INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 271 - Junho/2015





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

A responsabilidade penal juvenil na encruzilhada

Autor: Emilio Garcia Mendez

1. O problema

Os Sistemas de Responsabilidade Penal Juvenil (SRPJ), instaurados a partir da Convenção Internacional dos Direitos da Criança (CIDC), são de uma releitura tão inovadora e crítica quanto correta das “velhas” garantias constitucionais que supõem, dentre muitas outras coisas, a incorporação plena de todos os direitos fundamentais que asseguram nada menos que o devido processo para todos os menores de idade em conflito com a lei penal.

Esse processo, que é o mesmo que o Direito Penal moderno desata com a Revolução Francesa, e mais em particular com Dos delitos e das penas, de Cesare Beccaria, no qual o direito penal se situa como limite às pretensões punitivas ilimitadas do Estado, foi torpemente interpretado por alguns, em nossos países latinoamericanos, como a “vitória pírrica dos direitos” e, mais recentemente, com uma ironia lamentável, como o de ser o adolescente um ser “Sujeito de castigos”.(1)

Nada representa melhor esses exemplos do que a incapacidade “progressista” latinoamericana para ler o caráter verdadeiramente transformador e positivo da normativa constitucional que nos rege na democracia. Ou, dito de outra forma, a cegueira para entender uma legalidade como a que emerge da CIDC, em consonância com uma perspectiva consequente de defesa dos direitos humanos, tal como, na matéria vinculada especificamente com a responsabilidade penal, expressam seus arts. 37 e 40.

Depois de quase um século de vigência das leis menoristas, tem-se por lamentável a impossibilidade de alguns atores sociais e jurídicos entenderem o sentido e as potencialidades da legalidade que emana do direito internacional dos direitos humanos e que emerge da CIDC.

Uma medida para entender a dimensão das mudanças que propõem os SRPJ está dada, paradoxalmente, e como já se disse, pelo tamanho da heterogeneidade ideológica das resistências que provocam desde o momento de seu nascimento.

As tensões presentes na primeira legislação latinoamericana adequada substancialmente à CIDC, o Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil, em 1990, que foram objeto de múltiplas análises, constituem um bom exemplo dessa situação.(2)

Um fio condutor cada vez menos sutil parece unir ao retribucionismo hipócrita de posições pan-penalistas (daqueles que acreditam que o direito penal constitui o melhor instrumento para a resolução dos problemas sociais) o paternalismo ingênuo de estranhos abolicionistas locais (abolicionistas das garantias, mas não da privação de liberdade) que também pululam em todos os nossos países da América Latina.

Não sem razão se pode dizer, e é o ponto de encontro entre ambos, que há uma clara recusa à consideração dos adolescentes como verdadeiros sujeitos de direitos.

Uma profunda crise de implementação, resultado da negativa de dotar de orçamento e recursos humanos adequados a nova institucionalidade dos SRPJ, potencializou, como consequência, uma profunda crise de interpretação. O resultado dessa crise consiste, em primero lugar, em tentar operar legislações de corte garantista com a discricionariedade das velhas leis de menores.(3)

É óbvio que a essa crise de implementação contribuíram ativamente seus diversos e heterogêneos detratores.

2. De uma estranha aliança, uma estranha proposta

Um pacto implícito entre a “mão dura” do Estado e o “tutelarismo neomenorista” parece perfilar-se, na América Latina, no horizonte das “soluções” destinadas a sair dessa dupla crise. Um pacto com uma curiosa sustentação que não é outra senão a recusa à proposta contida nos SRPJ, tal como foram inicialmente concebidos.

Não importa que esse rechaço se deva à “clemência” dos SRPJ, para os partidários da mão dura, ou à sua “dureza”, para o caso do neomenorismo. No fundo, a recusa à consideração dos adolescentes como sujeitos responsáveis (que engendram responsabilidade a qual lhes interpela) constitui o estranho motivo de união e aliança entre duas perspectivas que se pensa – como se vê erroneamente – nas antípodas.

Uma perigosa tendência disfarçada de consenso surdo, e que envolve toda a região da América Latina, parece começar a tomar forma: entregar os maiores de 16 anos ao sistema penal de adultos, pari passu de se consolidar a volta ao mais cruel tutelarismo discricionário da “crueldade bondosa” para os menores de 16 anos.

Em outras palavras, essa perigosa tendência regional parece coincidir, em seu conteúdo concreto, com o modelo que a ditadura militar argentina arrematou na matéria, em 1980 (Dec. 22.278 – Regime Penal da Menoridade), assim como com o conteúdo essencial do fracassado plesbicito no Uruguai.

Deve-se ter presente que, precisamente, o modelo jurídico que em ambos os casos se propõe prevê a entrega dos maiores de 16 anos de idade ao direito penal de adultos, assim como à discricionariedade judicial, no mesmo sentido das velhas leis de menores, no tratamento dos menores dessa idade.(4)

Dessa feita, ou, de fato, aprimoramos e implementamos os SRPJ, ou logo enfrentaremos uma irremediável redução da idade da imputabilidade em toda a América Latina.

Notas

(1) Sujeto de castigos. Hacia una sociología del sistema penal (Rosario, Argentina: Homo Sapiens, 2012), com a coordenação editorial de Alcira Daroqui, Ana Laura López e Roberto F. Cipriano García, em coautoria com María del Rosario Bouilly, Julia Pasin, Jimena Andersen, Silvia Guemureman e Agustina Suarez. Um título que já traduz essa torpe leitura da normativa constitucional. Trata-se de uma publicação altamente representativa de posições que, ainda que se digam progressistas e critiquem ferozmente qualquer intento em establecer verdadeiros sistemas de responsabilidade penal juvenil, convivem sem problemas com a prisão ilegal e sistemática dos menores de 16 anos na Argentina.

(2) Para o caso concreto do Brasil, cf. Saraiva, João Batista Costa Saraiva. Compêndio de direito penal juvenil. Adolescente e ato infracional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 220. Costa Saraiva se refere aqui particularmente à utilização da normativa garantista do Estatuto com fins discricionários e tutelares.

(3) Cf. García-Méndez, Emilio. La doble crisis del ECA: la seguridad ciudadana y el debate actual sobre el tipo de responsabilidad de los adolescentes, no prelo.

(4) O regime penal da menoridade vigente na Argentina está contido no Dec. 22.278/1980. Trata-se de uma norma emanada pela ditadura militar argentina que leva à assinatura do genocida Jorge Rafael Videla. Para uma informação mais detalhada, consulte-se o mencionado decreto. De forma geral, esse decreto traz uma distinção jurídica entre os maiores de 16 anos e os menores de 18, a quem considera como “relativamente imputáveis”, e os menores de 16 anos, a quem considera totalmente inimputáveis e não puníveis. No primeiro caso, a imputabilidade está relacionada ao êxito ou ao fracasso (medido conforme a discricionariedade judicial) de um nebuloso tratamento tutelar. Esse tratamento misteriosamente fracassa sistematicamente para todos os jovens dos setores socialmente mais vulneráveis que invariavelmente são julgados como adultos, enquanto resulta invariavelmente exitoso para os infratores, ainda que em casos graves, pertencentes às classes sociais média e alta. Para o caso dos menores de 16 anos, apesar do caráter de inimputabilidade e não punibilidade que possuem em razão do decreto mencionado, ainda assim são privados de liberdade, tal como o reconhecem os índices do último informe oficial, quando pertencentes aos setores sociais mais vulneráveis.

Emilio Garcia Mendez
Fundação Sur Argentina.
(www.surargentina.org.ar)



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