusão e a segunda, a concordância implícita da parte  através de ato comissivo ou omissivo).

A sétima modificação, insculpida no art. 573, trata da renovação dos atos decorrentes do não saneamento. No § 1.º, temos o princípio de causalidade, já conhecido do atual sistema (contaminação dos atos subsequentes); no § 2.º, a redação trata do “fracionamento da nulidade” concernente ao “mesmo ato processual”. O § 3.º, ao final, afirma que o juiz deve indicar os atos a serem refeitos, as circunstâncias impeditivas do aproveitamento dos atos, a análise de causalidade entre atos nulos originariamente e/ou derivados e demais providências para a repetição dos atos.

Quanto à primeira modificação, no caput, o art. 563 traz uma “nova” ordem principiológica: a de que todo ato processual deve ser aproveitado ao máximo. Tal dispositivo parece um excerto recortado do Tratado da prova judiciária, de Bentham, aplicado às nulidades. Esquece-se, contudo, que os atos processuais não podem (leia-se não devem) ser avaliados mediante uma análise de custos e benefícios – que em última instância é o vetor sub-reptício incrustrado na formulação do artigo. Os atos processuais, preliminarmente, encontram-se orientados axiologicamente, o que já indica que não podem ser avaliados como se estivéssemos diante de dois interesses de natureza disponível e equivalentes. Na justificativa da medida, afirma-se que o “máximo aproveitamento dos atos” (que traz a nulidade como medida excepcional) é “praticamente unânime pela doutrina”. Dispensável citar-se diversas obras que opinam diversamente, não existindo o tal “panorama pacífico” sobre a excepcionalidade das nulidades.

Em seu parágrafo único, dispensável afirmar que toda decisão deverá ser motivada (art. 93, IX, da CF). Mas, em caso de descumprimento, o que sugerem os redatores? Uma declaração motivada que declara a nulidade de um ato (judicial) imotivado? O defeito da redação não para nisso. Se o juiz deve fundamentar apenas a declaração de nulidade – inclusive justificando-se por não ter “aproveitado” o ato processual –, isso significaria que a não declaração de nulidade não precisa ser fundamentada? Uma vez mais, a péssima técnica empregada.

A segunda modificação sugerida é a alteração do regime do prejuízo. Em primeiro lugar, ocorre o nivelamento entre nulidade absoluta e relativa (apesar desta distinção ser inaplicável ao processo penal), já que todos os atos deverão demonstrar o prejuízo. Segundo, o prejuízo não seria mais presumido. Além, novamente, do recurso a uma categoria própria da economia (prejuízo), deve-se questionar: o prejuízo é uma categoria fática (que depende de prova, portanto) ou normativa? No primeiro caso, se o prejuízo é fático, o juízo de cassação é obstado pela Súmula 7 do STJ. No segundo, se normativo, o artigo exige prova sobre matéria de direito. Além do mais, a concepção injustificadamente estreita dos direitos e garantias fundamentais encontrada no projeto acaba por vincular o prejuízo apenas ao contraditório e à ampla defesa. Isso quer dizer, portanto, que se o juiz, exemplificativamente, aplica ao processo penal uma inversão da carga probatória, tem-se: (a) o ato é nulo independentemente do prejuízo?; ou (b) não havendo lesão direta ao contraditório e à ampla defesa, não teremos nulidades? A redação sugere que o conjunto de princípios e garantias fundamentais, no processo penal, se resumiria a tão somente dois: contraditório e ampla defesa, olvidando-se de todos os demais. Diga-se de passagem que esta circunstância, por si só, revela a inconsistência epistêmica do projeto.

A terceira modificação pretende criar uma nova figura jurídica: aquela do ato inválido e eficaz. Assim, teríamos uma operação de “estabilização do ato processual”, que somente poderá ser desfeita diante de novo julgamento. Contudo, se há a incompetência do magistrado, qualquer ato praticado carece de validade. Sem validade, o ato, como decorrência, não pode possuir efeito. Tal pirotecnia legislativa, inclusive, acaba produzindo uma injustificável metástase no instituto da competência, que perderia seu caráter de elemento da validade do ato processual. Esta transmutação do instituto da competência produziria, como resultado, a equiparação entre atos juridicamente válidos e inválidos (já que todos produziriam efeitos a priori). Portanto, cria-se um limbo processual, no qual o ato inválido produz efeitos até o juiz “competente” cassar a decisão.

A quarta modificação, a exemplo da arguição do prejuízo, ratifica um processo penal composto unicamente de nulidades relativas (desconhecido em qualquer ordenamento processual penal ocidental), já que submete todas as irregularidades processuais ao instituto da preclusão. Novamente, de saltar aos olhos a precariedade técnica da redação, que prevê a preclusão (cuja natureza jurídica é a de uma sanção processual) tomando como destinatário o juiz (!). Assim, a declaração de nulidade estaria preclusa para o magistrado (!), que adquiriria, de acordo com a lei, um dever de atuação positiva, sendo o destinatário de uma sanção processual, cujos efeitos atingem as partes! Em outras palavras, o texto cria uma verdadeira condição impeditiva de ordem potestativa, a incidir sobre direitos alheios!

A quinta modificação, novamente fazendo menção à preclusão, cuida da criação de uma causa interruptiva da prescrição, cujo termo a quo seria justamente o momento preclusivo para a sua arguição, algo tampouco encontrado em ordenamentos alienígenas.

Por fim, a criação (também sem precedentes em outros ordenamentos jurídicos) do princípio do fracionamento da nulidade contido no art. 573, § 2.º, que subverte a estrutura jurídica das nulidades.

A proposta corresponde à tentativa de se criar um processo penal despido de formas. A redação dessas medidas, neste ponto, conseguiu inclusive “avançar” relativamente ao expoente do pensamento autoritário no processo penal brasileiro, Francisco Campos. Enquanto na exposição de motivos do CPP de 1941, as nulidades teriam sido “reduzidas àquele estrito mínimo”, homenagem que Francisco Campos faz a Vincenzo Manzini, a atual proposta visa à eliminação prática das nulidades. O que é proposto é, em analogia à obra de Baudrillard, um “simulacro de processo”, um processo penal mais autoritário do que o autoritarismo conseguiu imaginar...

Ricardo Jacobsen Gloeckner
Doutor em Direito Pela Universidade Federal do Paraná.
Coordenador da Especialização em Ciências Penais da PUC-RS.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS.

[1] Notas
Cunha Martins, Rui. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas, 2013. 

[2] Prittwitz, Cornelius. Sociedade de riesgo y derecho penal. In: Zapatero, Luis Arroyo; Neumann, Ulfrid; Martín, Adán Nieto (Coord.). Crítica y justificación del derecho penal en el cambio de siglo: el análisis crítico de la Escuela de Frankfurt. Cuenca: Universidad de Castilla-La Mancha, 2003.

[3] Apresentamos tais teses em Gloeckner, Ricardo. Risco e processo penal: uma análise desde os direitos fundamentais do acusado. 2 ed. Salvador: JusPodium, 2015.

[4] Dominioni, Oreste. Un nuovo idolum theatri: il principio di non dispersione della prova. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, a. 40, n. 3, . p. 736-773, Milano, 1997.



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