INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 271 - Junho/2015





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Adolescentes: o Estado se revela violador de direitos e a sociedade faz coro à superficialidade

Autor: Ana Paula Motta Costa

Há algo de positivo neste momento conjuntural brasileiro: nunca se debateu tanto sobre o tema da redução da idade de responsabilidade penal e, em consequência, sobre a forma como o Estado brasileiro trata seus adolescentes.

Não que os fatos geradores do debate mereçam valoração positiva, pois a autorização de tramitação da PEC 171 no Congresso Nacional se reveste de circunstância de muito risco para o País. Porém, o debate intenso possibilita reflexões sobre temas que há muito geram incômodo às pessoas que lidam com a temática socioeducativa, mas que não despertavam interesse de outros setores sociais.

Nesse contexto, situa-se a constatação de que os adolescentes são efetivamente responsabilizados pelos atos infracionais que praticam e, em algumas situações, de forma mais severa que os adultos normalmente respondem, muitas vezes com práticas que fogem à legalidade prevista.

Ainda que as medidas socioeducativas aplicadas judicialmente – em meio aberto ou privativas de liberdade – devam restringir direitos relacionados apenas à liberdade, vários outros direitos dos adolescentes são atingidos durante a execução, como a integridade física, a intimidade, a convivência familiar e comunitária, ou a dignidade da pessoa humana. Isso ocorre em razão de um histórico processo de institucionalização do controle sociopenal ilimitado e justificado em nome da proteção de pessoas na condição de incapazes em razão da idade Mendez, 1996, p. 57-66).

Constata-se que, após 25 anos de vigência do ECA (Lei 8.069/1990), e mesmo depois da promulgação da Lei que regulamenta o Sistema Socioeducativo – Sinase (Lei 12.594/2012) –, no âmbito da execução socioeducativa é amplo o espaço para a deliberação administrativa sobre a restrição de direitos. Ou seja, a falta de um referencial normativo mais preciso se presta à discricionariedade demasiada e à disparidade entre realidades regionais e jurisdicionais. Em contextos distintos deste País, interpreta-se e aplica-se a lei de acordo com padrões próprios de interpretação, resultando em disparidade de procedimentos, alguns deles menos precisos que os utilizados para a execução penal dos adultos, como quanto aos critérios usados para a progressão de medidas socioeducativas.

Luiz Luisi se refere explicitamente sobre a importância da incidência do Princípio da Legalidade, ou da Reserva Legal, nas normas disciplinadoras da execução da pena.(1) Ou seja, além de só serem passíveis de repressão condutas realizadas em sociedade se já houver previsão legal que as criminalize, também a legitimidade da execução punitiva depende da legalidade de sua condução (Luisi, 1991, p. 17). Essa afirmação se confirma na medida em que a execução socioeducativa transcorre durante certo espaço de tempo, no qual vários atos estatais incidem sobre a liberdade do sujeito. A legitimidade de tais atos depende de sua legalidade. É pressuposto para que não ocorram violações de direitos que se conte com parâmetros legais comuns, menos flexíveis à perspectiva punitiva.

Porém, observa-se que o tratamento institucional, social ou jurídico, não costuma considerar o sujeito adolescente e seus direitos na dimensão de sua realidade e necessidades. Tal situação está relacionada à ausência de consideração sobre a peculiaridade geracional e cultural. Embora exista reconhecimento normativo do princípio da condição peculiar de desenvolvimento, que se caracteriza como a afirmação legal da diferença a ser considerada na aplicação do Direito, tal reconhecimento é abstrato, formal e distante das necessidades concretas.

O espaço discricionário, que deveria garantir tratamento diferenciado a cada sujeito, de acordo com seu “melhor interesse”, na prática tem servido de espaço de atuação não apenas do poder punitivo do Estado, mas também da sociedade punitivista.

É comum se observar durante a execução socioeducativa práticas judiciais ou administrativas generalizadas, descomprometidas com a consideração do sujeito em sua particularidade. Como exemplo, situações em que a medida socioeducativa aplicada levou em consideração apenas a proporcionalidade entre o ato praticado e a gravidade da sanção a ser imposta, sem considerar qual seria a intervenção mais adequada ao caso em concreto.(2) Há decisões judiciais em sede de execução que computam o tempo como efeito retributivo, considerando a gravidade do ato praticado, sem levar efetivamente em conta a situação concreta do adolescente em cumprimento da medida.(3) Ainda, apesar de os planos de atendimento estarem formalmente dentro do preconizado pela Lei, acabam por não atingir a individualidade do sujeito, não identificando suas potencialidades.

