INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 271 - Junho/2015





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Encruzilhadas entre o panpunitivismo e a redução da maioridade penal

Autor: Flávio Américo Frasseto e Giancarlo Silkunas Vay

A PEC 171/1993 retorna, mais uma vez, como um fantasma que insiste em assombrar os incautos, bradando a respeito da necessidade em se adotar medidas que acabem com a insegurança e a criminalidade que assolam o país.

Pois bem, tentemos exorcizar alguns pontos nevrálgicos da questão.

Inicialmente cumpre questionar, do ponto de vista político-criminal, se seria possível erradicar a criminalidade, tal qual se defende. Conforme já se delineou pelos teóricos da criminologia crítica, a tarefa de criminalização pressupõe ao menos dois momentos centrais, o da escolha das condutas criminosas (criminalização primária) e o da escolha de quem será atingido pela sanção penal (criminalização secundária).

A criminalização primária é a realizada pelos detentores do poder, congressistas devidamente situados em determinada classe, muitas vezes apoiados por grupos com interesses bem delineados (agronegócio, instituições financeiras, templos, grandes empresas), cujos interesses invariavelmente se traduzem na escolha dos bens jurídicos a serem tutelados pela norma penal, bem como na escolha dos parâmetros de pena para a hipótese. Não é à toa que uma faxineira que furte certa quantia da carteira do patrão receberá pena de 2 a 8 anos de reclusão, mesma pena cominada para redução a condição análoga à de escravo ou para tortura. Da mesma forma o desacato (conduta cuja proibição é vedada pela Convenção Americana de Direitos Humanos) é punida com 6 meses a 2 anos, enquanto o abuso de autoridade o é com 10 dias a 6 meses. Por outro lado, um patrão que atrase o salário de inúmeros chefes de família, a causar inegável prejuízo a tais núcleos familiares, não incorrerá em tipo penal algum, da mesma forma que não incide em crime o magistrado que priva de liberdade, provisoriamente, acusado em que prima facie se perceba a ausência de necessidade de cautela e que, ao final, a piorar o exemplo, se comprove sua inocência. Há um nítido interesse em que determinadas condutas permaneçam sendo criminalizadas e outras não, apesar de isso não significar, necessariamente, uma proporcional violação aos direitos mais significativos das pessoas.

Igualmente relevante é a escolha dos selecionados pelo sistema. A prática de crimes é algo inerente ao ser humano, praticamente porque inúmeras condutas hoje são tidas como criminosas, a ponto de se compreender que para eliminar a criminalidade a melhor opção seria a extinção dos tipos penais. Difícil apontar alguém que nunca tenha cometido alguma das seguintes condutas: injuriar, difamar, praticar lesão corporal a outrem ainda que em acidente de trânsito, dirigir embriagado, dirigir sem habilitação, porte de entorpecente para uso pessoal ou em uso compartilhado, pequeno furto ou apropriação indébita (mesmo que se tenha a certeza interna de que um dia pagará de volta), dano, pichação, oportunação ofensiva ao pudor (malditos beijos lascivos), perturbar o sossego ou o trabalho alheio, jogar bingo ou máquina caça níquel, jogo do bicho, compra/venda de objeto falsificado, aborto, ato obsceno (urinar na via pública?), lavagem de capitais, sonegação de impostos... todavia, nem todos são selecionados pelo sistema, aliás, bem poucos o são. Dessa forma, oportuna a questão: de qual criminalidade estamos a falar quando pretendemos a sua erradicação?

Uma segunda questão pertinente é a de se a erradicação da criminalidade seria algo, de fato, desejável. A completa submissão à lei redundaria em uma docilização da sociedade em prol dos interesses daqueles que hoje são os detentores dos espaços de poder que nem sempre consideram as circunstâncias próprias daqueles que hoje se encontram às margens de qualquer processo de socialização. Como conceber que não existam determinadas ilegalidades relacionadas à compra e venda de materiais proibidos, uma vez que exista mercado para tanto e a necessidade do mercador em sobreviver em um regime que não proporciona condições de trabalho digno para todos? Como se impor a proibição de determinadas condutas como o aborto e o uso de entorpecentes sem que se questione e se desafie a proibição, inclusive como forma de contestação por uma excessiva ingerência do Estado na esfera de liberdade dos indivíduos? Como ser possível que em um Estado agressivo com os mais vulneráveis, em que a saúde é precária, as creches lotadas, desocupações violentas são corriqueiras mesmo em terras que não cumprem a função social, não se perceba como compreensível a devolução da violência à sociedade na forma do roubo?

