Rogério Fernando Taffarello
Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho e Matheus Silveira Pupo.
Autor: Fernanda Emy Matsuda
Os números que descrevem a violência contra as mulheres no Brasil apontam para a existência de um problema agudo e de longa duração. A violência fatal atingiu mais de 50 mil mulheres entre 2000 e 2010, perfazendo a taxa de 4,5 mortes por 100 mil habitantes. Enquanto entre homens 15% dos homicídios ocorrem na residência, entre as mulheres essa cifra sobe para alarmantes 40%. Os dados da saúde mostram a magnitude do fenômeno: duas em cada três pessoas atendidas no Sistema Único de Saúde em razão de violência sexual ou doméstica são mulheres. O sistema de notificação compulsória do Ministério da Saúde permite constatar, ainda, que a violência é recorrente, sendo bastante alta a porcentagem de retorno de mulheres agredidas aos serviços de saúde, principalmente a partir dos 30 anos de idade.(1) A violência doméstica é, segundo Andrea Westlund,(2) uma modalidade pré-moderna de controle, já que se assemelha ao suplício e aos castigos corporais destinados aos condenados. A agressão física, pré-moderna e característica da lógica da soberania, e a vigilância, moderna e característica da lógica disciplinar, nos termos propostos por Foucault, operam em sobreposição, o que confere uma configuração específica à violência doméstica. Não se trata de um acontecimento episódico, que resulta de relacionamentos “disfuncionais” ou de uma situação de estresse ou de patologia e, sim, de uma constante que guarda relação direta com a assimetria de poder entre homens e mulheres.
Diferentemente do observado em outros países ocidentais, em que se elegeram como prioridade os direitos sexuais das mulheres, a consolidação do movimento feminista no Brasil na década de 1970 esteve fortemente ligada à denúncia e ao combate da violência contra as mulheres. Nos anos 1980, ganharam força as manifestações contrárias à tese da “legítima defesa da honra”, não raro mobilizada nos processos criminais envolvendo o assassinato da mulher pelo marido ou companheiro.(3) A criação da delegacia de defesa da mulher (DDM) na cidade de São Paulo em 1985 firmou o tratamento dispensado pelo Poder Público à questão: a violência contra a mulher é “caso de polícia”. Passados 20 anos de avanços e retrocessos na luta das mulheres por seus direitos e diante da deficiência da resposta então dispensada pelo Estado ao problema da violência doméstica, foi editada a Lei Maria da Penha.
Objeto de muita polêmica entre defensores do Direito Penal mínimo, críticos em especial da ampliação das possibilidades de punição,(4) a Lei 11.340/2006 trouxe um novo elemento ao debate(5) sobre o papel do Direito Penal e do sistema de justiça criminal no campo do direito à diferença e das demandas por reconhecimento de populações desfavorecidas nas relações de poder. Embora não abra mão da estratégia da criminalização para salientar a gravidade da violência doméstica, a Lei Maria da Penha não se restringe a apenas esse aspecto, que é invariavelmente o mais lembrado. Ao propor um programa de prevenção e proteção bastante amplo e consentâneo com a vontade das vítimas e dos movimentos de mulheres, a lei exige uma leitura integral e atenta.
A respeito da ênfase na dimensão punitiva, é interessante retomar a análise de Cecília MacDowell Santos(6) sobre a recepção das demandas das mulheres pelo Estado. A autora examina três momentos-chave que consubstanciam a interação entre o discurso feminista sobre a violência doméstica e a formulação e implantação de políticas públicas – a delegacia de defesa da mulher, o Juizado Especial Criminal (JECRIM) e a Lei Maria da Penha – e mostra que a resposta estatal, ao absorver ou traduzir as lutas feministas, modula e recompõe o jogo de forças. Assim, não é banal que, nos anos 1980, a proposta de política de combate à violência contra a mulher centrada na instalação de serviços integrados (assistência social, psicológica e jurídica, atendimento policial adequado, casa-abrigo, entre outros) tenha sido obnubilada pela instituição da DDM. De acordo com o argumento da autora, a visibilidade dada pelo estabelecimento da DDM ao problema da violência contra a mulher fez surgir um contexto de “oportunidade política” que beneficiou a ênfase na criminalização, deslocando, por conseguinte, a pauta das organizações feministas. Nos anos seguintes, a DDM se fixou como referência no tratamento da violência contra a mulher, a despeito da infraestrutura precária e do baixo prestígio conferido aos/às profissionais ali atuantes.
