José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
Autor: Flavio Antônio da Cruz
“Nossas autoridades não buscam a culpa na população, mas, conforme consta na lei, são atraídas pela culpa e precisam nos enviar – a nós, guardas. Esta é a lei”, diz o policial. K. alega ignorar essa lei. “O senhor irá senti-la.” – Kafka.([1])
Merece aplausos a iniciativa do IBCCRIM de submeter a amplo debate público as propostas empreendidas pelo Ministério Público Federal para enfrentamento da corrupção em solo brasileiro.
Não raro, como explicita José Luiz Díez Ripollés,([2]) o discurso jurídico concentra sua atenção sobre os textos normativos já produzidos, sendo incomuns os estudos sobre a qualidade das proposições em curso junto ao Parlamento.
A Procuradoria da República é digna de encômios, por seu turno, ao adotar uma atitude proativa, buscando contribuir para a boa gestão da coisa pública. Convém reconhecer que há, de fato, elevados índices de crimes contra a Administração Pública em solo nacional – mesmo quando abstraídas as cifras negras e douradas –, sobremodo diante de uma indevida confusão entre espaço público e privado no âmbito de um Estado de modernidade tardia em que ainda vigora o lamentável “sabe com quem está falando?”.([3])
O problema não está tanto no diagnóstico promovido pelo MPF, mas muito mais nas soluções que ele preconiza no âmbito do projeto denominado de 10 medidas de combate à corrupção.
Examino aqui, de modo breve, a proposta no que toca à adoção, entre nós, do chamado teste de integridade, concebido originalmente no âmbito da Common Law. Também tratarei da questão alusiva ao sigilo da fonte.
Há conhecidas dificuldades probatórias quanto à investigação de determinadas suspeitas públicas. No mais das vezes, as apurações criminais têm início com a notitia criminis promovida por alguém que se diz vítima de uma agressão ou de um engodo, o que acaba por ensejar a deflagração de um inquérito permitindo que eventuais testemunhas sejam inquiridas e evidências físicas possam ser apreendidas, se localizadas.
Os delitos praticados em desfavor dos chamados “complexos funcionais”([4]) – por exemplo, ambiente, ordem tributária, Sistema Financeiro – comumente são promovidos sem a presença de espectadores ou sem deixar efetivo lastro documental. Com alguma frequência, examinados desde fora, o ato administrativo escorreito e aquele outro praticado com desvio de finalidade, mediante promessa ou pagamento de propina, são bastante semelhantes entre si, diferenciando-se apenas em razão da motivação daquele que deveria servir ao povo.
A negociação da vantagem ilícita pode ter ocorrido a portas fechadas, apenas com o conhecimento do servidor público venal e de quem pratica a corrupção ativa. O crime de cartel pode não ser demonstrado sem que alguém diretamente envolvido relate aquilo que sabe; peculatos restam despercebidos se quem deve fiscalizar a ordenação da despesa também tenha sido cúmplice no delito e assim por diante.
É por conta desses embaraços que surgem compreensíveis – mas, apesar disso, absolutamente indevidas! – propostas de desconsideração das garantias fundamentais. Os órgãos de persecução penal deparam-se com suspeitas e buscam confirmá-las, nem que seja mediante a aniquilação de direitos conquistados a muito custo e que servem, na ponta, justamente para impedir gravíssima forma de corrupção: a conversão do Estado de Direito em consumado Estado de Polícia.
Por mais que haja experiências mais antigas quanto ao loyalty board procedure, o chamado teste de integridade – integrity testing – tem origem, ao que consta, no âmbito do Departamento de Polícia de Nova Iorque, nos idos de 1994, mediante implementação das recomendações do Mollen Commission of Inquiry.([5])A medida também foi adotada no âmbito da Austrália, por meio do Law Enforcement Integrity Commissioner Act, de 2006.
A partir de 1999, algumas jurisdições do Reino Unido empregaram esse mecanismo, lá denominado de quality assurance check, para fiscalização das atividades desempenhadas por policiais metropolitanos em Londres. Sabe-se também que o Secretariado do Conselho da Europa tem recomendado a sua adoção enquanto ferramenta de guerra – a expressão que utilizam é mesmo essa – contra a corrupção sistêmica.
