INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

     OK
alterar meus dados         
ASSOCIE-SE


Boletim - 277 - Dezembro/2015





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Reflexões provisórias sobre o crime de enriquecimento ilícito

Autor: Luís Greco

Uma das "10 medidas de combate à corrupção" propostas pelo MPF é a tipificação do crime de enriquecimento ilícito.([1] ) O órgão propõe cominar pena de 3 a 8 anos de prisão para aquele que "adquirir, vender, emprestar, alugar, receber, ceder, possuir, utilizar ou usufruir, de maneira não eventual, bens, direitos ou valores cujo valor seja incompatível com os rendimentos auferidos pelo servidor público, ou por pessoa a ele equiparada, em razão de seu cargo, emprego, função pública ou mandato eletivo, ou auferidos por outro meio lícito". A medida é justificada (p. 21), primeiramente, por considerações pragmáticas, a saber, pela dificuldade existente em punir tais condutas pelo crime de corrupção; em segundo lugar, passa-se a uma consideração de princípio, de que o comportamento incriminado seria também "em si mesmo desvalorado". Examinarei essas duas justificações (infra, 1, 2), para, em seguida, apresentar um terceiro caminho, que me parece merecedor de discussão (infra, 3). Em seguida tecerei algumas considerações sobre a proposta concreta de redação do tipo penal (infra, 4) e passarei a objeções relevantes (infra, 5). A menção feita pelo MPF à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (2004), da qual o Brasil é signatário, tem mais força retórica do que argumentativa, uma vez que a Convenção apenas declara que cada parte deve "considerar a adoção" da medida, e isso ainda "na forma da sua constituição e dos princípios gerais do seu sistema jurídico" (art. 20). Não discutirei, assim, a Convenção.

1. O primeiro argumento do MPF é o de que o enriquecimento ilícito seria "prova indireta da corrupção". A única virtude desse argumento é a sinceridade. De resto, se tudo o que se puder dizer contra determinado comportamento é que ele seria prova indireta de outro, ter-se-á uma chamada pena de suspeita, o que contraria o princípio da culpabilidade e um de seus principais correlatos processuais, a presunção de inocência.([2] ) O princípio da culpabilidade contém, como núcleo, o direito de ser condenado e punido apenas pelo que realmente se fez.([3] ) A condenação e a punição pelo crime que se propõe introduzir contêm, assim, uma mentira: não é por enriquecer, e sim por ter praticado atos de corrupção ou de peculato, é que estaremos condenando. Ocorre que esses atos não se conseguem comprovar, com o que fica manifesta a violação dos princípios mencionados.

O MPF replica a essa objeção, reportando-se a uma "teoria explanacionista da prova". Ele alega que, "com base na experiência comum por todos compartilhada, se a acusação prova a existência de renda discrepante da fortuna acumulada e, além disso, nem uma investigação cuidadosa nem o investigado apontam a existência provável de fontes lícitas, pode-se concluir que se trata de renda ilícita". Não é aqui o lugar apropriado para examinar a teoria ou se ela foi corretamente aplicada. O que aqui deve ser observado é que, se assim for, não se entende a necessidade do novo dispositivo, uma vez que já seria possível fundamentar a convicção judicial de que o funcionário público teria recebido (para si ou para outrem, direta ou indiretamente) vantagem indevida em razão da função (art. 317, caput, do CP). Seria possível, assim, condenar já pelo crime de corrupção passiva. Com uma réplica dessa ordem, abandona-se a única virtude do argumento pragmático, a saber, a sua sinceridade. Afinal, custa crer que o MPF esteja propondo uma medida, a rigor, supérflua.

Em síntese: o argumento pragmático da facilitação probatória esbarra em princípios fundamentais do Direito Penal e do Direito Processual Penal, a saber, no princípio da culpabilidade e da presunção de inocência. Ele é, no máximo, um argumento secundário, e não merece o lugar de destaque que a proposta do MPF lhe confere.