Ainda que a paz social seja o desejável, concebê-la em uma sociedade marcada pela contradição não se traduz como outra coisa senão na mais tirana submissão/docilização de corpos em que uns poderão gozar de seus privilégios herdados e outros se manter resignados, soltos ou enjaulados. A prática de infrações à norma penal se faz necessária, ainda que em pequena medida, justamente por não ser possível conceber uma sociedade desigual conformada com sua situação. Isso não pode ser pretendido, não pode ser desejado, sob pena de uma completa afronta ao mais comezinho sentimento de igualdade e solidariedade com o próximo. A almejada paz social não será alcançada pela maior criminalização ou punição dos seres humanos, senão com uma substancial alteração nas estruturas econômicas e sociais, a permitir a efetivação do bem coletivo, fim último a que deveria se prestar o Estado.

Assim, não temos como possível ou mesmo desejável a erradicação da criminalidade, ao menos enquanto presentes contradições sociais latentes/reais que permitem o subjugo e o desmando arbitrário de uns aos outros, muito embora esse seja o argumento preferido dos defensores da redução da maioridade penal.

No que concerne a outros argumentos comumente verificáveis, costuma-se bradar que a idade penal deve ser reduzida, pois não se pode conceber que um jovem de 16/17 anos não saiba o que é errado, devendo ser punido pelo que realizou, sendo que os tempos mudaram e os jovens amadurecem mais cedo hoje. Pois bem, vale lembrar que o Estatuto da Criança e do Adolescente permite a responsabilização desde os 12 anos de idade, com medidas assemelhadas à dos adultos, inclusive em regime semiaberto e fechado em unidades de internação, justamente porque não adotou a concepção da ausência de conhecimento e da capacidade de se autodeterminar ao estabelecer o sistema de responsabilização estatutário, mas se concebeu que, para além do sistema penal, haveria uma forma melhor de se responsabilizar tais pessoas sem que se causassem tantos danos colaterais. Não por outra razão a reforma do Código Penal de 1984 alterou o dispositivo que apontava serem os menores de 18 anos penalmente irresponsáveis, para tratá-los tão apenas como inimputáveis nos termos da lei penal. Não se trata de responsabilizar menos, mas responsabilizar melhor. Ademais, o maior acesso à informação não implica necessariamente maior maturidade, sendo que o que se observa hoje, sociologicamente, é uma postergação do termo final do adolescer, sendo o mundo atual muito mais complexo daquele determinado na década de 1940, quando do advento do Código Penal. É de se ter em vista que a legislação brasileira, ao definir o marco de 18 anos, se adéqua ao marco internacional da Convenção dos Direitos da Criança, parâmetro esse adotado por 79% de 42 países pesquisados, sendo que grande parte (47%) adota entre 13 e 14 anos como início da responsabilidade juvenil, enquanto no Brasil a idade é de 12 anos.

Ao seu revés, os custos do encarceramento precoce em estabelecimentos penais podem traduzir na cristalização de uma carreira criminosa a devolver à sociedade, após o término da pena, um jovem estigmatizado pelo sistema penal, sem conclusão do ensino formal ou de profissionalização, cuja inserção no mercado de trabalho estará fadada ao insucesso. Ainda, o encerramento do jovem em uma instituição total como o cárcere, justamente no momento em que está a aprender a lidar/conquistar a liberdade, impedirá que seja possível a sua readaptação ao convívio em sociedade, sendo que quando de seu retorno haverá uma tendência em se procurar locais como a prisão, a incentivar a reincidência. Esgarça-se os vínculos familiares, propulsiona-se o adoecimento psíquico, desenvolve-se uma tendência a se valer da violência como padrão de solução dos conflitos e, ainda, a estabelecerem-se vínculos de dependência em face daqueles que vendem proteção, tais quais os membros de facções.