Ademais, há algum paralelo de tais medidas com o chamado teste do polígrafo, pelo qual funcionários estatais são submetidos ao aparelho com suposta aptidão para detectar mentiras.
No que consiste, exatamente, tal teste de integridade?
As autoridades de apuração criminal simulam uma situação qualquer, ofertando vantagens indevidas para algum servidor público, justamente com o fim de testar sua capacidade de resistir à tentação delitiva. Busca-se, com isso, estimular que servidores do povo se sintam vigiados, cientes de que o proponente do subterfúgio ilícito pode ser um agente estatal disfarçado.
Cuida-se de projeção da lógica do controle do crime, aludida na obra de Herbert L. Packer.([6]) Imagina-se, então, que a função primordial do processo criminal seja a inibição de possíveis malfeitos, ao invés da noção fundamental de que apenas se investigam atividades delitivas já perpetradas ou, quando menos, em vias de efetiva realização.
Em regra, nos sistemas que os admitem, são empregadas duas modalidades de teste de integridade. O targeted test é fundado em uma suspeita prévia, endereçada a um servidor público específico, exigindo alguma justa causa para sua aplicação. Comumente, porém, os agentes estatais encarregados da simulação se contentam com a existência de alguma notitia criminis, algum indício de enriquecimento sem causa ou algo semelhante, a fim de submeter o alvo da desconfiança pública a essa espécie de ordália moderna.
Também há o random test, aplicado aleatoriamente e com alguma periodicidade, mediante a submissão ao mencionado expediente de um conjunto impreciso e não previamente delimitado de funcionários públicos, de modo parecido a uma prova surpresa.
Agentes estatais responsáveis pela correição da atividade policial podem eventualmente deixar um carro aos cuidados de determinado servidor, ocultando no seu interior elevada quantia de dinheiro ou mesmo drogas, filmando a forma como o avaliado se comporta. Também pode ser ofertada, com simulação, alguma promoção na carreira em troca de ocultação de evidências ou para alguma outra espécie de atividade ilícita.
Há alguns outros detalhes a respeito do mencionado instituto; dados os limites, porém, do presente exame, esse resumo é suficiente.
Ora, em um país com índices excessivos de corrupção, em que quase mensalmente surgem escândalos tenebrosos envolvendo altas autoridades e elevados montantes – dinheiro que falta em hospitais e escolas! –, que objeção juristas poderiam ter ao emprego de uma técnica para se identificar servidores do povo com enorme tendência a se servirem do povo?
Muitas.
A intenção é boa. Como notório, porém, delas o inferno está cheio! Direitos fundamentais e as correlatas garantias processuais são conquistas civilizatórias importantíssimas, não podendo ser sacrificados no altar da boa-vontade cívica.([7])
A afirmação e reafirmação dos limites indispensáveis para a atividade estatal acabam ensejando o aprimoramento do grau de cidadania e de democracia em uma comunidade política. É indispensável que o Estado saiba que há limites e que efetivamente os respeite.
Vê-se que o teste de fidelidade está orientado ao futuro, buscando aferir se alguém tem propensão à prática de crimes mais adiante. Sei bem que o procedimento também pode ser imaginado como um instrumento para se investigar crimes pretéritos, a partir de uma indevida lógica por abdução: o sujeito cometeu o delito x, dado que aceitou propina na subsequente simulação y.
Mas, como regra, os testes de fidelidade se escoram na nefasta concepção distópica bem verbalizada na obra de Philip K. Dick (The minority report). Almeja-se impedir crimes ainda não iniciados, mas que se imaginam possíveis ou prováveis.
Ao empregar o aludido teste, o Estado acaba por deitar por terra um compromisso importantíssimo das democracias liberais: a crença de que o sistema de justiça criminal está destinado a garantir que nenhum inocente seja punido.([8]) A culpa deve ser aferida pela efetiva prática de uma conduta objetiva e subjetivamente típica, ilícita e culpável, apurada sob devido processo.
