INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 256 - Março/2014





 

Coordenador chefe:

Rogério Fernando Taffarello

Coordenadores adjuntos:

Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho e Matheus Silveira Pupo.

Conselho Editorial

Editorial

(In)Justiceiros: estamos ao lado da vingança ou da responsabilização?

As imagens registradas no dia 31 de janeiro no Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro, de um adolescente de 15 anos acorrentado a um poste após ser espancado a pauladas, correram o país. Ele fora aprisionado por um grupo autoidentificado como “justiceiros” e “vingadores”, que o fizeram sob a justificativa de que o rapaz pertenceria a um grupo responsável pela prática de crimes patrimoniais. Mais chocantes do que a imagem em si talvez tenham sido as reações de parte do público, aplaudindo e aprovando a conduta do grupo, opinião compartilhada inclusive por determinados setores da imprensa. Desde então, episódios semelhantes de barbárie foram noticiados em diversos Estados.

Mesmo sendo possível reconhecer avanços quanto aos Direitos Humanos no plano normativo – atualmente, direitos do acusado em processo criminal integram o texto constitucional com status de direito fundamental – a legitimação social a atos como estes faz emergir, inevitavelmente, algumas perguntas: será que nossa Democracia tem conseguido mexer nesse lugar que ainda crê no pelourinho e no capitão do mato? Estamos construindo cidadania?

Tais atos costumam ser justificados por discursos pelos quais perpassam a descrença da sociedade na Justiça enquanto instituição, no Direito Penal vigente e no Estado Democrático de Direito. Mais uma vez nos vemos pautados pela urgência e necessidade de refletir sobre a origem desse tipo de sentimento/reação que culmina na vontade de impor um sofrimento atroz a outro ser humano, acreditando que o ato é legítimo quando determinada pessoa for suspeita de ter praticado um crime.

Os discursos vingativos somados à ampla divulgação midiática com todos os seus vieses ideológicos decorrentes de múltiplos interesses (políticos, econômicos etc.), podem ser geradores de duas consequências: a primeira vincula-se a uma sensação de insegurança gerada pelas notícias a respeito da violência, e a segunda consistente na crença de haver grupos sociais distintos entre si, os cidadãos “de bem” e “do mal”, e que cada qual seria merecedor de tratamento específico por parte do Estado e de seus concidadãos. São discursos que precisam ser desconstruídos a fim de que se enfrente a complexidade do fenômeno da criminalidade em uma sociedade.

É urgente superar o maniqueísmo que divide a população, o que somente pode se dar pela dissolução da fronteira que se supõe existir entre “o eu” e “o outro”, algo impossível se mantida a atual proposta de endurecer a legislação para o outro, ao invés de prover mais justiça para todos.

Urge também perceber que há um objetivo comum partilhado: de uma sociedade menos violenta, com menos medo, com menos sensação de insegurança. As divergências se instalam quando se debatem os meios para atingir esse objetivo: de um lado opiniões daqueles que apoiam atos como o ocorrido no Rio, de outro, estudiosos dos mais diversos setores pensando prevenção e política criminal, sem que tais políticas estejam colocadas na prática cotidiana.

Assiste-se dia após dia aos governos apoiando e implementando políticas intolerantes e repressivas que atingem sempre os mesmos setores sociais de maneira seletiva e discriminatória. Superaremos um dia a seletividade do sistema?

A liberdade de expressão e de imprensa são componentes basilares de qualquer democracia, porém é importante ponderar que o uso imprudente – ou mesmo mal intencionado – dos meios de comunicação de massa pode ter efeitos sociais deletérios. A cobertura midiática de crimes, quando acompanhada do recorrente discurso demagógico em defesa de uma suposta sociedade composta por “cidadãos de bem” ameaçada por criminosos (e estes comumente não reconhecidos como parte dessa mesma sociedade), produz o clamor público – combustível típico das legislações de pânico e legitimador de restrições a direitos dos cidadãos – de constitucionalidade duvidosa. Exemplos disso são os projetos de lei1 que estão em pauta, visando criar novos tipos penais como terrorismo e desordem, a pretexto de refrear atos violentos praticados em manifestações populares. Jamais houve qualquer indicativo de que endurecimento de leis penais gerasse qualquer efeito redutor na prática de condutas criminosas – haja vista exemplos como a Lei dos Crimes Hediondos e a Lei de Drogas, que ensejaram aumentos notáveis nas taxas de encarceramento sem qualquer redução na incidência de crimes.

A suposição de que a não aplicação do Direito Penal corresponderia automaticamente a um incentivo à conduta que se pretende reprimir é profundamente arraigada no senso comum, compartilhada por setores expressivos da sociedade e recorrentemente contamina o pensamento jurídico. É como se a crença na punição pedagógica não deixasse outra resposta que não a violência estatal, e a falha na repressão estatal não deixasse outra resposta senão aquela da justiça feita pelas próprias mãos dos cidadãos.

É urgente trocar o discurso autoritário/repressivo por uma lógica de responsabilização. Seria um caminho viável começar a pautar discursos enfatizando os papéis sociais que cada um ocupa e como contribui para o fortalecimento da cidadania e da tolerância. Cobrar a implementação de bem elaborados e democráticos programas de prevenção criminal a fim de diminuir o inchaço da punição seletiva-vindicativa. É preciso buscar respostas possíveis, para sociedades possíveis – as que não idealizam um mundo sem crime, mas um mundo em que os conflitos humanos são abordados civilizadamente e administrados pelo Estado à luz das regras fundamentais estabelecidas na Constituição.

Nota

(1)  O PL 499/2013 de autoria do Senador Romero Jucá (PMDB-RR) tem sido o mais debatido devido ao seu caráter repressivo, que na ânsia de tipificar “terrorismo” – cobrindo um possível vácuo deixado pela Lei de Segurança Nacional - abre a possibilidade de criminalização de movimentos sociais


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