Rogério Fernando Taffarello
Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho, Matheus Silveira Pupo e Rafael Lira.
Autor: Marcelo Almeida Ruivo
I. Acerca do sentido do comentário
Há países – talvez não por mera coincidência, doutrinalmente robustos – nos quais o comentário e também a crítica às decisões judiciais fazem parte da primeira ordem dos deveres do universitário. Cabe ao investigador acadêmico auxiliar o decisor na orientação dos caminhos, na identificação das razões, custos e consequências de determinada tomada de posição. Pois, sabidamente a amplitude e o tempo para a reflexão e ajuizamento doutrinal não são equivalentes aos dispostos aos magistrados em face da necessidade da tempestiva solução das lides processuais (ajuizamento judicial). Entre nós, tal prática segue, infelizmente, sem ter grande frequência, razão pela qual a falta do hábito acrescenta alguma dificuldade a essa tarefa.
Entre as diversas questões interessantíssimas que o julgamento do item V da AP 470 (gestão fraudulenta de instituição financeira) convoca – por coerência com os limites da presente proposta – apontam-se quatro pontos essenciais. Parte-se de uma observação introdutória de cunho axiológico com inequívoco aproveitamento político-criminal e, a partir dessa base, apresentam-se os comentários dogmáticos. Destaque-se que – em razão da intenção de estrita observância ao rigor dogmático – não se deixa de remeter aos aprofundamentos analíticos desenvolvidos na literatura especializada. Enfim, o que se apresentam são brevíssimos comentários às gravações das manifestações integrais dos votos e dos debates realizados pelos Senhores Ministros, uma vez que, quando se acabou este escrito, não havia a publicação do acórdão.
II. A relevância axiológico-jurídica da gestão fraudulenta
É notável o ganho de consciência comunitária a respeito da importância do Sistema Financeiro Nacional e global na realidade econômica contemporânea, bem como do papel relevante que a atividade regulatória e punitiva estatal desempenha.(1) Não é de hoje que o mundo vive um amplo processo de “financeirização econômica”,(2) haja vista que a economia financeira já adquiriu autonomia relativa e superou o crescimento da economia real que lhe deu origem. Grande parte da riqueza na atualidade está acumulada na forma de valores financeiros, que assumem papel imprescindível, no plano microeconômico, na viabilização de uma gama de negócios mais comezinhos da vida cotidiana, e, no âmbito macroeconômico, na sustentação e financiamento da produção.(3)
Esse cenário não é apenas reconhecido pela dogmática e política criminal em âmbito nacional, mas também se tem evidenciado na reprovação penal das fraudes nos procedimentos de concessão de crédito em outros países.(4) Decerto tal realidade não deixou de ser reiteradamente expressada na manifestação dos Ministros, no que diz respeito tanto às diretrizes constitucionais do Sistema Financeiro Nacional (art. 192 da CF), quanto aos limites do direito de livre-iniciativa,(5) o que, em específico, concretiza-se na tutela ofertada pelo crime de gestão fraudulenta de instituição (art. 4.º, caput, da Lei 7.492/1986).
III. Temas dogmáticos
1. Determinação do bem jurídico – Começa-se por um tema dogmático – diretamente fundado no reconhecimento dos valores comunitários adstritos ao mundo financeiro – de posição nuclear na determinação das condutas criminosas. As manifestações dos Ministros espelharam, de certa maneira, a ausência de mínima homogeneidade doutrinal na matéria. Pode-se perceber, de maneira ampla, que as orientações associam sob a cobertura da categoria bem jurídico não apenas valores, mas também conjunto ou sistema de valores, interesses e, até mesmo, funções.(6) Entretanto, se sabe que quanto maior a indefinição dos contornos do núcleo do ilícito, mas incerta é a hermenêutica do crime e a realização judicial do Direito Penal em reprovação do desvalor da conduta e do resultado. Ao passo que os valores comunitários são capazes de alcançar o reconhecimento pelo direito como bens jurídico-penais, os interesses e as funções são incapazes de receber perfeito acolhimento nessa definição categorial. Decerto estes são elementos de dimensão mais ampla que os valores, na medida em que a eles abrangem e com eles se relacionam.