2. A insuficiência do argumento é percebida pelo próprio MPF, que se esforça por oferecer um segundo argumento, não mais pragmático, mas sim de princípio: o de que o enriquecimento seria também "em si mesmo desvalorado, pois revela um agir imoral e ilegal de servidor público, de quem se espera um comprometimento mais significativo com a lei do que se espera do cidadão comum. Há aqui um desvalor no tocante à discrepância patrimonial, não raro oculta ou disfarçada, de um agente público sujeito a regras de escrutínio, transparência e lisura". É difícil entender, aqui, o conteúdo da argumentação do MPF.

Se se diz que o comportamento "revela um agir imoral e ilegal de servidor público", o que se tem é, outra vez, a problemática ideia da prova indireta. O desvalorado não é o enriquecimento, e sim que o que ele revela. Falar em revelação de algo contradiz o que o MPF quer fundamentar, a saber, que o comportamento em questão seria "em si mesmo desvalorado".

Tampouco se entende onde estaria o "desvalor no tocante à discrepância patrimonial". Talvez ele se encontre em uma violação de "regras de escrutínio, transparência e lisura" a que estaria sujeito o agente público. Se isso for correto, cai-se no problema de que, à primeira vista, o que se tem é apenas um ilícito disciplinar. Seria necessário um argumento adicional, apto a explicitar por que a violação de um dever de que são destinatários, à primeira vista, o superior hierárquico ou a Administração Pública, pode ser erigido em ilícito penal. Esse argumento o MPF não se esforça por fornecer.

Como segunda conclusão intermediária: o MPF não logra fundamentar o desvalor autônomo do enriquecimento ilícito enquanto ilícito penal. Os argumentos por ele fornecidos ou retornam à ideia anterior, da prova indireta, ou conseguem no máximo fundamentar um ilícito de natureza disciplinar.

3. Vemos, assim, que falta à proposta de criminalização do enriquecimento ilícito o devido respaldo argumentativo. Isso não significa, contudo, que não seja possível fornecer essa fundamentação, que deve ser derivada de uma teoria mais geral sobre os limites do poder do Estado de proibir condutas e cominar penas. Parece-me que a melhor teoria a esse respeito é a chamada teoria do bem jurídico.([4] ) Um defeito fundamental da proposta do MPF, que está, a rigor, por trás da falta de clareza e insuficiência do segundo argumento acima apontadas, foi sequer ter saído à busca do bem jurídico que o novo tipo penal deve proteger.

Não tenho, na presente sede, como apresentar uma argumentação acabada a respeito de se e por que o enriquecimento ilícito afeta um bem jurídico e é passível de criminalização. Contento-me em expor algumas ideias provisórias, como contribuição a um necessário debate, que deveria preceder a todo esforço ativista-populista de angariamento de assinaturas.

Não interessam, aqui, os detalhes da complexa discussão sobre o bem jurídico dos delitos de corrupção;([5] ) nem se pode, sem mais, assumir que o tipo de enriquecimento ilícito seja orientado à proteção do mesmo bem jurídico que os tradicionais delitos de corrupção. Suporei, contudo, que tal seja o caso; assim, o tipo teria como objeto de proteção um bem coletivo ou supraindividual.([6] ) De que bem exatamente se trata, deixo aqui em aberto. O que me parece a nota essencial do injusto dos delitos de corrupção, contudo, é que nele se trata de proteger uma instituição que é componente central da própria ideia de Estado de Direito: o funcionamento da Administração Pública. A Administração Pública exerce poder; o que, de uma perspectiva liberal, que enxerga em todo exercício de poder algo problemático, torna essa instituição carecedora de uma justificação. Essa justificação está em sua natureza de serviço público, prestado no interesse público. O corrupto corrompe essa ideia, trai aquilo que justifica a existência da própria instituição de que se vale. Ele não se orienta segundo o interesse público, e sim segundo caprichos particulares; ele não serve, mas usufrui.

