José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
Autor: René Ariel Dotti
“O poder público é o principal responsável pelo congestionamento da Justiça, aponta levantamento realizado pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) em dez Estados do país, além do Distrito Federal” (Folha de S. Paulo, 10.08.2015).
I. Introdução
1. A razoável duração do processo
A Emenda Constitucional 45/2004 acrescentou ao repertório dos direitos e das garantias fundamentais a promessa da razoável duração do processo. O nosso modelo acompanha vários textos internacionais: (a) Declaração Universal dos Direitos do Homem (Paris, 1948, art. VIII); (b) Convenção de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Roma, 1950, art. 6.º); (c) Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966, art. 14, n. 3,c); (d) Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto São José da Costa Rica – 1969, art. 8.º). Também nas modernas Cartas Magnas essa garantia é consagrada: Portugal, artigo 32.º, n. 2 e a Espanha, art. 24, n. 2.
Conforme Canotilho e Moreira, uma importante dimensão do princípio da presunção da inocência e que assume valor autônomo, é “a obrigatoriedade de julgamento no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa (n. 2, in fine)”.([1] )
2. Meios que garantam a celeridade de sua tramitação
Ao leitor cuidadoso do art. 5.º, LXXVIII, da Carta Política, certamente não escapam duas observações: (1.ª) A harmonia da nova disposição com o princípio da dignidade da pessoa humana, como fundamento da República (CF, art. 1.º, III); (2.ª) O enunciado não se limita à proclamaçãoda primeira parte da frase: “são assegurados a razoável duração do processo”, mas é provido de um complemento indispensável para a eficácia da norma: “(...) e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
É evidente que “os meios” para cumprir o mandamento da lei maior não se limitam às alterações legislativas. Eles compreendem, também, a provisão de recursos humanos e materiais e o implemento de medidas administrativas para que os juízos e os tribunais possam melhor cumprir os deveres da prestação jurisdicional. A desburocratização de procedimentos, as alterações em regimentos internos, a especialização da magistratura, a adoção do processo eletrônico, além de inúmeras outras alternativas têm sido sustentadas por entidades representativas dos profissionais do Direito, a exemplo da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras instituições preocupadas com o drama causado pela morosidade dos litígios forenses. Mas não é possível ignorar a obrigação do magistrado para adotar providências endoprocessuais de prevenção e repressão da conduta temerária do procurador da parte, fundado no princípio da lealdade processual, que é um dos deveres deontológicos do causídico: Lei 8.906/1994, art. 33; Código de Ética e Disciplina da OAB, art. 2.º, parágrafo único, II; CPC, art. 14, II e III, c/c o CPP, art. 3.º. Em apropriada monografia, Cruz e Tucci aponta três frentes bem definidas para erradicar ou, pelo menos, atenuar os males das dilações indevidas; “a) mecanismos endoprocessuais de repressão à chicana; b) mecanismos de aceleração do processo; c) mecanismos (jurisdicionais) de controle externo da lentidão”.([2] )
Com relação aos assuntos de Direito Penal e Direito Processual Penal, o espírito da Reforma do Judiciário não admite a restrição ou a anulação das garantias constitucionais já consagradas, como o contraditório e a ampla defesa “com os meios e recursos a ela inerentes” (CF, art. 5.º, LV).
3. O congestionamento das pautas dos tribunais
Poucas palavras são suficientes para explicar a carga oceânica dos feitos encaminhados aos tribunais tendo o Poder Público como o maior litigante. Basta considerar a denúncia do Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, João Ricardo Costa: “A Justiça não consegue atender o cidadão porque os Tribunais e Comarcas estão abarrotados de processos, resultante da má prestação de serviços regulados”, registra a pesquisa “O uso da Justiça e o litígio no Brasil” (Folha de S. Paulo, 10.08.2015). A AMB lançou em Brasília (11.08.2015) o movimento nacional “Não deixe o Judiciário parar”, baseado no aludido levantamento que se refere aos anos de 2010 a 2013 em 11 unidades da Federação. “A estimativa da AMB é de que existem atualmente cerca de 105 milhões de processos na Justiça. Desses, mais de 41 milhões não deveriam estar lá e poderiam ser resolvidos pelos órgãos e empresas competentes” (Folha de S. Paulo, 12.08.2015).
