José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
Autor: Alberto Silva Franco
Há quase dez anos, um artigo publicado no Boletim do IBCCRIM (abril/2006), chamava a atenção do leitor para o fato de que o legislador constituinte de 1988 se substituíra ao legislador ordinário na medida em que dele excluiu os critérios de reconhecimento de dignidade penal, de necessidade de tutela penal e de lesividade em relação a determinados bens jurídicos, transformando-os em bens jurídicos constitucionais, exigíveis, contudo, de criminalização na legislação infraconstitucional.
As normas constitucionais criminalizadoras estão inseridas no art. 5.º da Constituição Federal e, entre elas, ganhou destaque o inciso XLIII desse artigo que criou o denominado crime hediondo. “Crime com tal denominação jurídica não tem antecedente no Direito Penal brasileiro, nem origem em Direito Penal alienígena”, nem substrato no discurso criminológico. “Cuida-se, portanto, de nomenclatura penal sem passado”, desprovido de balizas demarcadas pelo legislador constituinte e, portanto, “carente de explicitação, nos seus elementos de composição, por parte do legislador infraconstitucional”.( [1] )
Por que um crime é hediondo?
“Essa é a indagação fulcral que demanda resposta. Não basta recorrer aos dicionários da língua portuguesa para desvendar a área de significado do conceito de hediondez. Definir a partir daí o que seja crime hediondo seria transformar a tarefa do legislador em um mero exercício de tautologia”.( [2] )
A missão do legislador ordinário é, sem nenhuma margem de dúvida, indicar o conteúdo e os limites dentro dos quais se acomoda o conceito de crime hediondo. E tal postura, como já dizia Guimarães Rosa, principia mesmo por uma palavra pensada. Palavra pegante dada ou guardada, que vai rompendo rumo. Ora, o legislador penal não abriu rumo algum na direção da noção de crime hediondo porque não chegou a ter sobre ele uma só palavra pensada. E não lhe faltavam dados para a construção do conceito (gravidade objetiva do fato, meios e modos de execução, finalidade iluminadora da ação, o animus lucri faciendi, o dano provocado etc.), nem para fixar a espécie e a quantidade das penas comináveis. Em lugar de preencher os elementos de formatação da nova categoria penal, o legislador infraconstitucional preferiu se utilizar de um mecanismo seletivo de todo inapropriado: a etiqueta pregada em tipos já existentes ou reformulados ou, posteriormente, criados no ordenamento penal.
Com extrema propriedade, Nilo Batista ressalta que o legislador constituinte pediu que o significado de crime hediondo fosse devidamente elucidado, mas “o legislador, ao invés de empreender a tarefa definidora, apresentou um cardápio; a Constituição pediu-lhe uma definição, ou seja, uma declaração da essência-significado dos crimes hediondos e ele respondeu com uma seleção arbitrária, é dizer, uma rotulação sem método ou critério (...) O encargo de definir os crimes hediondos que a Constituição impôs ao legislador ordinário é algo muito diferente da voluntariosa escolha de alguns tipos penais, arbitrariamente selecionados ao sabor das idiossincrasias conjunturais. Aquele encargo não foi cumprido”.( [3] )
E a não explicitação conceitual de crime hediondo deu azo, a partir de sua lei criadora (Lei 8.072/1990), à formulação de várias outras leis penais nas quais foi apensada, como simples marca, a categoria de crime hediondo (Leis 8.930/1994, Lei 9.677/1998, 9.695/1998, 12.978/2009, 13.104/2015, 13.142/2015 ). Essa barafunda de leis penais serviu para aumentar significativamente o número de delitos já indicados na Lei 8.072/1990. O homicídio simples, o homicídio qualificado, com o acréscimo recente da qualificadora do feminicídio, a lesão corporal dolosa gravíssima e a lesão corporal seguida de morte, nos termos da Lei 13.142/2015, o estupro de vulnerável, a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, o favorecimento à prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança, de adolescente ou de vulnerável, o genocídio foram alguns dos delitos acrescidos à lista originária. Outros delitos, também incluídos na Lei 8.072/1990, foram modificados em seus termos compositivos, como, por exemplo, o delito de estupro ou tiveram penas aumentadas, como no sequestro qualificado pela morte, ou foram suprimidos como o atentado violento ao pudor, incorporado na nova noção de estupro ou o art. 270 do Código Penal que deixou o rol dos crimes hediondos, mas manteve o preceito sancionatório então cominado. Como se verifica, a falta de uma noção adequada de crime hediondo permitiu um desequilíbrio na ordem axiológica dos bens jurídicos a serem tutelados e uma banalização total do processo legislativo penal.
