INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 277 - Dezembro/2015





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Mudanças no Sistema Recursal: só esqueceram de combinar com a Constituição...

Autor: Aury Lopes Junior

Mais uma medida oportunista e de efeito sedante da opinião pública, é assim que podemos definir o “pacotaço-punitivista-do-MPF”. É óbvio que não se está a fazer qualquer apologia à corrupção, um crime grave e uma conduta extremamente danosa para a sociedade. Punir é necessário e civilizatório, mas medidas assim, casuísticas e claramente populistas, em nada contribuem para uma discussão séria sobre o problema. Mais do que oportunismo, existe um engodo nesse movimento: aproveitando a onda de revolta com a corrupção, produzida pela operação Lava Jato, vem a proposta punitivista com esse apelo e pano de fundo. O problema é que as propostas afetarão a todos os crimes e a todos os processos penais, não só os de corrupção. Isso não está sendo dito e tampouco medido o impacto penal, processual penal e penitenciário que elas terão. São medidas vendidas para “dar conta de punir os grandes casos de corrupção”, os maxiprocessos e os poderosos, mas quem realmente pagará essa fatura serão os milhares de acusados descamisados, em milhares de processos criminais da criminalidade clássica, por crimes completamente diferentes e onde elas serão absurdamente excessivas e desnecessárias.

Ademais, muitas dessas medidas são claramente inconstitucionais, fomentando a certeza de que se está “jogando para a torcida” e não para o aperfeiçoamento do sistema de administração da justiça. Não sem razão, em recente entrevista, o Ministro Gilmar Mendes sintetizou da seguinte forma: “Precisamos nos perguntar o que eles esqueceram na hora de formular essa proposta. E a resposta é clara: a Constituição”.( [1] ) Enfim, estão querendo “lavar a jato o processo penal”, e com isso não se pode pactuar. Punir é necessário, mas sem atropelar as regras do jogo, pois é possível (e exigível) garantir para punir e punir garantindo. Inobstante o defeito genético de muitas medidas, faremos uma breve análise das propostas de alteração do sistema recursal.

Há certo consenso entre os juristas de que o sistema recursal do CPP precisa ser revisado, até para acabar com recursos inúteis (como, v.g., a carta testemunhável) e sistematizar melhor os já existentes. Algumas mudanças inclusive decorrem da entrada em vigor do NCPC e que irão afetar direta ou indiretamente o processo penal. Mas não é disso que trata o pacote do MPF. O que se quer é o “aparelhamento” da parte( [2] ) acusadora em detrimento da defesa, em claro desequilíbrio de tratamento processual em um vale-tudo-punitivista. Desvelada a ideologia da proposta, vejamos algumas questões mais sensíveis.

O “Anteprojeto de Lei” 7 pretende inserir o art. 580-A, para que se o tribunal, de ofício (conveniência inquisitória) ou a requerimento de parte, verificando que o recurso é “manifestamente protelatório ou abusivo o direito de recorrer”, certifique o trânsito em julgado da decisão recorrida. Vários problemas emergem de uma rápida leitura. Primeiro, qual é o limite entre uso e abuso do direito de recorrer? Qual a distinção entre recurso protelatório e a ampla (defesa) utilização dos recursos legalmente previstos? É evidente que isso desloca para o julgador o poder de vida e de morte do direito de defesa a partir dos seus referenciais, do seu “livre convencimento”, com todos os riscos e perigos que encerram o decisionismo e o “decido conforme a minha consciência”, à exaustão denunciados por Lenio Luiz Streck.( [3] ) Significa ampliar os espaços impróprios da discricionariedade judicial e elevar o nível de subjetividade do julgamento ao patamar de alinhamento com a “filosofia da consciência”. É óbvio que não podemos depender disso quando se trata do direito de defesa e do acesso ao duplo grau de jurisdição. Se o recurso preenche os requisitos objetivos (tempestividade, cabimento e adequação) e subjetivos (legitimidade e gravame),( [4] ) deve obrigatoriamente ser conhecido. Se o tribunal dará ou não provimento, é outra questão, mas deve ser conhecido. Jamais haverá abuso do direito de recorrer quando a parte, objetivamente, preenche os requisitos recursais. Isso é um mínimo de legalidade processual ou, melhor ainda, de tipicidade processual. O projeto pretende criar, a partir de expressões como “abusivo” e “manifestamente protelatório” – que sofrem de anemia semântica (Alexandre Morais da Rosa) – um espaço impróprio para o “decisionismo”, por onde poderá fazer a “sua (in)justiça” um julgador comprometido com a “limpeza social” ou com o “justicialismo”. Cláusulas assim, e o CPP está cheio delas, a começar pela prisão para garantia da ordem pública, passando pela teoria do “prejuízo” nas nulidades, já mostraram a que e a quem servem. Pior ainda é a sanção: imediato trânsito em julgado, com vedação de efeito suspensivo para eventual recurso que ataque essa decisão!

