Rogério Fernando Taffarello
Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho, Matheus Silveira Pupo e Rafael Lira.
Autor: Rafael Mafei Rabelo Queiroz
Uma parte da leitura até aqui feita sobre a AP 470 foi demasiadamente personalista. Mais do que o funcionamento do STF como instituição, focou-se a atuação deste ou daquele ministro. Relator e revisor estiveram em evidência nesse sentido. O público técnico e leigo, que acompanhou o desenrolar das “fatias” do julgamento com grande interesse, alternou-se em considerar um ou outro ora como herói, ora como vilão.
Tal forma de enxergar o que se passou nas dezenas de sessões de julgamento da AP 470 não só reduz a atuação do STF ao comportamento de dois ministros, como o faz de forma maniqueísta. Este artigo argumenta, com uso de alguns dados,(1) que o retrato que surge desse olhar é institucionalmente equivocado e pouco fiel ao que foi o julgamento da AP 470.
1. Vencedores e vencidos
Comecemos com um corte dos votos relativos a relator e revisor, porque sobre eles estiveram os holofotes na maior parte do tempo. Embora suas desavenças tenham sido intensas, os dados mostram que nas 112 imputações trazidas na denúncia e recebidas pelo STF, ambos concordaram 58 vezes (52% do total) e divergiram 54 (48%). Mais ainda, apenas no julgamento de duas “fatias” do processo as discordâncias entre eles foram, somadas, maiores do que as concordâncias: corrupção passiva da base aliada e formação de quadrilha. Em quatro “fatias”, concordaram mais do que divergiram; em duas, houve empate.
Outro dado relevante surge quando computamos os votos vogais: apenas em 43% dos casos o plenário decidiu unanimemente; nos outros 57%, chegou-se à decisão final por maioria. Se considerarmos que relator e revisor concordaram em 52% das imputações, conclui-se que houve casos em que relator e revisor concordaram, mas algum vogal divergiu de ambos.(2)
Mais ainda: em todas as “fatias” de julgamento houve votos a favor da acusação e das defesas, na medida em que não houve uma única “fatia” sem decisões tomadas por maioria, conforme gráfico(3) a seguir.
Se agruparmos os votos vencedores e vencidos por ministro, chega-se aos dados apresentados no gráfico a seguir.(4)
Se os dados apontados anteriormente mostram que houve dissensos em todas as “fatias”, esses agora mostram que, individualmente, todos os ministros restaram vencidos em várias das 112 imputações julgadas pelo plenário. Três ministros (Lewandowski, Dias Toffoli e Marco Aurélio de Mello) restaram vencidos em mais de 20% dos votos que proferiram. Apenas dois deles (Celso de Mello e Ayres Britto, não por acaso os dois últimos na ordem de votação) restaram vencidos menos de 10% das votações.
Igualmente importante é o fato de que, em todas as “fatias”, todos os ministros foram, individualmente, mais vencedores do que vencidos, embora, naturalmente, os índices de cada qual tenham variado nesse aspecto. A esse respeito, convém lembrar – porque a maneira como foi retratado o julgamento às vezes deixou a impressão de que o revisor foi “atropelado” pelo plenário – que ao menos em duas das oito “fatias” (evasão de divisas e lavagem de dinheiro por parlamentares e/ou assessores do PT), as teses do revisor prevaleceram sobre as do relator.(5)
2. Legitimação pelo dissenso
Façamos agora um juízo hipotético e suprimamos os dissensos. Restaria o cenário, certamente majoritário nas decisões colegiadas em tribunais brasileiros, de decisões unânimes nos termos do voto do relator. Não teria havido os muitos conflitos que marcaram as sessões; o julgamento, por sua vez, não teria consumido mais de meia centena de sessões do STF. Desapareceriam, assim, duas circunstâncias que muitas críticas públicas receberam: as brigas entre os julgadores e a demora do julgamento.
Teria sido esse cenário melhor para o julgamento, do ponto de vista de sua legitimidade? Certamente não. Os vencidos personificam, tanto quanto os vencedores, o ecoar das diversas teses suscitadas pelas partes. Quando vencidos pela absolvição, mostram que, não obstante condenados os réus, as defesas tiveram a atenção do plenário e nele se fizeram impactar, atestando, portanto, sua efetividade. O mesmo vale para os vencidos pela condenação, quando o plenário decidiu-se pela absolvição.
Não se sugere aqui que nenhum dos pontos criticados – conflitos acima do tom cabível e lentidão do procedimento – não mereçam as críticas que receberam. O que se sustenta é que esses desvios só devem se tornar centrais na avaliação deste ou de qualquer outro julgamento quando, por sua intensidade, projetarem dúvidas sobre a capacidade do tribunal em dar conta de sua competência, como seria, por exemplo, se relator ou revisor abandonassem seus papéis processuais em razão das disputas em que se envolveram (levando o trâmite da ação a um impasse), ou se a demora fosse tamanha a ponto de inviabilizar o funcionamento do tribunal, ou prejudicar a efetividade do processo (por prescrição, por exemplo). Não foi o caso na AP 470.
