INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 271 - Junho/2015





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Duas questões fundamentais sobre a responsabilização penal de adolescentes

Autor: Karyna Batista Sposato

Quando o tema é o famigerado debate em torno da redução da maioridade penal, duas questões me parecem fundamentais e inadiáveis. A primeira diz respeito à compreensão de que a inimputabilidade penal dos menores de 18 anos não afasta sua responsabilização penal pelo cometimento de crimes.

Para tanto é preciso ter em conta que a exemplo da maioria dos sistemas jurídicos, o Direito brasileiro não define a imputabilidade e sim trabalha com categorias de sujeitos a quem lhes nega sua incidência, os chamados inimputáveis.

É assim que ocorre com os menores de 18 anos nos moldes do que dispõe a Constituição Federal brasileira de 1988 em seu art. 228 ao descrever: “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”.

A mesma regra se vê espelhada no art. 27 do Código Penal brasileiro: “Os menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial”, e no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 104 que igualmente estabelece: “São penalmente inimputáveis os menores de 18 anos, sujeitos às normas previstas nesta lei” (grifei).

Como se pode perceber dos três diplomas legais: Constituição de 1988, Código Penal e Estatuto da Criança e do Adolescente constrói-se a regra da inimputabilidade penal etária atualmente vigente no Brasil. Tal regra se funda objetivamente no critério de idade para estabelecer a competência da justiça especializada da infância e juventude, e a incidência da lei também especial, a Lei 8.069/1990 – o Estatuto da Criança e do Adolescente. Uma vez originada hierarquicamente pela norma constitucional, a inimputabilidade penal etária se irradia para todo o sistema jurídico.

Destaque-se que em matéria de Direito Penal comparado se constata que em grande parte dos ordenamentos jurídicos, o menor de idade se situa abaixo da idade de fixação da responsabilidade penal de adultos, adotada, na maioria dos Códigos Penais contemporâneos, aos 18 anos de vida. Essa fixação corresponde à linha divisória entre imputáveis e inimputáveis por causa etária, tal qual ocorre no Direito penal brasileiro.

Contudo, ser inimputável não significa - nem poderia significar - que o adolescente seja isento de culpabilidade e que a ele não se possa atribuir a autoria e a responsabilidade pela prática de um crime.

O indivíduo adolescente para o Direito brasileiro, com idade entre 12 a 18 anos, idade mínima – 12 anos e idade máxima – 18 anos é um sujeito responsável perante o ECA.

Esta responsabilidade diferenciada dos adultos (maiores de 18 anos) é consequência da condição de pessoa em desenvolvimento dos adolescentes e do reconhecimento de que adolescentes e adultos representam realidades sociais distintas, que exigem do sistema jurídico respostas e intervenções também distintas e singulares, de acordo com o status social e as particularidades dos menores de idade.

O jurista espanhol Miguel-Angel Boldova Pasamar, na obra de língua espanhola Lecciones de consecuencias jurídicas del Delito, destaca que a disciplina de responsabilização dos menores de idade se trata de um verdadeiro Direito Penal, porém adaptado às necessidades dos adolescentes e em consideração ao fato de que adultos e adolescentes possuem realidades distintas. O menor de idade possui traços sociais próprios, uma personalidade própria que está em constante, vertiginosa e contínua evolução, sendo o direito obrigado a assumir tais diferenças no tocante à sua regulação e, em concreto, estabelecendo um direito distinto do Direito Penal de adultos (Boldova Pasamar, 2004).

Como se vê, na experiência e modelo atual da justiça brasileira da infância e juventude, a inimputabilidade penal etária dos adolescentes não afasta a possibilidade de atribuição da autoria de crimes e sua consequente responsabilização por meio das medidas designadas pelo ECA como socioeducativas e que constituem verdadeiras sanções ou penas juvenis.

O que a inimputabilidade penal etária opera no ordenamento é justamente a configuração de um Modelo de Responsabilidade especial dos adolescentes que tem como ponto de partida a isenção da responsabilidade criminal plena do menor de 18 (dezoito) anos e a determinação de uma responsabilidade penal especial com base na legislação específica, o ECA.

Conforme sistematiza o penalista espanhol Silva Sánchez, pode-se afirmar que nesses modelos, tal qual o brasileiro, adota-se, em sua maioria, a idade de 18 (dezoito) anos como fronteira da culpabilidade plena ou da responsabilidade penal plena (Silva Sánchez, 1997).

No mesmo sentido, Amaral e Silva pondera:

Embora inimputáveis frente ao Direito Penal comum, os adolescentes são imputáveis diante das normas da Lei especial, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim respondem penalmente, face o nítido caráter retributivo e socioeducativo das respectivas medidas, o que se apresenta altamente pedagógico sob o ângulo dos direitos humanos de vítimas e vitimizadores. O que não se admite no Direito Penal Juvenil são respostas mais severas e duradouras do que as que, em idênticas situações, seriam impostas aos adultos. Os princípios da legalidade estrita, da retributividade (temperada pela possibilidade de remissão), do caráter predominantemente pedagógico e excepcional das medidas socioeducativas constituem garantias de natureza penal (...) que não podem ser negadas aos infratores (...) Como visto, os jovens em conflito com a lei (o Estatuto) – decorrência de condutas penalmente reprovadas – têm responsabilidade que pode ser definida como penal especial” (Amaral e Silva, 2006, p. 57).