Note-se que, de certo modo, o mencionado teste de fidelidade acaba por vitimar aquele conhecido aforismo de Ulpiano, cogitationis poenam nemo patitur. Trata-se de punição da mera vontade do agente, eis que – em termos objetivos – efetiva situação delitiva não há, mas mero fingimento.([9])
Alguém nutre grande ódio por determinado vizinho e o Estado almeja testar se ele teria propensões delitivas. Disfarça, então, um determinado boneco, de modo a ganhar muita semelhança com o desafeto do sujeito sob teste. E eis que ele dispara, então, vários golpes de faca, imaginando ter matado seu antagonista. E então? Há crime?
Apenas uma concepção fundada em juízos de mera periculosidade – e esses são, em regra, exames verificacionistas,([10]) infensos a efetivo controle empírico – pode estimular que algo do gênero seja aceito. Pune-se a pretensa intenção delitiva, mas deflagrada em um contexto simulado, forjado, diferente daquele que realmente teria existido, caso não fosse o teatro empregado.
Revela-se, com isso, uma eventual deliberação celerada, mas sem a efetiva agressão ao bem jurídico tutelado pela norma incriminadora.
O teste propugnado pelo MPF funda-se em uma indevida noção de criminalidade ontológica, supondo que o delito seja projeção do caráter do agente. Note-se que o fundamento da medida é identificar “corruptos”, em vez de investigar reais atos de corrupção. Cuida-se de projeção de um Direito Penal do autor ou de tipos normativos subjetivos, com um histórico fascista, como é notório.([11])
A medida enfrenta os mesmos dilemas inerentes à atuação de agentes encobertos e a difícil distinção dos agentes provocadores. O teste de fidelidade se destina a simplesmente captar um crime que estaria em vias de ocorrer – algo semelhante ao flagrante esperado –, ou, ao contrário, busca verdadeiramente criar as condições para que o delito ocorra? Ao simular a situação toda, por acaso o Estado não está, ele próprio, criando a oportunidade do cogitado crime?
O teste é uma manifestação do conhecido teorema de William Thomas ou daquilo que Karl Popper denominava efeito de Édipo. Em alguma medida, ao empregar o mecanismo, o Estado pode simplesmente dar ensejo à realização do pseudocrime que ele temia estar em vias de ocorrer.
Salvo pontuais exceções, a República Federativa do Brasil não fundamenta a punição de alguém no mero exame da sua mens rea, i.e, do seu dolo ou do seu conhecimento da ilicitude (elementos anímicos). Digo que há pontuais e indevidas exceções, diante do fato de que o erro sobre a pessoa pode, eventualmente, justificar incremento de pena (art. 20, § 3.º, do CP), para além dos problemas inerentes à actio libera in causa, entre nós adotada de forma bastante ampla e versarista (art. 28, II, do CP).
De toda sorte, é fato que, em solo brasileiro, não se pode punir o chamado crime impossível, conforme se infere da expressa disposição do art. 17 do CP. Quando o agente emprega um meio absolutamente inidôneo – por mais que ele desconheça essa circunstância – simplesmente não há infração penal. A vingar lógica inversa, dar-se-ia vida a um direito penal do dever, imaginando-se o crime como mero ato de rebeldia jurídica.
Conquanto apenas se possa reconhecer a ocorrência de um crime quando provada a efetiva ofensa a um mínimo ético (i.e., bem jurídico), compatível com as pautas constitucionais, é também fato que nem toda agressão a interesses públicos poderá ser reputada como delito. Não se pode confundir a sanção criminal com a reprovação moral e, menos ainda, com a censura meramente moralista e sazonal, eis que são esferas de normatividade distintas.
A culpa é limite da pena e não seu fundamento. Não se admite pena sem prova da culpa – nulla poena sine culpa –, mas o sistema admite, e deve mesmo admitir em certos casos, diante do postulado da ultima ratio, que a punição não seja aplicada, a despeito da prova da culpabilidade de alguém.
O tema coloca em causa a conhecida Súmula 145 da Suprema Corte: “não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.