Sob outro aspecto, o STJ, “compõe-se de, no mínimo, trinta e três ministros” (CF, art. 104). No primeiro ano de atividade (1989) a Corte julgou, 3.711 processos enquanto o total em 2014 foi de 390.502!([3] ) E a composição, apesar dos anos e da multiplicação dos feitos, é a mesma!
4. O decurso do tempo, a prescrição e sua causa mater
Independentemente das teorias que procuram justificar esse fenômeno extintivo da punibilidade,([4] ) jamais o pensamento jurídico-penal, desde a sua mais remota formação, pretendeu transferir a responsabilidade pour le temps perdu ao autor do delito ou à sua defesa.
Em um de seus imortais escritos, Nélson Hungria – o líder intelectual e coordenador da comissão que redigiu o Código Penal de 1940 – nos diz que a justiça demasiadamente tardia “não pode alcançar o apoio da certeza que legitima uma condenação. (...) sua serôdia execução já não seria um ato de justiça profícua, mas um simples capricho da vingança”.([5] )
O fenômeno social e jurídico da prescrição criminal ocorre pela confluência de dois fatores determinantes: o decurso do tempo e a inércia do Estado. Essa é a lição do inesquecível mestre Aníbal Bruno conceituando a prescrição como a “ação extintiva da punibilidade que exerce o decurso do tempo, quando inerte o poder público na repressão do crime”.([6] )
Fica muito claro, na própria definição do instituto, que a causa determinante da prescrição é o imobilismo do Estado e não a atuação da defesa na interposição dos recursos cabíveis, cuja demora para julgá-los não pode ser atribuída ao cidadão, mas deve ser debitada ao Judiciário. Em outras palavras: a responsabilidade é de natureza pública. E ainda quando a chicana vencer os limites éticos impostos ao advogado para alcançar o benefício da prescrição, valendo-se da omissão do juiz tardinheiro ou prevaricador, a teoria do domínio do fato deve ser utilizada por analogia, porque ao magistrado incumbe prover a regularidade do processo (CPP, art. 251). Ele tem o poder de controlar a continuidade ou a paralisação da ação tipicamente ilícita (violação de normas éticas legalmente estabelecidas). Com efeito, o partícipe, ou seja, o advogado da parte, não domina, por si só, a reprovável estratégia cujo bom êxito depende da nociva contribuição causal por omissão ou ação do Ministério Público e/ou do Juiz.
II. A mutilação do instituto da prescrição
5. Ensaio de recrudescimento punitivo
O Ministério Público Federal divulgou amplamente um elenco de medidas para o combate à corrupção e à impunidade. Uma delas pretende a ampliação dos prazos da prescrição da pretensão executória da pena, a extinção da prescrição retroativa pela pena concretizada, a suspensão do prazo prescricional pela interposição de recursos especial e extraordinário e novas causas de interrupção. A “Justificativa” (rectius: Exposição de Motivos) do específico Anteprojeto de Lei, está impregnada de alegações generalizadoras e grosseiras em ofensa ao princípio do art. 133 da CF, servindo de exemplo a difamatória frase: “A busca da prescrição e consequente impunidade é uma estratégia da defesa paralela às teses jurídicas, implicando o abuso de expedientes protelatórios”. O disparate desse discurso omite o fato de que tal manobra pode e deve ser obstada por um magistrado atento e um Ministério Público diligente. E até mesmo por assistente do MP, se houver.
6. Anteprojeto
“Art. 110. A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, acrescidos de 1/3”.
