INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 271 - Junho/2015





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Encarceramento em massa e a PEC 171/1993

Autor: Valdir João Silveira, Marcelo Naves e Francisco de Barros Crozera

A Pastoral Carcerária, como Igreja Católica, é intransigente na defesa da vida. Nesse sentido, somos contra a pena de prisão, pois conhecendo a realidade do sistema prisional pelas visitas realizadas em todo o país, sabemos que o cárcere é estruturalmente um local de tratamento desumano e degradante, onde o Estado contribui para a produção e perpetuação da cultura da violência, ao invés de reduzi-la.

Sendo assim, o ideal que buscamos é um mundo sem prisões, em que o Direito Penal não seja a panaceia para a resolução dos problemas e conflitos sociais, e que as comunidades locais sejam empoderadas para a resolução de seus próprios conflitos por meio de práticas como, por exemplo, a chamada justiça restaurativa.

Nesse sentido, além dos próprios princípios, que por si só colocam a Pastoral Carcerária contra a proposta de redução da maioridade penal, ou qualquer outro projeto que acarrete no aumento do encarceramento, a PEC 171/1993 é criticável tanto pela sua falta de embasamento, quanto pelos interesses nefastos que estão por trás do projeto.

Vivemos em uma sociedade historicamente desigual. Pouco avançamos para superar a concentração de renda, o racismo, o nosso modelo de sociedade patriarcal e machista. Estima-se que os 0,9% mais ricos do país detêm entre 59,90% e 68,49% da riqueza dos brasileiros,(1) sendo que os negros ganham em média apenas 57,4% do rendimento dos brancos,(2) ao passo que as mulheres ganham em média 81,4% do rendimento dos homens. Em consonância com essa desigualdade está a defasagem do Estado Brasileiro nas políticas públicas na área de educação, saúde e habitação. Em específico na área da infância e juventude os problemas são crônicos, desde a falta de creches, a qualidade do ensino, até a ineficácia na aplicação das medidas protetivas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Se, por um lado, as políticas sociais não são implementadas de modo satisfatório, por outro, na segurança pública o aparato estatal tem servido quase que exclusivamente para oprimir as classes menos favorecidas, justamente aquelas alijadas de toda uma gama de direitos sociais. A violência do Estado se perpetua seletivamente sobre os mais pobres, seja por meio da letalidade da força policial, sobretudo nas periferias urbanas, seja por intermédio da política de encarceramento em massa, que também recruta a “sua clientela” nesses territórios. Basta ver o perfil socioeconômico das pessoas privadas de liberdade no Brasil ou assassinadas pela polícia: jovens de baixa renda e escolaridade, moradores de periferias, negros e pardos.

Neste cenário desigual, nasce a PEC 171/1993, visando uma suposta solução contra o aumento da violência urbana nas décadas recentes – nas mesmas décadas em que, por exemplo, o Brasil aprovou a Lei dos Crimes Hediondos (1990). Paralelamente às propostas de mudanças legislativas visando o endurecimento na esfera penal, que temos visto desde então, a população prisional cresceu exponencialmente em todo o território nacional, hoje chegando a mais de 550 mil presos. Para se ter uma ideia, entre 1995 e 2014, houve um aumento de 280% da população prisional no Estado de São Paulo, enquanto entre 1991 e 2010, o crescimento populacional do Estado aumentou cerca de 30%.(3) A aposta no Direito Penal, em específico na pena de prisão, para resoluções de problemas que estão muito além dele, não só se mostrou ineficaz em seus pretensos objetivos de diminuição da violência, como resultou na violação de direitos de milhares de pessoas encarceradas em unidades superlotadas, verdadeiros depósitos de seres humanos, constituindo um ambiente propício para o surgimento de facções prisionais – gestadas durante esse período de expansão do sistema prisional brasileiro.

A disseminação de todo um ambiente de medo e de insegurança, fartamente alimentado por diversos meios de comunicação, constituiu um imenso bloqueio para a crítica e reflexão sobre as causas das desigualdades e da constituição de nosso ordenamento jurídico e criminal. Engendrou-se, como afirma Vera Malaguti Batista, um amplo desejo por “lei e ordem”, demanda central de uma cultura e um senso comum punitivista. Instaura-se “o dogma da pena, o controle territorial da pobreza e seus riscos, a delação como participação, a neutralidade técnica das governamentalidades sociológicas. Os efeitos estão por aí e doem: a expansão da prisão, sua teia ampliada de justiças alternativas, (...) e principalmente a fascistização das relações sociais e a inculcação subjetiva do desejo de punir”.(4) Ainda citando Malaguti, “a grande mídia tem sido um obstáculo a uma discussão aprofundada sobre a questão criminal. É ela quem produz um senso comum que nós chamamos de populismo criminológico”.(5) É aqui, nesse populismo criminológico, que as propostas de endurecimento penal – entre elas a redução da maioridade penal – ganham espaço, corações e mentes.