Cuida-se da diferença entre, de um lado, observar algo que estava em vias de ocorrer, e, de outro modo, produzir o crime que se queria meramente espionar. Em termos bíblicos, seria o mesmo que enviar Lúcifer para testar o Cristo – também aqui uma espécie de teste de integridade –, a fim de conferir a sua lealdade aos desígnios divinos. Humanos nem sempre são Cristos ou santos como Antão Anacoreta, e o Estado está longe de se revestir da perfeição ética de poder testar seus cidadãos.
A diferenciação entre agentes encobertos e agentes provocadores é extremamente difícil, o que justifica as naturais resistências ao efetivo emprego desse mecanismo, ainda que tenha sido previsto no art. 3.º da Lei 12.850/2013. E isso pelo fato de que, nas situações em que se pode imaginar a ocorrência do teste de fidelidade, é o Estado que adota a iniciativa, sugerindo o pagamento de propina ao seu funcionário.
O próprio Ministério Público Federal acaba por reconhecer que, de certo modo, dito teste pode simplesmente atingir servidores momentaneamente tentados por uma quantia significativa ou por qualquer vantagem que reputem expressiva, mas que, em um outro contexto, não teriam realizado aquela mesma reprovável conduta. O art. 3.º do projeto expressa claramente que se busca investigar uma pretensa predisposição delitiva de alguém, como se isso fosse algo inerente a um grupo específico de pessoas.
Mas a predisposição para a prática de desvios – algo que é inerente, diga-se de passagem, à própria condição humana([12]) – não pode ser punida como se já fosse o próprio crime. E, portanto, não pode ensejar reprovação criminal, quando é o próprio Estado quem promove uma espécie de simulação ou comédia, como dizia Nelson Hungria.
Segundo a justificativa da Procuradoria da República: “Para proteger o servidor público, ressalte-se, é vedada pelo projeto a realização de testes que representem uma tentação desmedida, a qual poderia levar uma pessoa honesta a se corromper”.
Note-se, todavia, que referida ressalva não foi veiculada expressamente na proposta apresentada. Por sinal, esse é um conceito valorativo, extremamente aberto e poroso. Há reconhecimento implícito de que, de certo modo, cuida-se de estimular a prática de crimes, no afã de sancioná-los, muito mais do que fiscalizar, a distância, crimes realmente em curso.
Mesmo no âmbito administrativo tais mecanismos devem ser vistos com extrema reserva, dado que o Estado não pode simplesmente armar arapucas contra seus servidores, sob pena de violentar o conteúdo substantivo da cláusula do devido processo.
Acrescente-se que, seguindo a lógica já presente no sistema de compliance (art. 11, II, da Lei 9.613/1998), a proposta preconiza que a realização do teste e seus resultados sejam mantidos em segredo, sem que o servidor público tenha o direito de saber que foi alvo da simulação. Pode-se ensejar uma perigosa trama kafkiana, em que o sujeito se converte em objeto de experimentos nas mãos de autoridades sedentas por encontrar a culpa na população.
Estimular-se-ia, assim, um clima de efetiva desconfiança entre os agentes estatais, algo um tanto diferente do dever de accountability, compreendido como dever de se prestar contas. Submete-se o servidor a um simulacro, em tudo semelhante àquelas degradantes pegadinhas televisivas, de péssimo gosto.
A necessidade de prévia autorização judicial apenas é aludida, no projeto, para a aplicação da medida pelo MPF e autoridades policiais no âmbito de apurações e processos criminais ou para investigação de supostos atos de improbidade (art. 9.º do Projeto), sem que essa condição seja aludida no art. 4.º, franqueando-se amplamente o uso da medida no âmbito do Direito Administrativo sancionador.
Vê-se que se trata de meio ilícito de prova, proscrito pela Constituição, seja para instrução no âmbito de arguições penais, seja para a instrução de processos civis (art. 5.º, LVI, da CF).
A vingar a lógica da proposta, dever-se-ia cogitar de um teste de integridade na aplicação de testes de integridade, e assim por diante, em loop infinito. Carecemos de reformas, mas temo que o projeto do MPF acabe por comprometer vigas mestras do sistema de garantias vigentes no país, a despeito do respeitável propósito que o anima.
