José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
Autor: Mauricio Stegemann Dieter e Luciano Anderson de Souza
A redução do critério cronológico para definição da imputabilidade penal sugerida pela PEC 171/1993 é rigorosamente incompatível com diferentes determinações constitucionais, jurídico-penais, criminológicas e político-criminais. Sombrios prognósticos antecipam o profundo impacto social de sua aprovação, notadamente no cenário prisional, cuja desumanidade certamente não será revertida mediante acréscimo populacional. Mesmo assim, a Proposta tem tramitado sob o aplauso de importantes setores sociais, aos quais apelam a fração menos ilustrada da classe política brasileira por meio de discurso oportunista, raivoso e pleno de lugares-comuns. Contra esse falso consenso, vendido no atacado pela mídia de massa, entendemos ser preciso contrastar uma análise academicamente rigorosa, ainda que sucinta, capaz de denunciar a completa irracionalidade da iniciativa legislativa, de modo contundente e sem demora.
Análise que começa pela estranha conjuntura política que permitiu incluir na pauta do Congresso um retrocesso humanitário que, se por um lado nunca abandonou o senso comum criminológico, por outro raramente foi levado a sério por representantes do poder popular. Não é incomum, contudo, que a bandeira da criminalização seja hasteada em momentos de crise. Pelo contrário: se há algo que é assustadoramente regular na história recente dos países ocidentais é a frequência entre tensão institucional e expansão do sistema penal. Nesse caso a ameaça da “redução da maioridade” está inscrita no contexto das graves denúncias de corrupção, investigadas fora do processo legal e exploradas como propaganda, que amplificam a disputa do capital político entre os Poderes Executivo e Legislativo. Natural que os parlamentares envolvidos nessa trama encontrem no populismo punitivo uma forma eficiente de simultaneamente desviar o foco sobre a apuração de suas responsabilidades e angariar simpatia eleitoral. Assim, como que num passe de mágica, uma agenda antidemocrática adormecida há mais de vinte anos exsurge imponente como solução para problemas nacionais de primeira grandeza. À parte a colaboração espontânea dos muito crédulos, em verdade nada mais temos do que simples conveniência de atores ruins, que intencionam encetar demagógica cortina de fumaça para disfarçar um cenário político em ruína moral. O efeito simbólico da criminalização é bem conhecido para dissimular as causas reais de tais sintomas, como se vê.
A desconfiança em relação às más intenções legislativas é corroborada pela flagrante inconstitucionalidade da proposta. Afinal, a idade mínima prevista para sujeitar alguém à censura penal é direito fundamental da pessoa humana, ou seja, essencial à Constituição da República e, por isso, insuscetível de alteração, como manda o princípio da proibição de retrocesso. Em outras palavras, fosse possível debater a redução do início da culpabilidade para 16 anos, deputados e senadores também estariam autorizados a propor o retorno à proibição do voto feminino, das penas corporais e capital e, no limite, da escravidão. Felizmente, em face do risco de renovadas sístoles ideológicas, o Estado Democrático de Direito assegura formalmente ao cidadão o acúmulo das garantias individuais conquistadas por lutas sociais contra toda espécie de manobra reacionária. E não merece maiores considerações o argumento de que a exigência de idade mínima de 18 anos foge à lógica recém exposta porque prevista no art. 228 da Constituição de 1988 – e não no art. 5.º, domicílio preferencial dos direitos humanos. Tal alegação, feita por jurista, serviria nada mais do que atestado de ignorância, pois há extensa previsão de direitos fundamentais além do art. 5.º, em parte pelo prosaico motivo de distribuição temática do texto. A propósito, de ser válida a afirmação de que apenas o art. 5.º e seus incisos são cláusulas pétreas, outras garantias já consagradas – como o direito ao divórcio, previsto no art. 226, § 6. º, da CR – também poderiam ser revertidas, o que é absurdo – condenando-se homens e mulheres à eventual miséria conjugal em nome de pedestre formalismo. Mais não precisa ser dito.