Observações: Conforme o texto vigente, o aumento de um terço se deve à reincidência. A majoração prevista no anteprojeto perde substância e a melhor orientação é a supressão desse acréscimo, ampliando-se, de lege ferenda, o conteúdo da Súmula 220 do STJ (“A reincidência não influi no prazo da prescrição da pretensão punitiva”) para abranger também a hipótese da pretensão executória. Essa opinião está em harmonia com a doutrina que sustenta a inconstitucionalidade da agravante da reincidência (CP, arts. 61, I e 63), considerando-a como dupla punição e também como restauração de formas autoritárias da culpabilidade (em função do caráter e da personalidade).([7] )
7. A malsinada Lei 12.234/2010
O MPF segue os rastros perniciosos da Lei 12.234/2010 que restaurou disposição da Lei 6.416/1977 para excluir a hipótese da data anterior ao recebimento da denúncia ou queixa como termo inicial para a prescrição. Assim fora consagrado pela Súmula STF 146 e o § 2.º do art. 110 do CP, introduzido com a Lei 7.209/1984. Com esse nefasto atraso, abriu-se a possibilidade para a violação aberta do princípio da razoável duração do processo. Por exemplo: a investigação pelo crime de lesão corporal leve (CP, art. 129: detenção de 3 meses a 1 ano), pode ser exageradamente prolongada (por negligência funcional ou outra causa), em caso de indiciado foragido e ocorrendo a hipótese do § 2.º do art. 77 da Lei 9.099/1995. No entanto, a denúncia ainda pode ser oferecida e recebida dias antes do limite de 4 (quatro) anos, que é o prazo da prescrição da pretensão punitiva (CP, art. 109, V). O paradoxo é intolerável: a demora para o início da ação penal é muito maior que a sanção cominada à infração!
8. Anteprojeto
“Art. 110. (...) § 1.º A prescrição, a partir da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, e antes do trânsito em julgado definitivo do feito, regula-se pela pena aplicada, sendo vedada a retroação de prazo prescricional fixado com base na pena em concreto”.
Observações: Com o argumento pífio de que “a prescrição retroativa não existe virtualmente em nenhum outro país do mundo” e a alegação ad terrorem de que o “sistema prescricional [brasileiro é] condescendente com a criminalidade”, a Exposição de Motivos do disegno di legge joga mais sal na terra em que floresceram a jurisprudência e a doutrina da extinção da punibilidade pela pena fixada na sentença.
Com esse desconchavo, fica revogada a prescrição intercorrente, ou seja, a que é caracterizada pelo lapso de tempo entre a data do recebimento da inicial e a sentença condenatória. Para demonstrar o absurdo dessa modalidade de “solução final” contra a impunidade, que é, alegadamente, causada apenas pelo decurso do tempo, vide a hipótese de uma condenação de 2 (dois) anos pelo delito de estelionato, mas em sentença proferida 8 (oito) anos após recebida a denúncia, sem que a defesa tenha provocado o retardamento. No regime vigente, a prescrição da ação penal pela pena concretizada ocorreria em 4 (quatro) anos (metade do tempo do citado processo hipotético) e deveria ser declarada já na sentença. Mas, a valer tal a proposta, o acusado poderia ficar bem mais de uma década (no total) às voltas com o processo. Considerando-se o interesse público na extinção da punibilidade, declarável de ofício pelo juiz (CPP, art. 61), torna-se evidente o constrangimento abusivo e frustrados o espírito e a letra da garantia constitucional (art. 5.º, LXXVIII).
9. Anteprojeto
“Art. 112. Depois de transitar em julgado a sentença condenatória, a prescrição começa a correr: I – do dia em que transita em julgado, para todas as partes, a sentença condenatória ou a que revoga a suspensão condicional da pena ou o livramento condicional”.
Observações: Segundo o texto em vigor (CP, art. 112), “No caso do art. 110 deste Código, a prescrição começa a correr do dia em que transita em julgado a sentença condenatória, para a acusação, (...)”. Sem qualquer razão a pretendida mudança. Como é elementar, o controle do curso do tempo e as intervenções para suspensão ou interrupção dos prazos prescricionais, constituem deveres intransferíveis do Estado que exerce o monopólio do ius puniendi. O réu não pode ser chamado a esse litisconsórcio negativo simplesmente porque o seu interesse é oposto.
O comentário de Betanho e Zilli ao art. 112 do CP, é bem precisa: “O CP na orientação anterior à Reforma Penal, ao dispor sobre o início da prescrição após a sentença condenatória, não se referiu expressamente ao trânsito em julgado; mas a jurisprudência, em face do princípio da impossibilidade da majoração da pena (na reformatio in pejus), já considerava que devia ser levado em conta o trânsito em julgado para a acusação (e não necessariamente para ambas as partes). A Lei 7.209/84, agasalhando essa interpretação, foi expressa ao dispor que a prescrição da pretensão executória começa a correr do dia em que transita em julgado a sentença condenatória para a acusação. Diante da clareza do texto legal, a corrente jurisprudencial que ainda exigia o trânsito em julgado para ambas as partes (RT 456/424) ficou superada”.([8] )
10. Anteprojeto
“Art. 116. Antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre: I – (...); II – (...) III – desde a interposição dos recursos especial e/ou extraordinário, até a conclusão do julgamento.