Diz-se então se tratar de um modelo de responsabilidade especial porque fundada na renúncia à imposição de uma pena criminal convencional aplicável aos adultos. Contudo, o mesmo não significa indiferença penal aos fatos típicos e antijurídicos que os adolescentes cometem, que são respondidos pela imposição de medidas socioeducativas com base em sua culpabilidade. A resposta penal chamada medida se impõe quando se pode inferir certo grau de responsabilidade individual subjetiva, que quando falta, faltará também a culpabilidade.

Por outro lado, a culpabilidade pode ser compreendida como densificação penal da dignidade humana, tal qual definiu Sebastian Borges de Albuquerque Mello. Conforme define o autor já na introdução de sua obra:

O conceito material de culpabilidade – o fundamento da imposição da pena a um indivíduo concreto em face da dignidade da pessoa humana:

O homem deve ser julgado como portador de um valor mínimo intrínseco, igual para todo ser humano, mas também como ser único e irrepetível, com particularidades, valores, circunstâncias e idiossincrasias próprias da condição humana, as quais devem ser levadas em consideração para que seja minimamente legítima a imposição da pena em face das condições e circunstâncias pessoais do autor da infração. Cumpre à culpabilidade analisar as peculiaridades do indivíduo concreto e averiguar se este deverá ou não, em face da ordem jurídica vigente, sofrer a ignomínia que a sanção penal representa, pois nem o conceito de injusto nem as finalidades preventivas logram êxito em determinar os fundamentos da imputação pessoal da pena”. (Mello, 2010)

Nessa perspectiva, aplicada à responsabilidade penal dos adolescentes, a análise da culpabilidade se reveste de dupla importância: reconhece o adolescente como ser humano titular de direitos fundamentais e confere um fundamento à imposição das medidas socioeducativas, limitando o poder punitivo e as chamadas funções preventivas de tais sanções.

A imputação ou atribuição da autoria pela prática infracional deve, dessa forma, guardar coerência com a gravidade do ato praticado, as circunstâncias pessoais do adolescente e as mesmas bases de exigibilidade da responsabilidade dos adultos, ou seja, a punibilidade e suas condições objetivas.

De forma sintética, o adolescente – pessoa entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade –, quando autor de conduta contrária à lei penal, deverá responder a um procedimento para apuração do ato infracional, sendo passível, se comprovadas a autoria e a materialidade do ato, de submissão a uma medida socioeducativa entre o rol das medidas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, verdadeiras penas juvenis.

Nessa dimensão, é inegável a submissão a uma medida socioeducativa como forma de imputação de responsabilidade, ainda que diversa daquela convencionada na justiça criminal comum dos adultos. Sobre o tema, esclarece novamente Amaral e Silva:

Sendo a imputabilidade (derivado de imputare) a possibilidade de atribuir responsabilidade pela violação de determinada lei, seja ela penal, civil, comercial, administrativa ou juvenil, não se confunde com a responsabilidade, da qual é pressuposto. Não se confundindo com imputabilidade e responsabilidade, tem-se que os adolescentes respondem frente ao Estatuto respectivo, porquanto são imputáveis diante daquela lei” (Amaral e Silva, Silva, 2006, p. 56).

Ao compreendermos que a responsabilidade penal do adolescente corporifica o Direito Penal juvenil, ou o Direito Penal de adolescentes brasileiro, ingressamos na segunda questão fundamental proposta neste breve ensaio: a de que o Direito Penal de adolescentes é genuinamente um campo próprio do Direito e subsistema do Direito Penal.

Adotando novamente uma perspectiva de direito comparado, o renomado penalista alemão Claus Roxin, na obra Derecho penal – Parte general, assinala que não pelo âmbito das normas tratadas, mas sim pela classe especial de autor, o Direito Penal juvenil se converte em um campo de Direito próprio. Trata dos delitos cometidos por menores de idade e suas consequências (parcialmente penais), contendo preceitos especiais de Direito material e processual. (Roxin, 1997)

Esta posição é pacífica na doutrina internacional. O Direito Penal juvenil ou de adolescentes corresponde às normas que regulam a responsabilidade penal dos menores de idade. Normas estas que pertencem ao Direito Penal, contemplando situações nas quais se impõem consequências jurídico-penais aos autores de uma infração penal. A intervenção do poder punitivo do Estado, conforme assinala o também espanhol Vázquez González, surge única e exclusivamente por um motivo: o cometimento de uma infração penal (crime ou contravenção) por menores de idade, à qual se impõe uma reação jurídica voltada a prevenir futuras infrações. (Vázquez González, 2003)

No tocante às diferenciações entre o Direito Penal de adultos e o Direito Penal de adolescentes, destaca-se que repousam apenas no sistema de consequências jurídicas, e em alguma medida a depender do ordenamento jurídico em questão, em aspectos relativos às regras de autoria e participação, tentativa, desistência, atos preparatórios, erro, imprudência e eximentes.