Foi em decorrência dessa específica indefinição com aderência a também imprecisa compreensão do bem jurídico do crime de lavagem de dinheiro que partiu a eventual dúvida acerca da absorção do crime de gestão fraudulenta pela lavagem de dinheiro. É bom que se destaque a correição do julgamento no sentido da negação da hipótese e, melhor ainda, que se reforce e explicite os fundamentos. Diante das diversas compreensões de bens jurídicos encontradas na doutrina, afirma-se que aquela que melhor cumpre com todas as funções próprias dessa categoria penal é a que sustenta haver a proteção de um bem jurídico “supraindividual e de titularidade difusa, formado pela união de dois valores socioeconômicos penalmente dignos, de um lado, a verdade e a transparência e, de outro, o patrimônio” dos poupadores usuários do sistema financeiro.(7) Essa compreensão concretiza o que há de essencial num sentido maior e mais abstrato – e por isso incapaz de tutela penal na sua amplitude – da confiança na proteção do patrimônio dos poupadores.(8) Os valores tutelados estão dispostos de forma escalonada, de maneira que nem sempre que ocorrer a fraude ofensiva a verdade e transparência, verificar-se-á inexoravelmente o perigo ao patrimônio.(9)
Já em relação à lavagem de dinheiro, pelo que tudo indica a sua fenomenologia e propósito incriminador, encontra-se um crime voltado à tutela da administração da justiça penal, a que o agente busca fugir – por meio dos procedimentos de branqueamento – independentemente da espécie do crime antecedente. Coloca-se assim, portanto, em traços mais claros a linha distintiva entre os delitos.
2. Determinação da técnica de tutela – Questão conexa à primeira, que da mesma forma restou inconclusa, remete à determinação da técnica de tutela do bem jurídico. Afirmar que se trata de um crime formal de perigo, no qual é desnecessária a verificação de um eventual resultado natural externo à conduta do agente, não significa o mesmo que negar a exigência de resultado de qualquer espécie. Se é certo apontar que não se verifica imprescindível nem o dano, nem mesmo o perigo concreto ao patrimônio, também é verdadeiro que o princípio constitucional da ofensividade(10) exige, igualmente para os crimes de perigo abstrato, a verificação de um resultado ofensivo juridicamente desvalioso.(11) Acertadamente foi declarado que para caracterização da situação de perigo ao bem jurídico, capaz de consumar o crime, não importa se, posteriormente, ocorreu o adimplemento do valor devido pelos tomadores do empréstimo. Diferente do que ocorria com o art. 3.º, IX, da antiga Lei de Economia Popular, não é propriamente o prejuízo econômico que está em questão, mas sim já mesmo o perigo ao bem jurídico patrimônio.(12) Não há dúvida de que a percepção comunitária do perigo de dano ao patrimônio no âmbito financeiro é elemento capaz de desencadear uma crise de confiança de acordo com as condições estruturais numa dinâmica propícia ao contágio de outras instituições.
3. Suposta necessidade de reiteração da fraude. Habitualidade –São propriamente as duas categorias analisadas anteriormente que permitem solucionar satisfatoriamente o problema da suposta necessidade de reiteração de atos para a caracterização da gestão fraudulenta. Bem foi destacado que duas são as correntes doutrinais: uma que defende a necessidade de repetição da fraude para a caracterização do crime e outra que indica que apenas uma conduta realiza o tipo penal.