Sabe-se que todas estas práticas, sutis e cotidianas, explicam-se diante do grande volume de trabalho das pessoas, ou pela semelhança, à primeira vista, que as situações de diferentes adolescentes têm entre si. Explicam-se, ainda, diante das dificuldades que a estrutura do Estado oferece para que se trate de individualidades. No entanto, também refletem a interpretação da legislação sem consideração de um de seus princípios fundantes: a equidade – ou o tratamento de quem é diferente de forma diferente – como requisito complementar à legalidade, princípio legitimador da justiça.(4) Em outras palavras, a falta de individualização na execução socioeducativa acaba acarretando mais punição, ou “pura punição”, sem cumprimento da finalidade diferencial a que as medidas socioeducativas se propõem como discurso normativo.

O princípio da condição peculiar de desenvolvimento foi positivado na Constituição Federal como justificativa do tratamento diferenciado, ou tendo como fundamento a necessária equidade em relação aos adultos. De outra parte, trata-se da busca pela garantia de igualdade, na medida em que reconhecer as pessoas nessa fase da vida como sujeito de direitos é reconhecê-las como capazes no exercício desses, de acordo com seu respectivo processo de maturidade. Conforme Flávia Piovesan, torna-se insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata. “Faz-se necessária a especificação do sujeito de direitos, que passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade” (Piovesan, 2010, p. 47-50).

Joaquin Herrera Flores faz um contraponto entre os princípios de igualdade e diferença, concluindo que, em oposição à ideia de igualdade, não está a diferença, mas sim a desigualdade. Ou seja, as desiguais condições sociais, econômicas e culturais fazem com que alguns tenham menos capacidade para atuar que outros - e isso se relaciona à desvalorização social para com determinados grupos (Herrera Flores, 2010, p. 116). As dificuldades, portanto, de quem se situa no campo da diferença, referem-se em maior medida às suas necessidades reais e concretas, não ao campo abstrato e político.

Em abstrato, sabe-se que os adolescentes estão em um momento da vida em que são diferentes dos adultos. Porém, há dificuldade de ser reconhecida, de fato, a sua condição peculiar. Quando se trata de adolescentes pobres, de contextos sociais das periferias, envolvidos com violência, torna-se ainda mais difícil tal reconhecimento.

Ora vejam-se, se nem o patamar mínimo de legalidade se alcançou como tarefa estatal de responsabilização dos adolescentes nestes 25 anos de vigência do ECA, como se pode falar hoje de que a solução para os problemas estaria na redução da idade de responsabilização penal, ou no aumento do tempo de encarceramento dos sujeitos? O Estado brasileiro não realizou sua tarefa de reconhecimento mínimo dos sujeitos na etapa da vida adolescente e viola cotidianamente seus direitos, a pretexto de sua responsabilização. Já a sociedade, por sua vez e em maioria, cala-se, omite-se e, neste momento, revela sua hipocrisia e incoerência. Afirma em coro que “não há punição”, que “não há justiça”, como se o problema real fosse esse.

É preferível acreditar que tal comportamento ocorre por falta de debate, ou por desconhecimento da realidade. Circunstância que leva a optar-se pelo olhar superficial sobre o tema. Assim, diante da crise que parece estar passando-se, o debate é uma oportunidade.

Referências

Herrera Flores, Joaquín. La Construccíon de las garantias. Hasta una concepción antipatriarcal de la liberdad y la igualdad. In: Piovesan, Flávia; Sarmento, Daniel; Ikawa, Daniela (Org.). Igualdade, diferença e direitos humanos. 2. tir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

Luisi, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1991.

Méndez, Emílio Garcia. Infância e cidadania na América Latina. São Paulo: Hucitec, 1996.

Piovesan, Flávia. Igualdade, diferença e direitos humanos: perspectivas regional e global. In: _______; Sarmento, Daniel; Ikawa, Daniela (Org.). Igualdade, diferença e direitos humanos. 2. tir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

Villey, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Notas

(1) Aqui se utiliza o referencial reflexivo do autor para a análise do tema no campo socioeducativo.

(2) Neste caso, pode-se dizer que há falta de legalidade, na medida em que o § 2.º do art. 112 do ECA preconiza que a medida socioeducativa a ser aplicada deverá levar em consideração a capacidade de cumprimento, as circunstâncias, além da gravidade da infração.

(3) Na medida em que no § 2.º do art. 42 da Lei 12.594/2012 consta expresso que a gravidade do ato infracional, os antecedentes e o tempo de duração da medida não são fatores, que por si sós, justificam a não substituição por medida menos gravosa.

(4) Utiliza-se como referência o conceito de equidade a partir de Aristóteles. Para o filósofo grego, a ideia de equidade significa a realização plena da igualdade e, por isso, fundamento de justiça (Villey, 2005, p. 62-63).

Ana Paula Motta Costa
Doutora em Direito e Professora da Faculdade de Direto da UFRGS.



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