O Poder Judiciário como um todo, e o STF em particular, têm grande autoridade no desenho institucional brasileiro. O Supremo pode retirar a validade de leis regularmente criadas pelos demais poderes, que são diretamente eleitos pelo povo e daí retiram boa parte de sua legitimidade. E o Judiciário, de onde tira legitimidade para o exercício dos enormes poderes que têm?(6) Em síntese, essa legitimidade vem da qualidade jurídica de suas decisões, revelada sobretudo pela sua capacidade de fazer valer a ordem jurídica, necessariamente geral e abstrata, a casos singulares e muitas vezes difíceis.
No Brasil, busca-se garantir a efetividade do exercício legítimo do STF por dois requisitos distintos. O primeiro deles é a qualidade e autoridade de seus membros, que devem ostentar notório saber jurídico e ilibada reputação. O segundo, o procedimento pelo qual obriga sejam tomadas as mais importantes decisões na corte, que é colegiado (em turmas ou no plenário) e deve ser presidido pelo princípio da colegialidade. Assim, os ministros devem expor seus pontos de vista à apreciação crítica de seus pares, com disposição de alcançarem vereditos que indiquem, mais do que suas posições individuais, uma posição do tribunal. Por isso, os acórdãos devem ser consistentes em seus fundamentos e sólidos quanto a suas razões jurídicas – e não mera soma de placares de votação com razões e fundamentos distintos e incompatíveis entre si.
Para a realização de todos esses pressupostos, é melhor que se tenha um julgamento que revele embates entre as teses jurídicas sustentadas por seus membros, depuradas para se chegar às razões do plenário. Muito embora, reitere-se, as divergências não podem ser tais a ponto de criar impasses decisórios que sugiram que a corte tenha dificuldades para coordenar sua ação coletiva e dar conta de sua competência constitucional.
3. Considerações finais
Se a publicização do STF veio para ficar, é preciso que os ministros zelem para que ela não interfira na qualidade jurídica da deliberação na corte. Bons votos individuais que não sejam reduzíveis a decisões verdadeiramente colegiadas, ou votos fundamentados em razões políticas (e não jurídicas), por melhores que sejam, não reforçam a autoridade do tribunal.
De outro lado, é preciso também que o acompanhamento público desses procedimentos não leia a sala de sessões como cenário de novela, pois o que vale é a atuação da instituição, por meio de seu órgão competente (o plenário, neste caso), e não a atuação mais ou menos vistosa de um de seus membros. Assistir ao plenário do STF de forma personalista reforça o individualismo no seio de um órgão que só se sustenta, politicamente, se funcionar de forma coletiva. Em longo prazo, julgamentos com heróis e violões só depreciam a autoridade da corte – e, por corolário, do próprio Poder Judiciário.
Notas:
(1) Os dados aqui considerados se referem apenas aos votos relativos às imputações criminais, excluindo-se a dosimetria das penas, que não havia ainda sido concluída quando da preparação deste texto.
(2) Os vogais que mais divergiram de relator e revisor foram a ministra Rosa Weber, em algumas imputações sobre formação de quadrilha, e o ministro Marco Aurélio de Mello, que condenou, em diversas imputações, uma ré absolvida pelo restante do plenário.
(3) No gráfico, “Lavagem de dinheiro I” refere-se a imputações aos “núcleos” financeiro e operacional, conforme a denúncia; “lavagem de dinheiro II”, a imputações a parlamentares do PT ou seus assessores.
(4) Os ministros são identificados por suas iniciais. Assim, JB é Joaquim Barbosa, MA Marco Aurélio, AB Ayres Britto etc. Os números do ministro Cezar Peluso não foram considerados pois ele apenas apreciou 24 imputações, referentes à primeira “fatia”. Peluso teve 23 votos vencedores e 1 voto vencido na única “fatia” em que votou.
(5) Nos casos em que houve empate, foi considerado vencedor aquele que votou pro reo. Em todos os casos em que isso aconteceu, o voto pro reo foi do revisor.
(6) Há intenso debate na teoria constitucional sobre os limites e fundamentos do poder decisório das supremas cortes. Para um apanhado de todas elas, v. Mendes, Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. Tese (Doutorado em Ciência Política) – FFLCH, USP, São Paulo, 2010.
Rafael Mafei Rabelo Queiroz
Doutor e Mestre em Direito pela USP.
Professor da Escola de Direito de São Paulo da FGV (Direito GV).
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