Parágrafo único. Depois de passada em julgado a sentença condenatória, a prescrição não corre durante o tempo em que o condenado está preso por outro motivo, foragido ou evadido”.
Observações: Nenhuma necessidade para a sinonímia “passar” quando em dispositivos anteriores é utilizada a palavra já consagrada : “transitar” (em julgado).
Essa proposta já consta do Projeto de Lei 156, de 2009, art. 505, § 3.º, aprovado pelo Senado Federal (2010) e que encontra-se na Câmara dos Deputados (PL 8.045/2010). Mas não deve prosperar porque afronta o princípio da amplitude da defesa, nela compreendido o emprego de meios “e recursos a ela inerentes” (CF, art. 5.º, LV). É elementar que o direito aos recursos legalmente cabíveis – garantia fundamental vinculada à presunção da inocência – não pode sofrer o obstáculo à fluência do prazo prescricional em função de seu próprio exercício.
11. Anteprojeto: novas causas de interrupção da prescrição
Observações: Entre as novas causas propostas para interromper a prescrição consta a substituição da decisão do juiz pelo simples oferecimento da denúncia ou queixa (CP, art. 117, I). Nada mais excêntrico. O Ministério Público é parte na relação processual competindo-lhe, privativamente, a promoção da ação penal pública (CF, art. 129, I). Não lhe é conferido o poder de controle jurisdicional sobre a aptidão ou inépcia da inicial acusatória que é ínsito ao magistrado quando recebe ou rejeita a petição. Trata-se de manifestação personalíssima e sujeita ao requisito constitucional da fundamentação, sob pena de nulidade (CF, art. 93, IX). A mesma objeção vale para o PL do Senado 658/2015.
René Ariel Dotti
Professor Titular de Direito Penal, Corredator dos projetos que se converteram nas leis 7.209 e 7.210/1984.
Vice-Presidente Honorário da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP).
Advogado.
[1] Notas
Canotilho, J.J. Gomes; Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Ed., 2007. vol. 1.º, p. 519. (destaque do original).
[2] Cruz e Tucci, José Rogério. Tempo e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 146.
[3] Relatório Estatístico de 2014 do STJ.
[4] Em sua inesgotável capacidade de pesquisa, Nélson Hungria enumera algumas teorias principais: teoria da prova;teoria da readaptação (praesumptio vitae emendatae); teoria da expiação moral ou indireta; teoria do esquecimento; teoria psicológica; teoria da equidade; teoria da extinção dos efeitos antijurídicos. Até mesmo uma exótica especulação adota a analogia civilística: a aquisição do (suposto) direito à impunidade, pela inação ou negligência dos órgãos estatais incumbidos da reação penal (Novas questões jurídico-penais. Rio de Janeiro: Editora Nacional de Direito Ltda, 1945. p. 113).
[5] Novas questões jurídico-penais, cit., p. 112.
[6] Direito Penal – Parte geral.Rio de Janeiro: Forense, t, 3.º, p. 209.
[7] Silva Franco, Alberto. Sobre a não recepção da reincidência pela Constituição Federal de 1988. Breves anotações. Direito penal na atualidade – Escritos em homenagem ao Professor Jair Leonardo Lopes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 5; Cirino dos Santos, Juarez. Direito penal – Parte geral. 3. ed. Curitiba: ICPC Lumen Juris, 2008. p. 580-581; Dotti, René Ariel. Curso de direito penal. 5. ed. São Paulo: Thomson Reuters/Revista dos Tribunais, 2013. p. 653-654.
[8] Betanho, Luiz Carlos; Zilli, Marcos. Código Penal e sua interpretação: doutrina e jurisprudência. Coordenação de Alberto Silva Franco e Rui Stoco. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 591 (destaque meu).
IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040