Melhor sorte não encontra a proposta no estrito campo jurídico-penal, pois o juízo de censura realizado pelo Direito Penal exige que autor ou partícipe do crime não apenas tenha uma correta compreensão de suas ações mas, antes de tudo, possa defini-las a partir de suas consequências práticas. Portanto, e excluídos os casos mais severos de sofrimento psíquico ou notório efeito de substância psicoativa, imputabilidade confunde-se com maturidade, processo complexo, profundamente heterogêneo e sempre incompleto, que não se subsume à exigência simplista do “saber o que se faz”, mas de poder, concretamente, determinar o próprio comportamento a partir desse conhecimento, que em boa medida depende da experiência de vida que falta aos adolescentes.(1) Ressalte-se que na atual sociedade promotora da impetuosidade juvenil voltada ao consumo, alguns psicólogos defendem que a possibilidade de retribuição do crime mediante pena demandaria mais de 21 anos completos, ou seja, uma atualização do Código Penal deveria ponderar o aumento ao invés da redução da maioridade.(2)
Fora dos limites expiatórios da culpabilidade, o pleito reducionista tampouco se firma em terreno utilitarista, dado o fracasso da função declarada de prevenção de novos crimes atribuída à pena criminal. De fato, a ideia de privar alguém de liberdade ambulatorial para evitar a prática de ilícitos futuros não resiste à evidência histórica e universal de que o sistema penitenciário somente favorece a reincidência, seja por meio da produção de subjetividades violentas via aculturação carcerária, seja pelo reforço à seletividade inerente ao sistema de justiça criminal e seus agentes, que privilegiam a sobrecriminalização dos já condenados em comparação às demais pessoas – os egressos da Execução Penal, enfim, serão eternamente “suspeitos” preferenciais. Além disso, para aqueles minimamente familiarizados com o horror inerente ao cumprimento da medida “socioeducativa” de internação – imposta aos adolescentes que praticam atos infracionais graves – salta aos olhos o cinismo da suposição de que a ameaça de uma “peine forte et dure” desestimularia o ingresso dos jovens no “mundo da delinquência”: como se cumprir tempo nas “fundações Casa” e congêneres – boas intenções e instalações à parte – não fosse pesadelo dissuasório suficiente. O mito de que o Estatuto da Criança e do Adolescente é leniente e apologético do comportamento violento de “ menores ” ignora que qualquer tentativa digna de recuperação precisaria , primeiro, ser verdadeiramente tentada, para só depois ser declarada ineficaz. E, mesmo assim, a ineficiência não afastaria o padrão de moralidade exigido do próprio Estado em relação aos seus, pois da mesma forma que o “mito da ressocialização” não autoriza o abandono dos reclusos à própria sorte, desistir do improvável caráter “socioeducativo” de uma restrição forçada à liberdade não é alternativa admissível. Em síntese: as mazelas da internação jamais poderiam justificar a barbárie penitenciária, não obstante sua eventual, indevida e lamentável confusão na realidade.
Afastando-nos da pragmática e abraçando uma visão eminentemente teórica, é importante lembrar que o Direito Penal expressa uma conquista civilizatória, que opõe critérios racionais de inspiração iluminista ao terror estatal do Antigo Regime. Não por outro motivo, o objetivo central de suas categorias – que definem “o quê”, “por quê” e “como” punir – é o de limitar a violência estatal, nunca de racionalizá-la. Como resultado, é na preferência dada à defesa da cidadania em detrimento aos interesses punitivos do Estado que se resolve o paradoxo de proteger bens jurídicos (de todos os cidadãos) mediante violação de outros bens jurídicos (dos acusados de praticar crimes). Qualquer tentativa de aumentar a competência punitiva pressupõe, à luz dessas considerações, demonstrar antes a absoluta impossibilidade de alternativas não violentas, como políticas públicas de educação, emprego, cultura, lazer etc. Ausente a evidência de que o Estado brasileiro esgotou medidas de inclusão social para profilaxia de ações antissociais, falta legitimidade aos proponentes para invocar a esterilidade do sistema penal. Nesse sentido, o legislador brasileiro ganharia mais revisando o que o Estado tem feito em favor da emancipação social dos jovens do que divagando irresponsavelmente sobre como encarcerá-los; desse primeiro exame, ao menos, poderiam surgir ações legítimas do ponto de vista jurídico. Seja como for, não há dúvida de que as barreiras constitucionais e penais estão fechadas para a pretensa contramão histórica.
