Rogério Fernando Taffarello
Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho e Matheus Silveira Pupo.
Tenho um problema muito sério com alguns juízes de Varas de Execuções Criminais que parecem pensar que as suas funções se limitam a manter seus jurisdicionados presos pelo maior tempo possível, como verdadeiros carcereiros. A única diferença entre estes e aqueles é que os primeiros ficam felizes quando o número de presos diminui: a redução significa menos trabalho para eles.
Tais juízes também costumam ignorar o art. 1.º da Lei de Execuções Penais, que coloca a ressocialização como objetivo da pena. Este comando legal, na prática, hoje, não passa de balela, com poucas e honrosas exceções.(1)
Essa é a história de um desses juízes.
Quando o Dr. Nagashi Furukawa iniciou a sua gestão à frente da Secretaria de Assuntos Penitenciários, a SAP, encontrou uma situação muito semelhante à de hoje: presos com direito ao regime semiaberto cumprindo pena ilegalmente no fechado devido à falta de vagas no regime mais brando.
Sua primeira providência foi organizar uma fila em ordem cronológica, tendo como parâmetro a data em que os detentos passaram a ter direito ao regime semiaberto. Essa fila estava disponível para quem quisesse ver no site da SAP. Essa transparência, entre outras coisas, evitava negociações escusas de vagas, além de estar em inegável consonância com o mais elementar senso de justiça.(2)
Pois bem. Foi nesse cenário que se desenvolveu a história de Antonio.(3)
Ele tinha praticado um roubo muitos anos antes. Respondera em liberdade e, desde então, refizera sua vida honestamente, chegando a ocupar uma posição de destaque em uma famosa empresa paulista. Não soube quando a sentença condenatória de 5 anos e 4 meses em regime inicial semiaberto(4) foi confirmada em 2.ª instância e, consequentemente, expedido o mandado de prisão.
A poucos dias de ocorrer a prescrição da pretensão executória estatal, Antonio discutiu com um guarda de trânsito, que o prendeu em flagrante pelo crime de desacato.
Foi só na Delegacia que Antonio ficou sabendo da existência da ordem de prisão anterior. E aí começou o seu pesadelo.
Antonio foi imediatamente transferido para uma superlotada carceragem de um Distrito Policial. Quando tomamos conhecimento do seu caso, ele já estava ali havia alguns meses.(5)
Nossa primeira providência foi impetrar um habeas corpus em seu favor, no qual foi concedida uma liminar, reconhecendo a flagrante ilegalidade da situação em que Antonio se encontrava e determinando que ele aguardasse a vaga em regime aberto.
Tudo estava bem, até que poucos dias depois, no final da tarde, recebemos uma ligação de Antonio. Ele disse que naquele dia, de manhã bem cedo, antes mesmo que ele saísse para trabalhar, dois agentes foram à sua casa e o prenderam. No momento da ligação, ele se encontrava no subsolo do prédio da Vara das Execuções Criminais e estava prestes a ser transferido para o presídio semiaberto de Franco da Rocha. Só naquela hora é que tinham permitido que ele desse o telefonema para nos avisar, embora ele tivesse sido preso cerca de dez horas antes.
Antes de prosseguir, digo que até hoje acredito que essa demora na permissão do telefonema teve como objetivo evitar que a defesa tomasse providências no próprio dia. Paranoia? Diante do que vi em seguida, acredito que não. Mas prefiro que o leitor julgue por si mesmo quando souber de todos os fatos.
Ao receber a ligação de Antonio, senti que havia algo de errado. Afinal, eu acompanhava diariamente as transferências para o regime semiaberto e ele não estava nem perto de ser o primeiro da fila! Quão errado, eu iria descobrir em seguida, quando eu lesse o despacho do juiz da Vara das Execuções.
O que aconteceu foi o seguinte: tão logo recebeu o ofício comunicando a concessão da liminar e requisitando informações, o excelentíssimo juiz mostrou ser um homem de iniciativa: determinou a imediata remoção de Antonio para o regime semiaberto, independentemente da ordem cronológica na lista de espera!
Sua Excelência ainda fez mais: em vez de intimá-lo a comparecer ao estabelecimento carcerário, como é o costume nesses casos, mandou prendê-lo.
Pus-me a pensar nos motivos que levaram o magistrado a agir com tamanha arbitrariedade, considerando que ele dispunha das seguintes informações: (i) o crime havia sido cometido mais de uma década antes e desde então, não houvera reincidência; (ii) Antonio estava trabalhando, não representando qualquer risco à sociedade, o que, em tese, poderia justificar uma medida tão drástica; e (iii) a sua prisão imediata, “furando a fila”, prolongaria a ilegalidade da situação dos presos que aguardavam em regime fechado a vaga no semiaberto a que tinham direito.
Só pude chegar a uma conclusão sobre a motivação desse juiz: em bom português, pirraça pura(6) pela concessão da liminar! Esse é um magistrado que, ilegalmente, só considera o aspecto punitivo da pena.
Seja como for, o horário do fim do expediente no Tribunal se avizinhava. Fiz o habeas corpus mais rápido da minha vida. No caminho para o Tribunal, corri como um jogador de futebol americano (de saltos altos), desviando dos muitos pedestres da Praça João Mendes. Nova liminar foi concedida, determinando o retorno de Antonio ao regime aberto. Mesmo assim, ele passou duas noites em Franco da Rocha porque no presídio “não conseguiam localizá-lo” para cumprir a liminar.(7)-(8)
Antonio cumpriu a sua pena até o fim no regime aberto. Como, é matéria para outro artigo.
Notas:
(1) Entre estas, destaque-se o trabalho do então juiz Nagashi Furukawa em Bragança Paulista, do Dr. Jayme Garcia dos Santos Junior em Guarulhos e da Dra. Lena Rocha em Natal, onde os programas de ressocialização já contam com três mil egressos, sem um único caso de reincidência. Na contramão do que hoje se vê, eles mostram que a ressocialização é possível. Basta ter vontade.
(2) Depois de pouco tempo, a falta de vagas acabou. Torno a dizer: com boa vontade e competência, tudo é possível.
(3) Nome trocado.
(4) A sentença foi prolatada antes da “moda” de se fixar o regime inicial fechado indiscriminadamente para todos os casos de roubo.
(5) Embora o mandado de prisão fosse antigo, Antonio, obviamente, só entrou na “fila do semiaberto” quando foi preso. Não poderia ser de outra maneira.
(6) Agradeço se algum leitor puder apontar um motivo mais nobre.
(7) O juiz deve ter ficado feliz.
(8) Como se “perde” um ser humano?
Alexandra Lebelson Szafir
Advogada.
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