O outro tópico diz respeito ao sigilo da fonte, propugnado nas “10 medidas”.
O projeto preconiza que o representante do Ministério Público possa manter em sigilo absoluto a fonte de informação responsável pela deflagração da apuração criminal, no que disser respeito à suspeita da prática de atos de corrupção, desde que isso seja essencial à obtenção de dados ou preservação da segurança do noticiante.
Cuida-se de projeto inconstitucional.
Viola-se, com isso, o direito ao confronto, já reconhecido pela jurisprudência estadunidense no caso Pointer versus Texas (1965, 380, U.S 400), verdadeira projeção da 6.ª emenda à Constituição daquele país. Por sinal, em solo norte-americano, o tema é tratado como Brady material, eis que a acusação é obrigada a revelar ao acusado todos os elementos de informação relevantes para o exercício do direito à defesa (por exemplo, veja-se Giglio versus USA, 405, 1972).
Entre nós, o tema é tratado pelo art. 5.º, IV, da Constituição, ao vedar o anonimato. A questão foi alvo de detalhado exame por parte da Suprema Corte, ao apreciar a questão de ordem no Inquérito 1.957/PR e também ao editar a Súmula Vinculante 14.
Qualquer pessoa que tenha seus direitos fundamentais mitigados por conta da intervenção estatal possui a prerrogativa de confrontar quem o acusa. Note-se que apenas uma concepção inquisitorial do processo – semelhante àquela presente no Maleus Malleficarum([13]) – poderia vaticinar que o suspeito seja impedido de saber como a investigação preliminar teve início.
Cuida-se de retomada do aforismo, de triste memória, “in atrocissimis leviores conjecture sufficiunt et licet judici jura transgredi”. Algo como: se a suspeita é grave, então tudo seria válido para sua apuração... Mas nem tudo é válido, já que sob o Estado Constitucional fins não podem justificar os meios.
Aliás, o aludido conhecimento e acompanhamento são indispensáveis justamente para que o suspeito, o acusado e seu advogado possam fiscalizar a origem da apuração e discutir a sua legalidade. Caso vingue a proposta, há elevado risco de se utilizar provas obtidas por meios indevidos, selecionando-se os elementos de convicção a serem disponibilizados ao conhecimento do investigado ou arguido.
Não se desconhece a existência de reais riscos para noticiantes e vítimas.
Convém ter em conta, não obstante isso, que Direito pátrio já preconiza mecanismos para a proteção de informantes e testemunhas (Lei 9.807/1999) e até mesmo autoriza a eventual postergação da adoção de certas medidas (por exemplo, ações controladas). O que não se pode admitir é que direitos fundamentais de alguém sejam mitigados sem que lhe seja dada a oportunidade de efetivamente conhecer todos os detalhes da investigação criminal. Essa é a verdadeira accountability imposta quando em causa o exercício do poder punitivo.
É tempo de concluir.
Na terra de Bruzundangas e Bogoloffs, obras do genial Lima Barreto, somos atingidos cotidianamente pela corrupção que compromete as funções inerentes ao Estado. A indignação cívica é salutar e não se trata, aqui, de contemporizar com malfeitos.
Em que pese a necessidade de enfrentarmos as muitas mazelas públicas, não podemos deitar por terra garantias fundamentais, inerentes ao devido processo. No ímpeto de melhorar a vida em comum, não podemos simplesmente mitigar direitos indispensáveis em um país em que o próprio Estado é, em boa parte dos casos, um dos provocadores dos problemas que diz querer resolver... Aquilo que se autoriza, com bons propósitos, em casos de suspeitas graves, envolvendo desvios de recursos públicos, pode fortalecer o autoritarismo estatal, tendente a tratar os sujeitos como verdadeira cera mole na mão de inquisidores.
Convém não jogar a criança com a água suja da bacia.
As garantias fundamentais são como a abóbada do Mosteiro da Batalha, de que falava Alexandre Herculano na obra de 1839. Não basta apenas a vontade de se reformar a bela Catedral, é fundamental que o projeto arquitetônico que a mantém de pé seja respeitado. Do contrário, a construção soçobra... e ruímos juntos.