Parece, assim, de fato existir um desvalor autônomo na conduta de um funcionário que enriquece em razão de sua função. Esse funcionário coloca em dúvida o sentido de sua própria qualidade de funcionário e da instituição da Administração Pública. O funcionário que enriquece afeta, pelo menos à primeira vista, o bem jurídico supraindividual de que também se trata nos demais delitos de corrupção. Sua atuação o coloca em confronto não apenas com o seu superior hierárquico, e sim com o que justificadamente espera a sociedade daqueles a quem ela confere poder, de modo que não se trata somente de ilícito disciplinar, e sim de ilícito de natureza penal. Não se trata, tampouco, de superar dificuldades probatórias;([7] ) a facilitação da prova é um benefício colateral, algo bem-vindo, mas que não tem força justificante adicional.

Em síntese: Talvez seja possível justificar um tipo penal de enriquecimento ilícito. O funcionalismo público existe para servir ao público, e não para enriquecer os que supostamente servem. O bem coletivo que é a própria instituição do serviço público parece ser posto em questão por funcionários que usufruem em vez de servir. Se essa justificação convence, ou não, é algo que teria de ser examinado mais detidamente em uma futura oportunidade.

4. Postas essas considerações declaradamente provisórias, voltemo-nos ao problema da formulação concreta do tipo. O MPF, à falta de qualquer teoria sobre o desvalor do comportamento que quer ver criminalizado, tateia como o cego e enumera setes condutas distintas (adquirir, vender, emprestar, alugar, receber, ceder, possuir, utilizar ou usufruir). A criminalização segue o modelo do que alguns vêm chamando de "técnica espingarda de cano serrado".([8] ) É evidente que esse modelo de tipificação abrange comportamentos que não possuem o conteúdo de desvalor que a justifica, o que o torna problemático segundo a perspectiva do princípio da culpabilidade, e que ele pouco se adéqua ao mandato de determinação dos tipos penais (art. 5.º, XXXIX, da CF).

Parece-me que, da fundamentação esboçada anteriormente, seria de derivar-se um tipo penal de natureza omissiva. A construção seria a seguinte: a obtenção de valores de certa monta pelo funcionário contradiz, ao menos prima facie ou em aparência, a ideia de serviço público no interesse público; daí derivaria o dever de prestar contas desses valores, de modo a afastar qualquer suspeita dessa aparente contradição. O descumprimento desse dever de prestação de contas, dever esse que teria de ser previsto de forma precisa, provavelmente em outro diploma, seria o comportamento típico em questão.

5. Como dito e repetido, a construção aqui formulada é uma hipótese de trabalho, que deverá passar por um escrutínio críticomais detido.

a) A primeira e mais severa objeção a respeito da qual se teria de pensar tem natureza principiológica: impor ao funcionário um dever de prestação de contas nos termos propostos não significaria uma violação do princípio do nemo tenetur se ipsum accusare?([9] ) Uma resposta definitiva a esse questionamento demandaria que se esclarecesse a ratio e o alcance do mencionado princípio. Ainda assim, também sob a reserva de que minha manifestação tem caráter provisório, não me parece que o princípio processual do nemo tenetur tenha o condão de sobrepor-se a deveres oriundos do direito material. Será permitido àquele que sequestrou uma criança e que, portanto, tem o dever legal de agir para impedir que os riscos oriundos desse comportamento prévio se realizem (art. 13, § 2.º, c, do CP), arrimar-se no nemo tenetur para recusar qualquer informação sobre o local em que a criança se encontra?([10] ) De qualquer forma, impressiona que o MPF proponha a adoção dessa medida, sem sentir qualquer necessidade de se manifestar sobre a sua difícil relação com o nemo tenetur.

b) A segunda objeção fundamenta-se na ideia de ultima ratio. Se o problema está no descumprimento de deveres de informação do funcionário, talvez bastasse uma previsão desses deveres e das respectivas sanções na esfera administrativa.