Mais, não há qualquer comprovação de que o endurecimento da pena diminua a incidência criminal. O aumento do rigor punitivo não tem relação direta com a diminuição da criminalidade, como se pode extrair de pesquisas referentes à Lei dos Crimes Hediondos, da Lei Antidrogas ou mesmo da Lei Maria da Penha. Por outro lado, o aumento da certeza da punição (a redução das chamadas “taxas de atrito”) parece ser mais impactante na intimidação da sanção penal do que o aumento das penas, sendo que países com pena de morte – a despeito da sua gravidade – não denotam baixos índices de criminalidade, a exemplo dos Estados Unidos que possuem a maior população carcerária do mundo.

No que concerne à faixa de etária entre 18 a 24 anos, apesar da rigorosidade com que são tratados pelo sistema penal, os índices de encarceramento no Brasil são muito altos, alcançando 28% da população carcerária (Depen, 2012), em um sistema que produz cerca de 70% de reincidência contra 15% (Fundação Casa, 2015) a 54% (CNJ, 2012) nas unidades de internação para os adolescentes, a apontar, assim como interessante pesquisa realizada nos Estados de New Jersey e New York (EUA), em 2007, que a passagem do sistema de responsabilização de adolescentes para o de adultos é contraproducente.

Quanto ao acalento de vítimas e seus familiares, não se nega que devam receber proteção, mas conceber que essa resposta deve vir por meio de vingança é o velho reducionismo de sempre que manterá a vítima desamparada pela ausência de uma política séria de proteção e, principalmente, de cuidados pelos próprios agentes da lei nos processos de revitimização secundária e terciária, seja no trato por tais pessoas quanto pela ausência de reparação restauração/indenização pelo prejuízo sofrido. Aliás, muitas vezes percebe-se a utilização da vítima como mote para o aumento do rigor nas penas sendo que nem sempre a vítima está nisso interessada e seus verdadeiros interesses continuam solenemente lançados a um segundo plano. Ainda, tem-se que o furor vingativo não encontra limites e, uma vez atendido o clamor da ocasião (redução da maioridade penal), logo virá o da pena de castigos corpóreos e depois a de morte, em uma progressão sem fim.

Considerar a opinião pública (rectius: publicada) como o norte para a produção de leis criminais não é “fazer democracia”, ao que passamos de uma democracia representativa para uma democracia de opinião em que ninguém sabe dizer ao certo qual será seu ponto de equilíbrio. A chamada criminologia midiática (Zaffaroni, 2012)(1) traz um apelo ao emocional de que por meio de um pensamento mágico e pueril haveria uma causalidade especial em que quanto maior punição, menos crime e, logo, menos paz. Para a democracia existem limites impostos pelo Estado Social de Direito que deve primar, inclusive, pelos direitos das minorias. Trata-se do que se convencionou chamar democracia substancial, em que “nem tudo se pode decidir, nem mesmo em maioria” e “nem sobre tudo se pode não decidir, nem mesmo em maioria” (Ferrajoli, 2014),(2) razão pela qual, no que concerne às garantias e direitos fundamentais, opera-se a imutabilidade em virtude das cláusulas pétreas ou da vedação ao retrocesso em virtude da normativa internacional. Não por uma questão eminentemente técnico-jurídica, mas por se tratar de uma importante barreira conquistada na defesa de direitos e garantias historicamente conquistados a partir de muita luta.

Notas

(1) ZAFFARONI, Eugerio Raúl. A palavra dos Mortos: conferências de criminologia cautelar. Trad. Sérgio Lamarão. São Paulo: Saraiva, 2012.

(2) FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica; Fauzi Hassan Choukr; Juarez Tavares; Luiz Flávio Gomes. 4.ª ed.. São Paulo: RT, 2014.

Flávio Américo Frasseto
Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP.
Professor do Mestrado Profissional “Adolescente em Conflito com a Lei” da Universidade Anhanguera.
Defensor Público do Estado de São Paulo (DPESP).

Giancarlo Silkunas Vay
Presidente do Grupo de Trabalho de Infância e Juventude do IBCCRIM.
Defensor Público do Estado de São Paulo (DPESP).
Membro do Núcleo Especializado de Infância e Juventude da DPESP (NEIJ).



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