O Anteprojeto de Lei 8 trata do “pedido de vistas nos tribunais”. Inicialmente cumpre fazer uma ressalva por respeito à gramática: o correto é “pedido de vista”. Constitui um erro grosseiro pedir “vistas” como contido no texto apresentado, pois a expressão deve sempre ser empregada no singular (vista).( [5] ) Superado o tropeço inicial, segundo o texto, o julgador que pedir “vistas” (rectius “vista”) terá o prazo correspondente a cinco sessões para estudar o caso e, após, reapresentar o processo para continuidade do julgamento. A questão é: qual a sanção em caso de descumprimento? Nenhuma. Ou seja, uma vez mais incorrem na equação por nós já denunciada inúmeras vezes: prazo-sanção=ineficácia. Portanto, um anteprojeto de lei que, a título de combate à (de)mora jurisdicional, será midiaticamente aplaudido, mas juridicamente é natimorto.

O Anteprojeto de Lei 9 trata da revisão dos recursos. Na primeira linha da “Justificativa” está a demarcação ideológica: “o principal gargalo para a eficiência da justiça criminal e o enfrentamento à corrupção é o anacrônico sistema recursal brasileiro”. Elementar que não concordamos com o reducionismo da afirmação e com o deslocamento feito. O sistema recursal precisa ser revisado e reformado (não só para os crimes de “corrupção”, mas para todos os delitos), mas não é por isso que assistimos ao entulhamento dos tribunais. O problema inicia muito antes, na panpenalização e na banalização do próprio acusar, findando na falta de estrutura (material e pessoal) dos tribunais brasileiros.

O excesso de recursos é sintoma e não causa. Sem falar que também é reflexo de uma enxurrada de decisões teratológicas e recorrentes abusos do poder punitivo. Obviamente que, sob o olhar da “eficiência”, o ideal é que nem recurso (defensivo, é claro) houvesse... Depois vem o populismo penal de que o combate à corrupção está prejudicado pelo anacrônico sistema recursal. Errado, primeiro porque a corrupção é um problema cultural que exige uma profunda mudança dos valores de uma sociedade em crise, que usa uma moral à la carte (Morin, Prigogine, Bruckner, Bauman, et al.); segundo porque já é uma conduta tipificada e punível; terceiro porque o problema da “eficiência” inicia lá na (crise da) investigação preliminar, sendo a fase recursal o que menos influi; quarto, se forem argumentar que os recursos geram a prescrição (e o pacote prevê a suspensão), o deslocamento é ainda mais grosseiro; por último, as mudanças afetam a todos os processos, por qualquer crime, tanto da justiça federal como também estadual (sempre esquecida em iniciativas como essa e que, quantitativamente, responde por uma demanda muito maior).

O anteprojeto inicia revogando o § 4.º do art. 600, que assegura à defesa o direito de apresentar as razões no tribunal. Trata-se de medida também já discutida e aprovada no Projeto de Código de Processo Penal em trâmite, mas que muito pouco representa para a almejada “celeridade” que norteia a proposta.