Todavia, as propostas de redução da maioridade penal, assim como outros projetos de lei na esfera penal, não são meros projetos, ingenuamente, visando uma melhora na questão da segurança pública. Pelo contrário, muitas vezes são projetos impulsionados por interesses econômicos, por toda uma indústria voltada para a segurança e para o sistema prisional. São muitos os interesses econômicos que envolvem o sistema penal, desde o setor de construção de presídios, fornecimento de alimentação, serviços terceirizados, tornozeleiras eletrônicas, privatização de presídios etc, fora os efeitos indiretos causados pelo discurso do medo e os seus reflexos para a indústria de armas e segurança privada.

Basta ver nas últimas eleições o financiamento de campanha dos políticos que compõem o Congresso Nacional, para verificar a força do lobby pelo aumento da política de encarceramento em massa. O deputado federal Silas Câmara (PSD-AM), por exemplo, nas eleições de 2014, recebeu para campanha R$ 200 mil da empresa “Umanizzare” Gestão Prisional e Serviços Ltda., empresa essa que gere presídios privatizados no país. Antônia Lúcia Câmara (PSC-AC), esposa de Silas, recebeu R$ 400 mil, e sua filha, Gabriela Ramos Câmara (PTC-AC), R$ 150 mil – ressalta-se que no Amazonas a “Umanizzare” é responsável por seis unidades prisionais.(6) No mesmo sentido, a “bancada da bala” tem sua orientação ideológica estreitamente ligada aos seus financiadores da indústria da segurança.

Trata-se de um momento político em que ideias como “mais presos, maior o lucro”, ou “mais medo, maior o lucro”, ganham força, levando o país a um cenário tenebroso. A PEC 171/1993 não é só sinônimo de um possível retrocesso, é também uma grande cortina de fumaça, pois a urgência do tema acoberta outros projetos potencialmente tão nocivos quanto – a exemplo do projeto do novo Código Penal que corre o risco de ser votado ainda nesse semestre, e propõe penas mais duras para uma série de crimes, extinção do livramento condicional etc.

Ao mesmo tempo, o empenho urgente para barrar a redução da maioridade penal preocupa na medida em que não se discute a situação já dramática dos jovens internados em instituições como a Fundação Casa, que no fundo operam com lógica semelhante ao sistema prisional, reproduzindo todo o repertório de violação de direitos e de agressões perpetrado pela orientação punitivista e encarceradora que norteia as atuais políticas de segurança pública. Não é à toa que em algumas unidades de internação, conhecidas entre internos e funcionários como cadeias dominadas, o paralelismo é evidente se levarmos em conta o que ocorre no sistema prisional adulto. A nomeação de Berenice Gianella como presidente da instituição, em junho de 2005, após ocupar os cargos de corregedora-geral do sistema penitenciário e secretária adjunta da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), o fato de que nesse mesmo período agentes do sistema carcerário assumem a direção de algumas unidades de internação da instituição, a atuação de integrantes do Grupo de Intervenções Rápidas (GIR) nessas unidades e a transferência – em meados da década de 2000 – de adolescentes para presídios comuns são alguns dos fatores que simbolizam o deslocamento da instituição em direção à dinâmica de funcionamento do sistema penitenciário (Mallart, 2014).(7) Ademais, nota-se que na Fundação Casa, assim como ocorre no sistema prisional adulto, a tortura não é algo incomum.(8) Além disso, parte dos que são contra a redução sugerem ou o aumento de pena para o adulto que alicie menores de 18 anos ou o aumento do período de internação de jovens que cometeram atos infracionais. Tais “soluções” alternativas operam na mesma lógica penal que tem instrumentalizado a política encarceradora.

Entendemos que o debate razoável para o enfrentamento dos temas e realidades ligados à segurança pública passa pela necessária diminuição da população privada de liberdade, bem como pelo término das execuções sumárias que acontecem nas periferias urbanas. Isso envolve, obviamente, novas posturas, medidas e políticas nos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.

Faz-se necessária, assim, a construção de um programa nacional de segurança que tenha como eixo central o fim do Estado Penal ao qual estamos submetidos. Nesse sentido, juntamente com outras entidades e movimentos de combate à violência estatal e de defesa dos direitos humanos, apresentamos a Agenda Nacional pelo Desencarceramento,(9) que reúne dez diretrizes políticas que se desdobram em políticas públicas para as três esferas de poder. É, portanto, a partir do fim do encarceramento em massa, em vista de uma sociedade livre do punitivismo e de grades que massacram a população empobrecida, que compreendemos o debate contra a redução da maioridade penal.

Notas

(1) Disponível em: .

(2) Disponível em: .

(3) Disponível em: .

(4) Batista, Vera Malaguti. Adesão subjetiva à barbárie. Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012. Disponível em: . Acesso em: 18 mar. 2015.

(5) Idem, ibidem.

(6) Disponível em: .

(7) Mallart, Fábio. Cadeia dominadas: a Fundação Casa, suas dinâmicas e as trajetórias de jovens internos. Ed. Terceiro Nome/Fapesp, 2014.

(8) Disponível em: e .

(9) A íntegra da Agenda Nacional pelo Desencarceramento está disponível em: .

Valdir João Silveira
Coordenador Nacional da Pastoral Carcerária.

Marcelo Naves
Vice Coordenador da Arquidiocese de São Paulo na Pastoral Carcerária.

Francisco de Barros Crozera
Assessor Jurídico da Pastoral Carcerária de São Paulo.



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