c) Uma terceira objeção diz respeito à eficácia da medida para atingir o proposto fim de enfrentamento da corrupção. O nosso crime de corrupção passiva (art. 317, caput, do CP), que fala apenas no recebimento de "vantagem indevida" "em razão da função" tem um alcance enorme, muito mais extenso, por exemplo, que o tipo correspondente alemão (§ 331 StGB), que exige de forma expressa uma conexão entre a vantagem e o exercício da atividade funcional (o chamado "pacto de injusto"([11] )): enquanto a norma alemã liga a vantagem à atividade, a norma brasileira a liga apenas à detenção do cargo. É notável que, apesar de vários países vizinhos já conhecerem um tipo penal no modelo do proposto, não tenha o MPF se preocupado em verificar se nesses países o tipo penal tem "funcionado". A literatura aponta para uma quase inexistência de condenações,([12] ) o que gera fundadas dúvidas a respeito da utilidade da medida.

6. Em conclusão: a proposta do MPF de criminalizar o enriquecimento ilícito é infundada e apressada. Ela se baseia em considerações policialescas de facilitação da prova, incompatíveis com a ideia de culpabilidade e a presunção de inocência (supra, 2), e que, ainda por cima, parecem ser de duvidosa eficácia (supra, 5, c). É verdade que talvez – sublinhe-se o talvez – seja possível fundamentar, a partir do princípio da proteção de bens jurídicos, um desvalor autônomo da conduta em questão, que justificaria em tese a criminalização (supra, 3). Ocorre que qualquer esforço de criminalização tem de ser submetido a um escrutínio cuidadoso, que avalie, além da correção do argumento desenvolvido em caráter declaradamente provisório, a compatibilidade do tipo penal com o nemo tenetur, a ideia de ultima ratio e, por fim, a sua concreta necessidade diante da existência de um direito penal material já bastante abrangente (supra, 5). Coletar assinaturas não torna desnecessários argumentos.

Luís Greco
Professor Titular de Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito Penal Econômico da Universidade de Augsburg, Alemanha.

Notas

[1] Disponível em: <http://www.combateacorrupcao.mpf.mp.br/10-medidas/docs/medidas-anticorrupcao_versao-2015-06-25.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2015).

[2] Próximo Kliegel, Der Straftatbestand der unerlaubten Bereicherung, Baden Baden: Nomos, 2013, p. 265 e ss., 279 e ss., 286.

[3] Greco, Strafprozesstheorie und materielle Rechtskraft, Duncker & Humblot, 2015, p. 902 e s.

[4] A respeito, da inabarcável literatura, cf. apenas Roxin, O conceito político-criminal de bem jurídico crítico ao legislador em xeque, Novos estudos de direito penal, Madrid/São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 70 e ss.; Schünemann, O princípio da proteção de bens jurídicos como ponto de fuga dos limites constitucionais e da interpretação dos tipos, Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito, Madrid/São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 39 e ss.

[5] Cf. com referências Kuhlen, in: NK-StGB, 4. ed., Baden Baden: Nomos, 2013, § 331 nm. 9 e ss.

[6] Cf. Greco, Existem critérios para a postulação de bens jurídicos coletivos?, Revista de Concorrência e Regulação, ano II, n. 7/8 (2012), p. 349 e ss. (p. 355 e s.).

[7] Isso desconhece, contudo, Kliegel, op. cit., p. 298.

[8] Cf. Scheffler, Strafgesetzgebung in Deutschland und Europa, ZStW 117 (2005), p. 766 e ss. (783 e ss., 794 e ss.). 

[9] Kliegel, op. cit., p. 334 e ss., 350, 352 e s. 

[10] Cf. já Greco/Caracas, Internal investigations und Selbstbelastungsfreiheit, NStZ 2015, p. 7 e ss. (p. 9).

[11] Por todos Schünemann, Die Unrechtsvereinbarung als Kern der Korruptionsdelikte, in: Festschrift Otto, Freiburg etc.: Heymanns, 2008, p. 777 e ss.

[12] Kliegel…, p. 385.



IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040