INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 258 - Maio/2014





 

Coordenador chefe:

Rogério Fernando Taffarello

Coordenadores adjuntos:

Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho e Matheus Silveira Pupo.

Conselho Editorial

Editorial

Manifestações, legislação penal e Constituição

As manifestações populares emergidas em junho do último ano continuam a render debates, análises e preocupações na seara pública, sobretudo à vista das tensões entre direitos fundamentais individuais e supraindividuais que comumente implicam.

Recordemos: os protestos iniciaram-se a partir de reivindicações contra o aumento das passagens de ônibus em diversas capitais do país, em maio de 2013. Foram desde logo reprimidos pelas polícias dos Estados respectivos, e não raramente reputados por governantes como atos localizados de grupos de "vândalos" ou "baderneiros". Editorialistas de grandes veículos da imprensa manifestaram-se na mesma linha, e chegaram a urgir de governos que intensificassem a repressão a fim de que fossem evitados congestionamentos no trânsito e outros aborrecimentos causados pelas manifestações.

Nesse contexto, na noite de 13 de junho de 2013, a cidade de São Paulo assistiu a atos de violência física e prisões abusivas praticados por agentes da repressão em intensidade que não se via desde os anos de chumbo da ditadura instaurada em 1964. Registraram-se dezenas de prisões por fatos inexistentes ou penalmente irrelevantes - como o anedótico "porte de vinagre" -, agressões a cidadãos, uso indiscriminado de gases pimenta e lacrimogênio e disparos de balas de borracha feitos ao arrepio de protocolos de segurança e contra cidadãos indefesos. Naquela noite, ao menos dois jornalistas - que exerciam seu direito ao trabalho - foram gravemente feridos no rosto por balas de borracha disparadas por policiais em inequívoco abuso de autoridade, acarretando a um deles a perda de um olho.

As imagens e descrições da anticonstitucional repressão correram o país e o mundo, e escandalizaram cidadãos. Foi precisamente a partir desse momento que se multiplicou a frequência e intensidade de manifestações populares por todo o país, reunindo insatisfeitos com governos e serviços públicos deficientes nas mais diversas áreas, gerando enorme perplexidade nas autoridades, que se viram diante de um fenômeno novo e de difícil compreensão. Protestos emergiram em áreas centrais e periferias de grandes cidades.

Muita coisa aconteceu de lá para cá. Outros cidadãos foram gravemente feridos; um morreu em circunstâncias nebulosas em Belo Horizonte e, no Rio de Janeiro, o pedreiro Amarildo foi sequestrado, torturado e morto por policiais integrantes de uma Unidade de Polícia Pacificadora, ensejando mais descontentamento popular. Aos atos de violência institucional somaram-se os de violência física e patrimonial praticados por indivíduos e grupos, sem que tampouco nestes casos as polícias lograssem compreender os fenômenos e prevenir eficientemente ilícitos abstendo-se da - ineficaz e antijurídica - truculência habitual.

Recentemente, projetos legislativos foram apresentados ao Congresso Nacional com vistas a estabelecer um regramento pretensamente mais adequado das manifestações, os quais invariavelmente recorrem ao simbolismo da tipificação de novos delitos e do recrudescimento punitivo para certos ilícitos já existentes. Algumas propostas chegam a correlacionar episódios de violência havidos em grandes concentrações de pessoas a um suposto terrorismo, demonstrando incrível desconhecimento de conceitos jurídicos e dos fenômenos concretos. Outras tencionam equiparar certos grupos de manifestantes a organizações criminosas, hipótese absolutamente inadmitida pela ordem constitucional vigente, a qual, ao firmar as bases de um Estado Democrático, foi generosa na previsão dos direitos de reunião e de manifestação pacífica em espaços públicos.

Nesse quadro, é alvo de procedentes críticas o PLS 236/12, que, entre tantos outros problemas, pretende tipificar o "terrorismo", cuja indeterminação conceitual implica enorme e intolerável insegurança jurídica. As mesmas vagueza e indeterminação semântica, violadoras do princípio da legalidade, recaem sobre as pretensões de incriminação da "desordem", também proposta na esteira de fatos de grande repercussão midiática.

Não obstante, está-se em vias de submeter à apreciação do Congresso Nacional o PLS nº 508/13 e seu Substitutivo, também apresentados na esteira dos conflitos assistidos em manifestações populares. De espantosa infidelidade à Constituição, seu texto original comina pena de quatro a doze anos de reclusão ao crime de "vandalismo", definindo-o de forma amplíssima, a ponto de abarcar condutas vãs como o estímulo à participação em atos mediante a "distribuição de folhetos, avisos ou mensagens" ou a mera "presença do agente em atos de vandalismo, tendo em seu poder objetos, substâncias ou artefatos de destruição ou de provocação de incêndio ou qualquer tipo de arma convencional ou não", ainda que nenhum ato lesivo seja sequer almejado pelo agente. E tampouco o Substitutivo apresentado à Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal é aproveitável, porquanto visa a estatuir descabida agravante genérica baseada em fato penalmente irrelevante - o uso de máscara - e a prever causa especial de aumento de pena para o crime de lesão corporal e novos tipos qualificados de homicídio e dano quando cometidos "em manifestações, concentração de pessoas ou qualquer encontro multitudinário".

Se muitas manifestações do poder punitivo - seja por parte das agências executivas (polícias e órgãos do Ministério Público), seja por parte do Poder Judiciário - têm se revelado desmesuradas e abusivas na repressão a atos de cidadãos que exerciam seu direito constitucional de protestar, cabe indagar qual não seria a dimensão trágica para a democracia brasileira e para a cidadania se dispositivos legais tão arbitrários entrassem em vigor?

É preciso dizer o óbvio: atos de violência praticados dolosamente em manifestações já são tipificados em nosso ordenamento, e não há necessidade de recrudescimento legislativo. É preciso, isto sim, que governantes compreendam as insatisfações populares e garantam concretamente os direitos que a Constituição prevê - inclusive o de ter uma Polícia que promova os direitos de cidadania. De resto, no que toca a manifestações populares, é indispensável que administradores e legisladores compreendam que a Carta de 1988 já estabeleceu à suficiência suas bases e limitações, não podendo o legislador ordinário impor óbices e constrangimentos que afrontem suas disposições democráticas.



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