Ainda que não tenha sido concebida para tratar especificamente da violência doméstica, a Lei 9.099/1995 provocou alterações importantes nesse cenário, restando aos Juizados Especiais Criminais o processamento dos crimes de lesão corporal e ameaça. A realidade vivenciada pelas mulheres mostrava que as audiências de conciliação, tal como conduzidas, produziam um falso término para o conflito, tratando o caso levado ao JECRIM como um evento isolado, quando na verdade a violência é contínua, cíclica, crônica. Por não contemplarem a participação da vítima e por resultarem com frequência na imposição da prestação pecuniária (cestas básicas) – o que comprometia a renda familiar – as transações penais também eram reprovadas. Assim, se por um lado a resistência à Lei 9.099/1995 diz respeito à rotulação da violência doméstica como um crime de menor potencial ofensivo, por outro decorre da forma de funcionamento dos Juizados Especiais Criminais, como uma justiça de “segunda categoria”. Na avaliação de Santos,(7) esse momento corresponde à trivialização da violência e a uma postura de indiferença do Estado que somente veio a ser transformada com o advento da Lei Maria da Penha.
A discussão acerca da necessidade de uma lei específica sobre violência doméstica praticada contra mulheres ganhou força após a condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2001, por “dilação injustificada” e “tramitação negligente” no caso de Maria da Penha Maia Fernandes, cuja história passou a ser amplamente conhecida. A trajetória de Maria da Penha, que vivenciou intimidações, agressões e duas tentativas de homicídio, é emblemática e demonstra de forma bastante eloquente a existência de um ciclo de violência e os efeitos perversos da inexistência e da ineficiência do serviço de atendimento às mulheres em situação de violência. O processo de elaboração da Lei Maria da Penha(8) contou com a colaboração efetiva dos movimentos de mulheres, ou seja, partiu de um diagnóstico e de reivindicações de quem vivenciava o problema concreto e não obtinha resposta adequada. É interessante notar que, embora o JECRIM tenha sido o alvo privilegiado das críticas dos movimentos de mulheres, essa insatisfação não se converteu em um pedido imediato por mais punição ou pelo aumento de pena.(9)
Pesquisa realizada pelo IBCCRIM(10) foi ao encontro do que vários estudos(11) vinham apontando: muitas vezes, as demandas das vítimas de violência doméstica não se confundem com um desejo de ver presos os companheiros, maridos, pais de seus filhos. O anseio das mulheres é pela possibilidade de uma vida sem violência, de uma convivência familiar pacífica, com o estabelecimento de um equilíbrio no relacionamento. Ao mesmo tempo, é óbvio que há situações que exigem a pronta intervenção, para evitar um desfecho mais grave ou mesmo fatal. O que se apurou, a partir da perspectiva das vítimas, é que o problema da violência doméstica é multifacetado e exige respostas muito mais sofisticadas do que a justiça criminal é, sozinha, capaz de fornecer.
Para abordar a complexidade do fenômeno da violência doméstica, a Lei 11.340/2006 traz um amplo leque de medidas de prevenção e proteção que supera a criminalização: prevê a articulação entre Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública com os órgãos responsáveis pelas políticas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação(12) e, também, a difusão do conteúdo da lei e a promoção da igualdade de gênero por intermédio de campanhas educativas, de estudos, pesquisas e estatísticas, da capacitação profissional, dos meios de comunicação social e dos currículos escolares.(13)
O Portal da campanha “Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha – a lei é mais forte” (www.compromissoeatitude.org.br) é uma ferramenta indispensável para o atendimento desse objetivo previsto na lei. A campanha resulta da cooperação entre Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Governo Federal, representado pela Secretaria de Políticas para Mulheres e pelo Ministério da Justiça, e dirige-se à sociedade em geral e, mais especificamente, aos/às operadores/as do Direito, dando visibilidade ao problema da violência contra a mulher, divulgando a Lei Maria da Penha e contribuindo para sua correta aplicação. A campanha procura unir e fortalecer os esforços dos âmbitos federal, estadual e municipal em torno da implementação de políticas públicas, equipamentos e serviços que possibilitem a efetividade do disposto na Lei Maria da Penha, garantindo às mulheres uma vida livre de violência. Consolidada a primeira etapa da campanha “Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha”, cujo escopo compreende os profissionais do sistema de justiça, a segunda pretende envolver a iniciativa privada em ações de divulgação da Lei Maria da Penha entre funcionários/as, clientes e fornecedores/as de empresas. Pesquisas têm atestado que o conhecimento sobre a lei é difuso, mas pouco profundo,(14) o que torna patente a necessidade de disponibilizar informações de qualidade ao público.
O Portal é um repositório de material sobre a violência contra a mulher, em especial a violência doméstica, a violência sexual e o assassinato de mulheres, e inclui trabalhos acadêmicos, artigos de opinião, relatórios de pesquisa, notícias, vídeos, áudios e imagens e documentos sobre o tema. Com foco em profissionais da área do Direito, o portal oferece uma seção de jurisprudência, legislação comentada e convenções, normas e tratados internacionais. Também é possível acessar iniciativas bem sucedidas em todos os Estados do país (programas, ações, campanhas, entre outros) e conhecer a rede de serviços à disposição das mulheres que são vítimas de violência, o que permite a troca de experiências entre gestores de políticas públicas. Em virtude de parceria com o IBCCRIM,(15) os artigos do Boletim que versam sobre o tema “violência contra a mulher” poderão ser lidos no Portal.