Neste caminho compreensivo, Sergio Salomão Shecaira também teceu considerações sobre o tema explicitando a localização penal desta matéria:

O sistema de responsabilização presente no Estatuto da Criança e do Adolescente pressupõe, pois, a existência de crime ou contravenção como causa objetiva, eficiente e necessária para o acionamento do sistema, sem prescindir das condições subjetivas (dolo ou culpa). Do ponto de vista objetivo, estabeleceu-se um sistema que não pode prescindir dos atos aos quais correspondem condutas descritas como crimes ou contravenções. Porém, é variável a intensidade da responsabilização, porquanto há uma relativização do princípio da proporcionalidade em função do superior interesse da criança. Mas, reafirma-se, a dualidade da identificação entre ato infracional e crime ou contravenção não passa de um eufemismo, que na essência permite ainda mais compreender o estudo do tema como de um ramo do Direito Penal”(Shecaira, 2008. p. 169).

O olhar cuidadoso sobre o atual modelo de responsabilização de adolescentes adotado no Brasil permite identificar que suas características traduzem disposições e princípios internacionais sobre a matéria, a exemplo das Regras de Beijing. É o que se observa a partir do descrito nas Regras, item 17.1 como rol de princípios norteadores do funcionamento do Sistema de Justiça Juvenil para os Estados no âmbito das Nações Unidas:

a) A resposta à infração será sempre proporcional não só às circunstâncias e à gravidade da infração, mas também às circunstâncias e às necessidades do jovem, assim como às necessidades da sociedade; b) As restrições da liberdade pessoal do jovem serão impostas somente após estudo cuidadoso e se reduzirão ao mínimo possível; c) Não será imposta a privação de liberdade pessoal a não ser que o jovem tenha praticado ato grave, envolvendo violência contra outra pessoa ou por reincidência no cometimento de outras infrações sérias, e a menos que não haja outra medida apropriada; d) O interesse e bem-estar do jovem será o fator preponderante no exame dos casos.

Tais elementos associados às duas questões retromencionadas permitem concluir se tratar o Direito Penal de adolescentes de um Direito Penal especial, que integra o Direito Penal, e se orienta fundamentalmente para a prevenção especial positiva em seu aspecto educativo.

Por todo o exposto, filio-me ao posicionamento de que em razão da classe do sujeito destinatário da responsabilidade penal, o Direito Penal de adolescentes há de ser mais benigno que o Direito Penal, e intransigentemente mais garantista. Logo, em nenhuma circunstância e sob nenhuma condição poderá o adolescente sofrer as mesmas consequências jurídico-penais que um infrator adulto.

Referências

Albuquerque Mello, Sebastian Borges de. O conceito material de culpabilidade – O fundamento da imposição da pena a um indivíduo concreto em face da dignidade da pessoa humana. Salvador: JusPdivm, 2010.

Amaral e Silva, Antônio Fernando. O Estatuto da Criança e do Adolescente e sistema de responsabilidade penal juvenil ou o mito da inimputabilidade penal. In: Ilanud/ABMP/SEDH/UNFPA (Orgs.). Justiça, adolescente e ato infracional: socioeducação e responsabilização. São Paulo: Ilanud, 2006.

Boldova Pasamar, Miguel Angel. La responsabilidad penal de los menores. In: Gracía Martín, L. (Coord.). Lecciones de consecuencias jurídicas del delito. 3a. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004.

Ferrajoli, Luigi. Derecho y razón – Teoria del garantismo penal. Madrid: Trotta, 2000.

______. Democracia y garantismo. Madrid: Trotta, 2010.

Roxin, Claus. Derecho penal – Parte general. t. I: Fundamentos. La estructura de la teoría del delito.Madrid: Civitas, 1997.

Shecaira, Sergio Salomão. Sistema de garantias e o direito penal juvenil. São Paulo: RT, 2008.

Silva Sánchez, J. M. El nuevo Código Penal: cinco cuestiones fundamentales. Barcelona: José Maria Bosch, 1997.

Sposato, Karyna Batista. Direito penal de adolescentes – Elementos para uma teoria garantista. São Paulo: Saraiva, 2013.

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Vázquez González, Carlos. Delincuencia juvenil – Consideraciones penales y criminológicas. Madrid: Comex, 2003.

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Vital, Luis Fernando Camargo de Barros. A irresponsabilidade penal do adolescente. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: IBCCrim, n. 18, vol. 5, p. 87-92, 1997.

Karyna Batista Sposato
Doutora em Direito.
Professora adjunta da Universidade Federal de Sergipe (UFS).



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