INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 242 - Janeiro/2013





 

Coordenador chefe:

Rogério Fernando Taffarello

Coordenadores adjuntos:

Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho, Matheus Silveira Pupo e Rafael Lira.

Conselho Editorial

A dosimetria das penas privativas de liberdade

Autor: José Antonio Paganella Boschi

Com frequência, as expressões “individualização” e “dosimetria” das penas são utilizadas sinonimamente, embora seus diferentes objetos.

A individualização, como garantia (art. 5.º, inc. XLVI), projeta dever de respeito às singularidades próprias e características do indivíduo certo (e não de um homem médio) e do fato a ele imputado. Desses dois aspectos limitadores, deduz-se que a garantia da individualização previne abusos, por impedir tratamento de massa em Direito Penal.

A dosimetria, outrossim, é o procedimento regrado que efetiva a garantia da individualização da pena. Ela resulta da técnica e não da arte de julgar e tem por fim estabelecer a relação compensatória entre duas grandezas conhecidas:(1) o crime praticado, de um lado, e o castigo oficial, de outro, tendo por nortes os princípios da culpabilidade e da proporcionalidade, entre outros.

Tal procedimento, no sistema do Código, desdobra-se em três fases distintas e sucessivas (art. 68 do CP – método trifásico proposto por Nelson Hungria) específicas para os cálculos da pena-base, da provisória e da pena definitiva.

A pena-base não encontra definição em lei, ao contrário do CP de 1969, mas deve ser entendida como a primeira referência quantitativa, isto é,que serve de base “(...) para alguma coisa... surgindo como uma necessidade prática e vinculada à aplicação mesma do sistema”.(2) O seu cálculo é realizado mediante a valoração das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do CP – haja vista a remissão a esse dispositivo feita pelo legislador no art. 68 do mesmo Estatuto. É por causa disso que as circunstâncias do art. 59 são chamadas de “judiciais”, ao contrário das circunstâncias “legais” (agravantes, atenuantes, qualificadoras etc.), cuja carga de valor foi conferida a priori pelo legislador.

As circunstâncias judiciais são de valores insitamente positivos. Para inverter essa polaridade o prolator da sentença precisará se apoiar em elementos e convicção existentes no bojo dos autos. Não são admissíveis suposições ou argumentos de autoridade.

Não atende, pois, a exigência do inciso IX do art. 93 da CF, sendo daí absolutamente nula, a sentença que fizer “(...) simples menção aos critérios enumerados em abstrato pelo art. 59 do CP”, sem propiciar a identificação dos “(...) dados objetivos e subjetivos a que eles se adequariam, no fato concreto, em prejuízo do condenado”(3) ou que invocar fórmulas vagas ou preguiçosas,(4) do tipo “as circunstâncias judiciais são desfavoráveis ao réu”.(5)

Como não há regras explícitas sobre os procedimentos a utilizar depois de realizada a valoração das circunstâncias judiciais, a doutrina e a jurisprudência recomendam a utilização das seguintes diretivas gerais: a) quando todas elas forem valoradas positivamente, a pena-base será estabelecida no mínimo legalmente cominado, por ser essa a tendência dos países em todo o mundo; b) quando algumas delas (duas ou três) receberem cargas negativas de valor, ela deverá ser fixada um pouco acima do mínimo legal; e, por último, c) quando o conjunto das circunstâncias judiciais for considerado desvalioso, a pena-base será estabelecida em quantidade próxima à do termo médio (obtido com soma do mínimo com o máximo abstratamente cominados e a divisão por dois desse resultado aritmético).

Na segunda fase serão consideradas as agravantes e atenuantes previstas em lei (arts. 61 a 65) e também as inominadas (art. 66), com destaque para as preponderâncias previstas no art. 67, observada, em qualquer caso, a proibição da Súmula 231, em que pese a contrariedade à garantia da individualização da pena e aos arts. 61 e 65 do CP.

O sistema penal não admite, outrossim, quantificação de agravante em volume tal que conduza a pena provisória ao limite máximo cominado em abstrato ao crime, pois ela não possui a força punitiva própria das causas especiais de aumento.

Inexiste regra clara dispondo sobre o modo como deve ser estabelecida a quantidade da agravante ou atenuante. Desde muito, sugerimos a adoção da fração máxima de 1/6 da pena-base, assim também recomendando Guilherme Nucci,(6) tudo para se evitar a equiparação dessas circunstâncias às causas de aumento ou diminuição.

Na terceira fase, desde que observada a regra do parágrafo único do art. 68 do CP, será calculada a pena definitiva mediante acréscimos ou diminuições, por cascata, das quantidades de penas determinadas pelas eventuais causas especiais de aumento ou diminuição, previstas na Parte Geral e na Parte Especial do CP, sendo elas fixas ou variáveis. Estas últimas exigem a própria e prévia mensuração dentro das respectivas margens, antes de serem as quantidades acrescidas ou extraídas da pena provisória.

Também não há critérios explícitos para essa prévia quantificação, salvo para as hipóteses do crime tentado (art. 14, II) – cujo critério é o do iter criminis do concurso formal (art. 71) e da continuidade delitiva (art. 71 e parágrafo único do CP) – cujo critério comum é o do número de vítimas ou de crimes.(7)

Nessas últimas hipóteses é indispensável o esgotamento do método trifásico para cada crime (em concurso formal ou continuado) e, depois, a realização do cálculo voltado à imposição das respectivas causas de aumento sobre a pena de um só dos crimes (se iguais) ou a mais grave (se diversas), para se poder resguardar o princípio do concurso material mais benéfico (arts. 70, parágrafo único e 71, parágrafo único, in fine). Para os demais casos, como o silêncio é geral, nossa sugestão é de mensuração da majorante ou minorante em quantidade que reflita o grau da culpabilidade determinado no momento da individualização da pena-base.

