José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
Em seus quase 23 anos de história, o IBCCRIM nunca antes havia externado no editorial de dois Boletins seguidos sua posição sobre o mesmo tema. É com orgulho de lutar contra os retrocessos político-criminais que isso, pela primeira vez, é feito nesta edição especial sobre a proposta de redução da maioridade penal.
Nesse contexto, não custa lembrar de que a primeira vez em que o IBCCRIM (Boletim n.º 104) lançou-se, em seu editorial, contra a redução da maioridade penal, foi em 2001.
Naquele momento afirmava-se que não seria difícil a elaboração de um texto sobre um tema candente que ora se inscreve novamente na ordem do dia. Isso porque, bastaria a combinação de argumentos precisos, com o tempero de alguma erudição, para transformar algumas palavras em um texto completo dotado de sentido para os bons operadores do Direito. Infelizmente, a pauta da redução da maioridade penal não se limita ao campo da razão e, quase 15 anos passados, os defensores do Direito Penal máximo preservam a mesma tônica discursiva, aproveitando-se do momento de crise para mobilizar, a golpes de retórica, a falaciosa agenda da punição redentora.
É evidente que as crescentes ações repressivas sobre população jovem, entre as quais a PEC 171/1993 é apenas mais uma, têm por alvo preferencial uma juventude vulnerável, predominantemente negra e periférica. E mais evidente que o alarmante seletivismo dessas políticas é o seu rotundo fracasso, do que não é difícil depreender que a mudança da imputabilidade penal de 18 para 16 anos se juntará a essa trágica coleção de equívocos.
Para além das paixões que o tema possa suscitar, as dificuldades no enfrentamento do problema são sensíveis: disfarçados de alardeadas boas intenções, os romancistas do desespero humano, “cujas narrações não subsistem sem o sangue e a dor” (Editorial do Boletim IBCCRIM n. 127, jun., 2003), propagam argumentos obscurantistas e rasteiros – e que se reproduzem com velocidade inalcançável – ao que o destino final dos pecadores deverá invariavelmente ser a expiação de suas culpas junto aos adultos em um sistema reconhecidamente falido.
Causa espanto o grau de autoengano que possuem os defensores de tais medidas draconianas, pois se esquecem de “que o mesmo povo que hoje quer as cabeças dos culpados expostas em praça pública, também teme ser vítima do arbítrio das autoridades. Os mesmos que clamam pela redução da idade penal sabem que nunca houve uma política séria de educação e tratamento para a infância, e que não há lugar para mais gente nas prisões (construídas já em ritmo frenético)”. (Editorial doBoletim IBCCRIM n. 127, jun., 2003)
A redução da maioridade penal, para muitos, é a saída mais próxima, a resposta mais fácil, para a diminuição abrupta da criminalidade, pois na ausência de senso crítico e de uma visão de longo prazo para política criminal, que não se resume à criação de leis repressivas, a cultura punitivista se alia aos grandes veículos de comunicação, formando legiões aptas para desfilar aos ventos chavões populares da maior antipatia aos “eles” e “elas” distantes; afinal, o criminoso é sempre o outro, aquele que se quer ver longe, não se concebendo que o outro do outro será sempre o eu, nem se concebendo, como tantas vezes lembrado pelo filósofo Emmanuel Lévinas, que na proximidade o Outro, agora maiúsculo, sempre exigirá incondicional respeito (cf., p. Lévinas, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Trad. José P. Ribeiro. Lisboa: Ed 70, 2000).
Repisar os argumentos para a permanência da imputabilidade a partir dos 18 anos se faz necessário quando nos colocamos diante de uma opinião pública/publicada que “dá de ombros” ao jovem brasileiro, que opta por murá-lo em vez de fazê-lo vicejar em suas potencialidades, excluí-lo em vez de assegurar as condições básicas de sua subsistência, de dar espaço para o discurso do terror, do ódio, do medo, em vez de expandir o locus das densas e meditadas considerações sobre a natureza social e econômica que precedem o problema.
Diante desse cenário político, algumas perguntas surgem de forma inconveniente, embora pareçam ter sido cautelosamente esquecidas do debate: a quem interessa o discurso de ódio, medo ou terror?; quem lucra com o desenvolvimento da segurança privada e com a prestação de serviços às prisões com suas centenas de milhares de “hóspedes”?; qual a razão de o Estado estabelecer uma política pública de guerra contra certos indivíduos, embora pudesse adotar uma política que modificasse, de fato, as estruturas sociais e proporcionar o bem-estar da coletividade?; por fim, no mesmo sentido de Agostinho Ramalho Marques Neto (O Poder Judiciário na Perspectiva da Sociedade Democrática: O Juiz Cidadão. Revista ANAMATRA, n. 21, 1994), quem nos salva da bondade das pessoas de bem? Com Mia Couto, “há quem tenha medo que um dia o medo acabe”, “para fabricar armas, é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos, é imperioso sustentar fantasmas” (Conferência de Estoril sobre segurança, 2011).
A estratégia foi traçada e as ações vêm sendo cumpridas meticulosamente. Com o poder de persuasão e alcance de que dispõem os grandes meios de comunicação, a opinião pública/publicada tem sido formatada, levada a considerar como coletivos os interesses de um pequeno grupo de mercadores da miséria. Por meio da palavra e da exploração sensacionalista do medo, pretende-se convencer do impossível e fazer valer o impensado; pretende-se aprisionar/segregar os jovens, e torna-los prisioneiros vitalícios do estigma.
Ora, a “mudança da lei não pode ser resposta à ineficiência das instituições (Administração, Polícia, MP, Judiciário), que falham ao não evitar que o menor seja atraído para a transgressão e, depois, falham novamente ao não reagir à ocorrência de fatos criminosos de modo rápido, eficaz e sem demagogia.” (Editorial do Boletim IBCCRIM n. 133, dez., 2003).
Nesse sentido, o IBCCRIM, ciente de sua missão institucional, apresenta a toda a comunidade brasileira o presente Boletim especial sobre a redução da maioridade penal, na perspectiva de evitar retrocessos e de chegar a um mundo outro, menos desigual, menos injusto e menos cruel. Um mundo em que a intervenção penal, tal como a concebemos em nossos dias, não seja nada além de uma primitiva lembrança. Se não chegarmos, “ao menos teremos dado aos nossos jovens e à nossa sociedade o direito de sonhar”. (Editorial do Boletim IBCCRIM, n. 270, maio, 2015).
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