Flavio Antônio da Cruz
Doutor em Direito do Estado – UFPR.
Juiz Federal.
[1]Notas
Kafka, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 12.
[2] Ripollés, José Luis Díez. A racionalidade das leis penais: teoria e prática. Trad. Luiz Régis Prado. São Paulo: RT, 2005, p. 13: “A escassa atenção dedicada à problemática relacionada à criação do Direito no âmbito da investigação jurídica é um fenômeno cada vez mais ressaltado e criticado, sem que isso tenha originado, porém, um aumento significativo do interesse acadêmico, que permanece centrado no estudo da aplicação judicial do Direito”.
[3] Sobre a crise da indispensável diferenciação entre espaço público e privado e correspondentes problemas quanto ao exercício da autoridade, leia-se Arendt, Hannah. Entre o passado e o futuro. 6. ed. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 127-187. Veja-se também Damatta, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 53-60.
[4] A respeito do tema, leia-se Baratta, A. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal. Lineamentos de uma teoria do bem jurídico. Revista Brasileira de Ciências Criminais. v. 2, n. 5, jan.-mar.,1994, p. 5-24.
[5] Commission to investigate allegations of police corruption and anti-corruption procedures of the Police Department (7 de julho de 1994). O relatório sustentou que o Departamento de Polícia de Nova Iorque estaria submetido a um elevado grau de corrupção – quase que sistêmica –, propondo a adoção de medidas proativas para prevenção de delitos. Isso ensejou a adoção de mecanismos bastante questionáveis de investigação interna, referendados pelo Prefeito Rudolph W. Giuliani, responsável pela criação do Comitê de Combate à Corrupção Policial/NY em 1995.
[6] Herbert Packer contrapõe basicamente dois modelos/configurações dos sistemas de justiça criminal: (a) due process model – concebe o processo criminal como um mecanismo de contenção do poder punitivo, atribuindo ênfase para as garantias individuais; (b) crime control model – que vê o sistema de justiça como um mecanismo de inibição de condutas lesivas, reputando que um processo efetivo é aquele que redunda o maior grau de punição dos crimes havidos (punitur quia peccatum est e, ao mesmo tempo, punitur ne peccetur). Leia-se Packer, Herbert L. Two models of the criminal process. University of Pennsylvania Law Review. vol. 113, No. 1 nov., 1964, p. 1-68; ver também Packer, H. L. The limits of criminal sanction. Stanford: Stanford Press, 1968.
[7] Ferrajoli, Luigi. Derechos y garantías: la ley del más débil. 5. ed. Trad. do italiano para o espanhol por Perfecto Andrés Ibañez e Andrea Greppi. Madri: Trotta, 2006. p. 37-58. Palombella, Gianluigi. La autoridad de los derechos: los derechos entre instituciones y normas. Trad. do italiano para o espanhol por José Calvo Gonzáles e Cristina Monereo Atienza. Madri: Trotta, 2006. p. 69 e ss.
[8] Ferrajoli, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Trad. do italiano para o espanhol por Perfecto Ibañez et al. Madri: Trotta, 1995, p. 104-106, 150 e 184.
[9] Idem, ibidem, p. 223-224.
[10] Popper, Karl. Conjecturas e refutações. Trad. Benedita Bettencourt. Coimbra: Almedina, 2006. p. 336 e ss. e Popper, Karl. A lógica da pesquisa científica. 20. ed. Trad. Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 2007. p. 95 e ss.
[11] Roxin, Claus. Derecho penal: tomo I. Fundamentos. La estructura de la teoría del delito. Trad. do alemão para o espanhol por Diego-Manuel Luzón Peña et al. Madri: Civitas, 1997. p. 179-189.
[12] Rock, Paul; Downes, David. Understanding deviance. 6. ed. Nova Iorque: Oxford Press of New York, 2011. p. 221 e ss.
[13] Kramer, Heinrich; Sprenger, James. O martelo das feiticeiras. 22. ed. Tradução de Paulo Froes. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 2011. p. 401.
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