Igualmente infranqueável é a refutação contra essa sandice que parte do campo criminológico, imune à tentação juvenil-punitiva deste todos os espectros teóricos. Desde um olhar crítico-radical, por exemplo, a antecipação etária da seletividade penal é desmascarada como parte de um projeto de controle social voltado à neutralização preventiva – pela contenção ou destruição – da chamada “underclass”, esse grupo social engrossado pelo desemprego estrutural e próprio da reestruturação do capital pós-fordista, promovida por estratégias neoliberais voltadas à recuperação dos índices de lucro perdidos desde o início da década de 1980.(3) Mas essa crítica sócio-histórica, apesar de correta, está longe de servir como referente imediato para o debate, pois bastaria uma rápida leitura da “justificativa” do Projeto de Emenda Constitucional em questão para perceber que a imaginação parlamentar não ultrapassa o umbral da infantilidade ideológica, desconsiderando qualquer determinação estrutural subjacente.
Por essa razão, é na criminologia etiológico-social estadunidense que se encontram os mais robustos argumentos contra qualquer iniciativa redutora, inclusive no trabalho de pesquisadores de conhecido perfil conservador, cujas investigações desde o início da década de 1960 demonstraram a normalidade da relação entre “comportamento desviante” e juventude, sem que isso tenha maiores repercussões sociais e resolvendo-se a regular tendência no começo da segunda década de vida.(4) Mais: esses estudos também revelam que quanto mais cedo o adolescente tem contato com as agências de criminalização, maiores as chances de ele ingressar definitivamente em “carreiras criminosas”, tornando-se um “reincidente crônico”. Em outras palavras, a direita criminológica alerta para o “efeito criminogênico” do sistema de justiça criminal, ao comprovar que a intervenção de policiais, promotores, juízes e carcereiros em situações conflitivas envolvendo crianças e adolescentes promove a criminalidade ao invés de reduzi-la. A criminalização e seus agentes, por conseguinte, são parte do problema, não da solução, rejeitando-se por completo a ideia contraditória de punição dos jovens como mecanismo para evitar a prática de ações violentas.
Para encerrar, algumas palavras podem ser ditas a partir da Política Criminal. Segundo dados bastante conhecidos da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), aqueles que têm entre 16 e 17 anos são responsáveis por apenas 0,9% dos crimes, no geral, e de 0,5% dos homicídios. Desta maneira, a redução da maioridade penal é absolutamente incapaz de alterar significativamente o quadro da criminalidade nacional, ainda que viabilizasse o encarceramento prolongado de todos os homicidas com menos de 18 anos – o que, sabidamente, não vai lograr. Em um país com índices alarmantes de encarceramento, com a quarta maior população carcerária do planeta – terceira, se considerarmos o cumprimento dos mandados de prisão em aberto ou a execução de pena em regime domiciliar – provoca calafrios o mero prenúncio de aumento desse contingente de sujeitos sem direitos, submetidos a condições de vida desumanas com odiosa tendência à naturalização política.