Segue “criminalizando” os embargos declaratórios, deixando de lado que eles nem precisariam existir se as decisões tivessem um mínimo de “suficiência”. Se existem, e em quantidade elevada, é (mais um) sintoma de que a administração da justiça não vai bem. Ficam proibidos os embargos declaratórios sucessivos e vão além: punição severa para os “manifestamente protelatórios” (de novo a cláusula genérica para municiar o decisionismo). Multa pesada e, se opostos novos embargos protelatórios no “curso do mesmo processo”, a multa pode ser elevada em até 10 vezes e será vedada de interposição de qualquer outro recurso até o depósito do valor respectivo. Sim, tem que pagar a multa para poder interpor os demais recursos cabíveis. Será que existe cerceamento de defesa e limitação recursal?

Mais grave é a revogação do art. 609, parágrafo único, do CPP, matando os Embargos de Nulidade e também os Infringentes. Trata-se de permitir a condenação total ou parcial por 2x1, ferindo de morte a ampla defesa e a própria presunção de inocência, na medida em que não mais se permitiria a ampla discussão até a superação da dúvida razoável. Graves injustiças seriam cometidas, basta ver a quantidade de Embargos Infringentes e de Nulidade anualmente acolhidos nos tribunais brasileiros com a reversão de condenações. A própria reforma do CPC, a despeito de ter extinguido formalmente os Embargos Infringentes, os manteve na dimensão substancial, na medida em que permite a continuidade (inclusive é obrigatória, acabando com o caráter voluntário do recurso) do julgamento em caso de decisão não unânime, por meio da chamada suspensão de julgamento de acórdãos não unânimes, presente no art. 955 do NCPC.

No mesmo sentido é um erro extinguir os Embargos de Nulidade, inclusive porque viola uma regra básica do sistema recursal: o necessário esgotamento nas esferas inferiores para ascender aos tribunais superiores. Enfim, um grande erro que leva de volta ao ponto nevrálgico da nossa divergência em relação ao “pacotaço-punitivista”: se o problema é a demora nos julgamentos, a solução constitucionalmente orientada é melhorar as condições da administração da justiça e não limitar os acessos democraticamente construídos para se chegar até ela. A (de)mora deve ser combatida com “mais jurisdição” e não com “menos acesso à jurisdição”. Do contrário, que se rasgue a Constituição de uma vez por todas e desistamos do projeto democrático. E é esse o viés ideológico da imensa maioria das propostas apresentadas no pacotaço-punitivista-do-MPF.

Mas o pior está por vir, em duas propostas radicais: (a) alteração e (mais) limitação do habeas corpus; e (b)  possibilidade de execução provisória da pena.

Ambas exigiriam análises monográficas separadas, mas temos que nos limitar a alguns poucos parágrafos para apresentar as propostas. Como se não bastassem as limitações já impostas pelos tribunais brasileiros (o famoso “não conheço”, mas dou-de-ofício-quando-quiser), o anteprojeto estabelece seis casos em que “a ordem de habeas corpus não será concedida”! Inicia vedando a concessão de ofício (salvo quando for caso de prisão manifestamente ilegal); segue proibindo – genericamente – a concessão de liminar (repetindo o “salvo” anterior...); quando houver supressão de instância (precisaria disso?); condicionando à “prévia requisição de informações ao promotor natural da instância de origem” (mas o que é isso! e essa figura híbrida e malformada de “promotor natural”( [6] ) existe desde quando?); finalizando com a proibição de HC para discutir nulidade, trancar investigação ou processo e como sucedâneo de recurso. A inconstitucionalidade e os absurdos de tais limitações ao HC saltam aos olhos.

Também se percebe um deslize de arrogância institucional preocupante, pois pretende uma parte (e o MP é uma parte acusadora artificialmente construída, como já explicamos) limitar e determinar como deve – legislativamente – se postar o julgador. Ademais, legisla em causa própria e para desequilibrar em seu próprio benefício. E chega ao extremo de pretender vedar a concessão de HC em determinados casos! Ora, convenhamos, teriam sido mais coerentes se propusessem logo a extinção do HC ou somente o permitissem quando o MP desse parecer favorável à concessão da ordem...