No momento presente, no qual a atmosfera pública nacional, em virtude de flagrantes conflitos político-sociais e de desgastante situação econômica, está exacerbada, seria, por certo, recomendável, a não inclusão de novos delitos no quadro dos crimes hediondos, não apenas porque ainda não foi definido seu contexto jurídico, como também, porque, nesta altura, caberia um reexame de todo o conjunto legislativo sobre a matéria, sobretudo em face da visível desproporcionalidade punitiva já detectada.
No entanto, ganha vulto, em razão da chamada Operação Lava-Jato, projetos de lei propostos por Procuradores da República no sentido de pôr fim ao estado de corrupção reinante no país. Busca-se assim, por meio de anteprojeto de lei de iniciativa popular (art. 61, § 2.º, da CF), alimentado pela mídia, incluir na lista de crimes hediondos o peculato (art. 312 e § 1.º do CP), inserção de dados falsos em sistema de informações (art. 313-A do CP), concussão (art. 316 do CP), excesso de exação qualificada pela apropriação (art. 316, § 2.º, do CP), corrupção passiva (art. 317 do CP), corrupção ativa (art. 333 do CP) quando a vantagem ou o prejuízo é igual ou superior a cem salários-mínimos vigentes ao tempo do fato e a estrutura de novo modelo penal aderida ao art. 327-A do CP. Mais cinco outros tipos, com letra ou parágrafos, ingressam no elenco dos crimes hediondos, transformando-os em uma verdadeira torre de babel.
Cabe, aqui, antes mesmo de adentrar na questão da inclusão dessas figuras típicas na categoria de crimes hediondos, que se examine, de pronto, o posicionamento adotado pelos formuladores do anteprojeto de lei no que tange aos preceitos sancionatórios relativos aos crimes mencionados no parágrafo anterior. Todos eles tiveram sua pena mínima dobrada (de 2 para 4 anos) e isso, inquestionavelmente, significa atribuir ao fato criminoso uma maior gravidade. Por outro lado, a pena máxima, exceção feita a do art. 316 do Código Penal, conservou a já existente, ou seja, a de doze anos. Ainda que se entenda que o ambiente de intranquilidade reinante no país não seja adequado a uma reformulação punitiva, não parece que se deva condenar a agravação proposta. Todos os delitos, cuja punição mínima foi dobrada, assumiram, no presente século, uma relevância maior, justificadora desse agravamento punitivo. Os bens jurídicos tutelados necessitam, sem dúvida, de proteção mais forte, em face da constância e alto nível de ofensas que passaram a sofrer na última década e na presente.
No entanto, não se pode concordar, de forma alguma, com a sugestão contida no novo 327-A pelo qual as penas dos arts. 312 e § 1.º, 313-A, 316 e § 2.º, 317 e 333 se tornam molduras móveis, isto é, os polos punitivos variáveis de 7 a 15 anos, de 10 a 18 anos e de 12 a 25 anos, se a vantagem ou o prejuízo for igual ou superior, respectivamente, a 100, a 1.000 ou a 10.000 salários mínimos vigentes ao tempo do fato. E tal tabela é aplicável, sem prejuízo das causas de aumento ou de diminuição previstas na Parte Geral ou Especial do Código Penal.
Tal proposta é, no mínimo, desarrazoada.
Primeiro, porque se trata de uma invasão indevida do ordenamento punitivo norte-americano no sistema brasileiro. “Ao legislador compete, desde logo, estatuir as molduras penais cabidas a cada tipo de factos que descreve na PE do CP e em legislação extravagante, valorando para o efeito a gravidade máxima e mínima que o ilícito de cada um daqueles fatos pode presumivelmente assumir. (...)” Ao juiz cabe “determinar, por um lado, a moldura abstracta cabida aos factos dados como provados no processo. Em seguida, encontrar dentro dessa moldura penal, o quantum concreto da pena em que o arguido deve ser condenado. Ao lado destas operações – ou em seguida a elas – escolher a espécie ou o tipo de pena a aplicar concretamente, sempre que o legislador tenha posto mais do que uma à disposição do juiz”.( [4] ) Essa forma de vinculação entre legislador e juiz tem, sem dúvida, uma entonação jurídico-constitucional, na medida em que a individualização da pena está incluída no inciso XLVI do art. 5.º da Constituição Federal e tal individualização parte de um modelo penal fixo.