E apesar de todas as evidências, que saltam aos olhos, o chamado à razão contra a redução da maioridade penal tem enorme dificuldade em ultrapassar as fronteiras acadêmicas para sensibilizar os cidadãos que, cedo ou tarde, vão pagar com vida, liberdade e patrimônio o erro comprado como panaceia. Parte dessa responsabilidade, por certo, deve ser assumida pelos próprios acadêmicos, que não raro pouco se esforçam para descer das torres de marfim que distanciam o povo do conhecimento por ele financiado. Mas também precisaria ser dito que esse assunto, como é próprio daquilo que envolve violência, está preso a uma retórica temperamental, que abusa dos sentimentos de “impunidade” e “insegurança” para desatar a raiva social. Raiva, essa, potencializada pelos meios de comunicação e seus arautos, especialistas de um conhecimento vulgar que ignoram a mais elementar prudência ética para reforçar, na incessante remissão aos mais terríveis casos criminais, o irracionalismo vindicativo levado às últimas consequências.(5) Não é de estranhar que, fraudada a pergunta, o estelionato intelectual se apresente como resposta via PEC 171, como querem os factoides midiáticos e sua interdição ao pensar , (6) proibindo a “opinião pública(da)” de refletir em qualquer posição além da demanda por mais Direito Penal.(7)
A conclusão é óbvia: a proposta de redução da maioridade penal é falaciosa em seus argumentos e desumana em suas consequências. Rejeita a possibilidade de políticas públicas de segurança e apenas possui o condão de reproduzir um ciclo vicioso de violência, consubstanciando-se em puro retrocesso civilizatório. Expressa, portanto, a vitória da irracionalidade, que de ser confirmada deveria redefinir a famosa inscrição do lábaro estrelado para “desordem e retrocesso”.
Notas
(1) No limite, o mesmo se poderia dizer para pessoas com sofrimento psíquico determinante de atos violentos, as quais eventualmente podem saber exatamente o que estão a fazer, mas são incapazes de evitar tais condutas; são, por isso, inimputáveis, independentemente de “saber o que fazem”. Vide, por todos, Cirino dos Santos, Juarez. Direito penal: parte geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2007. p. 287-289.
(2) Sobre essa “prorrogação da juventude” que se percebe especialmente entre os mais ricos, vide Arnett, Jeffrey Jensen. Emergin adulthood: the winding road from the late teens through the twenties. Nova Iorque: Oxford University Press, 2004. p. 106-261.
(3) Os pobres urbanos se tornam, da perspectiva do poder, uma população inútil, incapaz de produzir lucro; a ideia é se livrar deles e o sistema de justiça criminal é um dos melhores meios para isso, especialmente quando articulado com a ideia de guerra às drogas conforme: Feeley, Malcolm; Simon, Jonathan. The new penology. Criminological perspectives. 2. ed. Londres: Sage, 2005. p. 434-446. Mais sobre o conceito e análise em: Morris, Lydia. Dangerous classes: the underclass and social citizenship. Nova Iorque: Routledge, 1994, p. 157-165, Melossi, Dario. Cárcere, pós-fordismo e ciclo de produção da “canalha” In: De Giorgi, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006. p. 21-22; e Ruggiero, Vincenzo. Crimes e mercados: ensaios em anticriminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 69-71.
(4) Vide, entre outros, os trabalhos nada simpáticos ao pensamento ilustrado em matéria penal de Farrington, David P. Key Results from the First Forty Years of the Cambridge Study in Delinquent Development. Taking stock of delinquency. Nova Iorque: Plenum Publishers, 2003. p. 148-150; Figlio, Robert M., Sellin, Thorsten; Wolfgang, Marvin E. Delinquency in a Birth Cohort. Chicago: University of Chicago Press, 1972. p. 88-245; e Figlio, Robert M.; Tracy, Paul E.; Wolfgang, Marvin E. Delinquency Careers in Two Birth Cohorts. Nova Iorque: Plenun Press, 1990. p. 273-298.
(5) A imprensa, assim, mostra-se como o principal protagonista hodierno do punitivismo. Cf. Batista, Nilo. Novas tendências do direito penal: artigos, conferências e pareceres. Rio de Janeiro: Revan, 2004. p. 114.
(6) Wacquant, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 26 e ss.
(7) Silva Sánchez, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. passim.
Mauricio Stegemann Dieter
Professor Doutor de Criminologia da Faculdade de Direito da USP.
Luciano Anderson de Souza
Professor Doutor de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.
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