Em que pese estar ainda em curso o julgamento da Ação Penal 470 e de nos utilizarmos, para a redação deste artigo, apenas das informações veiculadas pela imprensa, consideramos que o colendo Supremo Tribunal Federal pode ter sido rigoroso demais na quantificação das penas até aqui impostas, em contraste com o princípio da proporcionalidade. Veja-se que a culpabilidade de todos os acusados foi intensamente valorada como circunstância negativa.

Sem precisarmos discutir se ela integra ou não o conceito de crime(8) ou se é ou não o pressuposto deste, certo é que a culpabilidade atua como fundamento para a condenação e como limite não ultrapassável no processo de quantificação das penas sem ser uma circunstância judicial e não concorre com as “demais” operadoras do art. 59, por serem estas meras ferramentas à disposição do julgador para ajudarem no processo de determinação do grau da culpabilidade que projetará a correspondente quantidade de pena-base.

A decisão refletiu o clamor público contra os desmandos nas altas esferas do poder, mas abrirá espaços para discussões sobre o modo como foram consideradas as regras que pertinem à dosimetria das penas.

Veja-se que por formação de quadrilha, a pena, para um dos acusados, aproximou-se do máximo abstratamente cominado. A figura do termo médio parece ter sido desconsiderada e, em alguns casos, a soma das diferentes penas impostas ultrapassou o limite para a execução, fixado em lei em 30 anos!

Noutros, parece ter havido claro dissenso da jurisprudência que veda o ne bis in idem, aspecto que mereceu o alerta do pelo Min. Ricardo Lewandowski em sessão. Assim, o enriquecimento ilícito foi dadocomo causa para a negativização dos motivos, o montante dos prejuízos, para justificar o desvalor das consequências dos crimes cometidos contra a Administração Pública, a utilização de doleiros, para influir negativamente nas circunstâncias dos crimes de evasão de divisas e o tempo de duração de alguns crimes para ensejar a valoração negativa das consequências, sem prejuízo do aumento decorrente da continuidade delitiva. Ora, esses aspectos fáticos não integrariam as figuras típicas? Como supor, num exemplo só, perfectibilizaçao típica da evasão de divisas sem a necessária atuação do doleiro?

Por esse e muitos outros aspectos, dentre eles os entendimentos manifestados sobre a teoria do domínio funcional do fato, o princípio da proporcionalidade, a relação simétrica entre penas privativas de liberdade e pecuniárias, a responsabilidade dos agentes financeiros, a definição sobre o bônus de volume como direito das agências de publicidade, o concurso de agentes versus a formação de quadrilha, a tipificação da evasão de divisas, a cisão processual nas ações originárias, a competência para declarar a perda do mandato parlamentar, que o próprio STF já afirmou nas improbidades ser da Câmara e não do Poder Judiciário, o julgamento da Ação 470 será fonte de novos debates e ponto de partida para a redefinição de rumos nas áreas Penal e Processual Penal. Em que pese essa observação, é inegável que o país ganhou com o longo e notável julgamento também porque as transmissões ao vivo, derrubando mitos, permitiram que o povo visse in ictu oculli o que desde sempre os operadores do Direito já sabiam: que os Ministros da mais alta Corte da República desenvolvem trabalho árduo e complexo e que julgaram a Ação 470, mesmo abrindo a guarda em frontais discussões, com coragem, imparcialidade e independência, que são as principais virtudes exigíveis dos juízes.

Notas:

(1) Rodrigues, Anabela Miranda. A determinação da medida da pena privativa de liberdade. Coimbra: Coimbra Ed., 1995. p. 208-209.

(2) Duarte, José. Aplicação da pena – Pena-base – Inteligência do art. 50. Revista Justitia, São Paulo, vol. 4, p. 209, 1942.

(3) STF, HC 68.751, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 1.º.11.1991, p. 15569. No mesmo sentido: HC 3.016-7/PB, 2ª T., Rel. Min. Francisco Rezek, j. 15.12.1995, v.u., DJU 11.04.1997, p. 12183.

(4) As expressões são de: Costa Jr., Paulo José da. Curso de direito penal. Parte geral. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 161.

(5) HC 74.951, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Informativo do STF, n. 89).

(6) Nucci, Guilherme de Souza. Individualização da pena. São Paulo: RT, 2004. p. 285

(7) No STF: HC 73.446-4/SP, 2.ª T., Rel. Min. Marco Aurélio. No STJ: HC 128297/SP, 5.ª T., Rel. Min. Felix Fischer, j. 19.08.2009; no TRF 4.ª Reg.: ACR 2005.70.00.019396-3, 7.ª T., Rel. Tadaaqui Hirose, DE 12.11.2008); no TJRS: RJTJRS, v. 114, p. 159, entre muitos outros julgados.

(8) Crime, segundo o conceito analítico, é ação ou omissão típica, antijurídica e culpável.

José Antonio Paganella Boschi
Professor da PUC.
Ex-Procurador e Desembargador no RS.
Advogado



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