Segundo, porque não cabe, no sistema brasileiro, molduras penais flexíveis, em função da ocorrência de vantagem ou de prejuízo. Tais elementos constam do art. 59 do Código Penal na expressão genérica de consequências do crime e, no processo judicial individualizador, devem ser ali valorados. O espaço temporal entre quatro e doze anos é suficiente para que o julgador estabeleça, em função do critério indicado, a pena cabível. Não tem sentido, na lógica penal e processual penal em vigor, ter um preceito sancionatório mínimo, variável entre quatro e doze anos, e um preceito sancionatório máximo, entre doze e vinte e cinco anos. Por outro lado, a existência de modelos heterogêneos de punição (molduras móveis) convivendo, lado a lado com molduras fixas, pode provocar uma situação de desintegração ou de dissolução de todo o sistema sancionador, dando causa a punições desarrazoadas.
Terceiro, porque a presença de modelos flexíveis, ao contrário do que é imaginado, pode dar ensejo a uma atividade corruptora de maior extensão ou gravidade porque a retirada de um só real da quantidade determinada de salários mínimos é suficiente para reduzir de três anos a pena mínima do delito imputado.
Além do exposto, a inclusão dos tipos penais já enumerados na categoria de crimes hediondos dará chance a um verdadeiro gravame ao princípio constitucional da proporcionalidade. Num modelo de Estado (Social e) Democrático de Direito, sustentado por um princípio antropocêntrico, não teria sentido, nem cabimento, a cominação ou aplicação de pena flagrantemente desproporcionada à gravidade do fato. Pena desse teor representa ofensa à condição humana, atingindo-a, de modo contundente, na sua dignidade de pessoa. O princípio da proporcionalidade exige que se faça um juízo de ponderação entre a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e o bem de que pode alguém ser privado (gravidade da pena). Toda vez que, nessa relação, houver um desequilíbrio acentuado, estabelece-se, em consequência, uma inaceitável desproporção.
A Lei 8.072/1990 e seus adereços legislativos penais provocaram verdadeira ruptura do sistema de penas no Brasil, criando uma evidente situação de desproporcionalidade entre os delitos contra a vida e a integridade física, de um lado, e os delitos patrimoniais (acrescidos agora, com a proposta de inclusão de alguns delitos contra a administração pública em geral), de outro, aqueles punidos com muita brandura e estes com fantástica severidade, em uma inversão vesga de valores. Como admitir, sem vislumbrar-se notória desproporção, entre a pena cominada para o tipo de lesão corporal grave do art. 129, § 1.º, do Código Penal (reclusão de 1 a 5 anos) e a pena do art. 273, § 1.º-A, do Código Penal, rotulado como hediondo, que prevê pena de reclusão de 10 a 15 anos e multa a quem falsificar cosméticos? Como achar razoável que se aplique a pena de 6 a 20 anos de reclusão para a hipótese de homicídio simples e se comine (conforme a proposta agora apresentada) a pena de 10 a 18 anos a quem praticou o peculato se houve vantagem ou prejuízo igual ou superior a mil salários mínimos na época dos fatos? Como entender que o homicídio qualificado seja punido com a pena de 12 a 30 anos e a extorsão mediante sequestro, de que resulte a morte tenha a pena mínima de 24 anos? O rol de situações de desproporcionalidade punitiva é imenso e não cabe aqui explicitar todas as hipóteses. É evidente que o anteprojeto de lei no qual diversos delitos contra a Administração Pública são classificados como hediondos conduzirá a tantas outras e insuportáveis distorções punitivas.
É mister que a fábrica produtora de etiquetas de crimes hediondos cesse sua linha de montagem e de produção. Caso isso não ocorra, é bem provável que, a curto espaço de tempo, mercê da irresponsabilidade ou do desconhecimento técnico do legislador penal, atinja-se o ponto máximo de agravo ao princípio constitucional da proporcionalidade, pondo em crise todo o sistema sancionador. E mais do que isso sufoque os tipos do Código Penal, por meio de uma legislação penal extravagante que, a pouco e pouco, os transfere, inconsequentemente, para o reino da hediondez.
Alberto Silva Franco
Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
1.º Vice-presidente do IBCCRIM.
Advogado e parecerista.
[2] Idem, ibidem, p. 12.
[3] Batista, Nilo. Outro argumento sobre crimes hediondos. Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: RT, 2003. p. 346-347.
[4] Figueiredo Dias, Jorge de. Direito penal português. 3. reimpressão. Coimbra: Coimbra Ed., 2011. p.192-193.
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