Dessa maneira, a campanha “Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha” contribui de modo decisivo para que esta Lei e os demais dispositivos de proteção dos direitos das mulheres saiam do papel, intensificando a produção e a circulação de informações e cumprindo o propósito de combater a violência contra as mulheres e, mais que isso, atacar o substrato que possibilita sua existência, qual seja, uma sociedade marcada pela desigualdade entre homens e mulheres.
Notas:
(1) Dados do Mapa da Violência 2012 e Mapa da Violência 2012 – Atualização: Homicídios de mulheres no Brasil, disponíveis em:
(2) Westlund, Andrea C. Pre-modern and modern power: Foucault and the case of domestic violence. Signs, Chicago: Institutions, Regulation and Social Control (Summer 1999), v. 24, 4, 1045-1066.
(3) Ver, entre outros, Corrêa, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
(4) “Para atender aos seus propósitos, foram introduzidas alterações no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei de Execução Penal. Porém, não houve a previsão da violência doméstica como delito-tipo e nem foram introduzidos novos tipos penais, limitando-se o legislador a inserir mais uma agravante, uma majorante e a alterar a pena do delito de lesões corporais. Também foi admitida mais uma hipótese de prisão preventiva (CPP,
art. 313, IV), além de ter sido permitida a imposição ao agressor, em caráter obrigatório, do comparecimento a programa de recuperação e reeducação (LEP, art. 152, parágrafo único)” (Dias, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: RT, 2010, p. 129).
(5) Este debate destaca que é paradoxal a proposta de proteger direitos humanos por meio de um aparato que sistematicamente os viola e que atinge de maneira implacável exatamente os grupos que clamam por essa proteção, o que se evidencia, por exemplo, na sobrerrepresentação da população negra nas prisões. Sobre esse assunto, ver: Pires, Alvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Novos Estudos 68/39-60, mar. 2004.
(6) Da delegacia da mulher à Lei Maria da Penha. Revista Crítica de Ciências Sociais 89/153-170, jun. 2010.
(7) Idem, ibidem.
(8) Para conhecer em detalhe toda a tramitação do projeto de lei que resultou na Lei Maria da Penha, ver o documento anexo 3 do relatório final da pesquisa “Análise de justificativas para a produção de normas penais”, realizada pela equipe da Direito GV sob coordenação de Maíra Rocha Machado no âmbito do projeto Pensando o Direito (Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça). Disponível em:
(9) É o que se depreende dos trabalhos do Grupo Interinstitucional coordenado pela Secretaria de Políticas para Mulheres (Decreto presidencial 5.030/2004), que resultaram em projeto de lei que previa a criação de varas especiais para crimes contra a mulher, com competência cível e criminal, mas não afastava a aplicação do procedimento previsto pela Lei 9.099/1995.
(10) Alvarez, Marcos César (coord.); Teixeira, Alessandra; Jesus, Maria Gorete Marques de; Matsuda, Fernanda Emy. O papel da vítima no processo penal. Série Pensando o Direito n. 24, Brasília: SAL-MJ/PNUD, 2010.
(11) Ver, entre outros, Izumino, Wânia Pasinato. Justiça para todos: os Juizados Especiais Criminais e a violência de gênero. Tese (Doutorado). FFLCH-USP, 2003.
(12) A Casa da Mulher Brasileira, eixo do programa Mulher, viver sem violência, da Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República, foi concebida como um centro de atendimento integral à mulher ao oferecer serviços públicos de segurança, justiça, saúde, assistência social, acolhimento, abrigamento e orientação para trabalho, emprego e renda.
(13) O projeto Maria, Maria, realizado pelo IBCCRIM e pela União de Mulheres de São Paulo, é uma experiência bem sucedida de difusão da Lei Maria da Penha e de formação qualificada de pessoas atuantes em movimentos sociais e nos serviços de atendimento a mulheres em situação de violência. O projeto terá sua sétima edição em 2014.
(14) Dados da pesquisa “Percepção da sociedade sobre violência e assassinatos de mulheres” (Instituto Patrícia Galvão – Mídia e Direitos e Data Popular), realizada em 2013, mostram que apenas 2% das pessoas entrevistadas nunca haviam ouvido falar da Lei Maria da Penha, 34% sabiam algo a respeito da Lei e 32% não sabiam quase nada.
(15) Agradecemos à diretoria do IBCCRIM por essa parceria, em especial a Rogério Taffarello, coordenador chefe do Boletim IBCCRIM.
Fernanda Emy Matsuda
Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre o Sistema Prisional do IBCCRIM.
Consultora de conteúdo para o Portal “Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha”.
Advogada e socióloga.
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