Depois de mudar o sistema recursal para atender as conveniências do acusador e limitar ao máximo a concessão do HC, é claro que faltava o grand finale: ressuscitar a “prisão cautelar obrigatória”, com a possibilidade de execução antecipada da pena após a decisão proferida em segunda instância. Não só é um retrocesso, pois já passamos dessa fase, como também utiliza de um argumento falacioso: o de que a “eficiência do combate à criminalidade” está comprometida porque ninguém pode ser preso antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Esse argumento é midiaticamente sedutor, mas juridicamente fraudulento. Qualquer pessoa pode ser presa durante a investigação, fase processual ou mesmo recursal, basta que se tenha fumus commissi delicti e periculum libertatis. Havendo “necessidade”, qualquer pessoa pode ter a prisão preventiva decretada durante a fase recursal. O que é claramente inconstitucional, excessivo e desnecessário é o instituto da prisão-cautelar-obrigatória (que, se cautelar, jamais pode ser obrigatória e vice-versa), algo que já se teve e não se quer mais. Um grave e desnecessário retrocesso civilizatório e processual.

Dessarte, em que pese todo o imenso respeito que temos pelo MPF, as propostas são uma grande decepção. Mais do que inconstitucionais, muitas são juridicamente (e institucionalmente) arrogantes e antidemocráticas. Representam não só um desrespeito com o cidadão (pois o imputado também o é), mas também com o próprio Poder Judiciário, especialmente com as tais “proibições” de concessão de HC. Punir é necessário, mas não dessa forma e com esse custo democrático, constitucional e civilizatório. Lamentável.

Aury Lopes Junior
Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid (1999).
Professor Titular no Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado, em Ciências Criminais da PUC-RS.
Coordenador do Curso Telepresencial de Especialização em Ciências Penais da LFG/Anhanguera.

[1] Notas
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-mar-24/ministros-advogados-apontam-inconsistencias-propostas-mpf>.

[2]   Como explicamos em nossa obra Direito processual penal, 12. ed., publicada pela Editora Saraiva: “Para aqueles que por ingenuidade ou conveniência ainda sustentam que no processo penal o Ministério Público é uma parte imparcial, recomenda-se a leitura de CARNELUTTI (Poner en su puesto al Ministerio Publico. In: Cuestiones sobre el Proceso Penal. Trad. Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires, Librería el Foro. 1960. p. 211 e ss.), que, em diversas oportunidades, pôs em relevo a impossibilidade de la cuadratura del círculo: ¿No es como reducir un círculo a un cuadrado, construir una parte imparcial? El ministerio público es un juez que se hace parte. Por eso, en vez de ser una parte que sube, es un juez que baja. Em outra passagem (Lecciones sobre el Proceso Penal, v. II, p. 99), CARNELUTTI explica que não se pode ocultar que, se o promotor exerce verdadeiramente a função de acusador, querer que ele seja um órgão imparcial não representa no processo mais que uma inútil e ‘hasta molesta duplicidad’. Para GOLDSCHMIDT (Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal. Barcelona, Bosch, 1935. p. 29), o problema de exigir imparcialidade de uma parte acusadora significa cair en el mismo error psicológico que ha desacreditado al proceso inquisitivo, qual seja, o de crer que uma mesma pessoa possa exercitar funções tão antagônicas como acusar, julgar e defender. O Ministério Público – felizmente – é uma parte artificialmente construída para ser o contraditor natural do sujeito passivo e, com isso, criar as condições de possibilidade para que tenhamos um juiz imparcial (o único imparcial no jogo processual) e um sistema acusatório”.

[3]    Impossível, neste curto espaço, analisar tão complexa questão, de modo que remetemos o leitor para os inúmeros trabalhos já publicados por Lenio Luiz Streck sobre o “decisionismo” e o “solipsismo” em suas colunas no sitio <www.conjur.com.br> e também em suas obras, especialmente no Verdade e consenso e O que é isto, decido conforme a minha consciência?

[4]    Conforme a classificação por nós adotada na obra Direito processual penal, cit., p. 987 e ss.

[5]    Nesse sentido explica Adalberto Kaspary na obra Habeas Verba – português para juristas, Livraria do Advogado, 1994, p. 211.

[6]    Uma corruptela da figura do “juiz natural”, sem qualquer base constitucional ou convencional e tampouco sentido processual.



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