Para enfrentar o problema, convoca-se passagem escrita em outra oportunidade, que parece ainda persistir livre de oposições aptas a sua invalidação. Entende-se que não há razão para considerar indispensável a repetição de fraudes para a efetiva caracterização da gestão fraudulenta, a partir do argumento reconhecido no pronunciamento do voto do Senhor Ministro Dias Toffoli. Reproduz-se apenas o núcleo essencial. Sabidamente o gestor “pratica vários e diversificados atos de decisão, controle e administração, que, na sua individualidade, permitem o reconhecimento do sentido do comando o qual ele exerce” e por isso “toda atividade” “exercida com carga decisória em relação ao desempenho dos propósitos da empresa, não há dúvida, que se trata de uma atividade de gestão”.(13)
Ademais, “não há qualquer elemento especial que leve a se acreditar ser necessária a reiteração da conduta fraudulenta para a caracterização do crime, haja vista que, em termos materiais, não resta dúvida: uma única conduta de gestão pode ser simultaneamente ofensiva aos valores verdade e transparência e ao patrimônio, a ponto de, até mesmo, ameaçar sensivelmente a confiança no Sistema Financeiro Nacional. Situação, portanto, em que nada interessaria a regularidade dos outros atos de gestão para fins de caracterização do crime de gestão fraudulenta. Uma única conduta fraudulenta, aliás, pode caracterizar ofensa mais elevada que a repetição de atos de menor intensidade”.(14) Ressalta-se apenas que a reiteração da fraude, todavia, não acarreta pluralidade de delitos (crime habitual impróprio).
4. Elemento subjetivo do tipo – Uma última questão não menos interessante atrela-se à viabilidade de imputação da responsabilidade penal tomando por base apenas elementos objetivos como a ocupação de determinado cargo em organograma empresarial e a participação formal em atos. Seria supostamente presumível, considerando esses dois elementos, a configuração de determinada conjuntura indicativa da plena cognição do agente do desvalor penal do resultado que causa com a sua conduta. Isto é, o dolo seria depreendido a partir da soma de ambos os elementos objetivos, como decorrente do dever de controle e fiscalização que está incumbido em razão da sua posição hierárquica.
Acontece que uma qualquer instituição financeira de porte médio apresenta a divisão do trabalho, segundo a qual cada diretoria responsabiliza-se por uma atividade, por isso não pressupõe que todos os diretores tenham perfeita ciência das específicas regras procedimentais e acompanhem o andamento das outras atividades. E mais. Sem qualquer dúvida, o ordenamento brasileiro quer constitucional – com fundamento na dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da CF) –, quer penal – na previsão dos elementos subjetivos do tipo (art. 18 do CP) – acolhe a máxima segundo a qual nullun crimen sine culpa. Nesse sentido, a Corte perseverou na sua correta jurisprudência que veda a responsabilidade objetiva em termos empresariais, estritamente baseada na figuração do imputado em contatos empresariais ou em assinaturas documentais. É imperioso apurar se o agente tinha, de fato, conhecimento do desvalor penal da sua conduta, bem como se pretendia o resultado criminoso.
Agora, reconhecer os elementos essenciais para a configuração do dolo do agente não chega ao ponto de confundir – o que por vezes é defendido – com uma especial intenção de agir autônomo ao elemento geral do tipo que consistiria no fim último da fraude. Certo é que, em termos criminológicos, não se duvida ser a fraude tão somente um meio para atingir um objetivo. Todavia, embora adequado para enfatizar a diferenciação entre o simples ato de má-gestão e aquela gestão fraudulenta com objetivo de ganho patrimonial, o art. 4.º, caput não prevê elemento subjetivo especial indicativo do fim da fraude.(15)
Por fim, uma palavra conclusiva. Bem se sabe que, em razão da repercussão nacional deste julgamento, não faltaram comentários e críticas, aliás, uma parte significativa eminentemente conduzida pela atenção e interesse próprio da urgência jornalística.(16) Pretendeu-se, aqui, a partir de outro olhar, oferecer contribuições reflexivas – ainda que brevíssimas – assumidamente comprometidas com o estudo do Direito a uma parcela das complexas questões jurídicas encontradas nesse processo.
Notas:
(1) Sobre o papel regulamentador para a eficiência dos mercados, Alexandre; Martins; Andrade; Castro; Bação, Crise financeira internacional, Coimbra: Imprensa da universidade, 2009, p. 104 e 110. Especificamente quanto à intervenção penal do Estado, ver Ruivo, Criminalidade financeira, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 15 e ss., espec., p. 21.
(2) Sobre isso, Chesnais, A mundialização do capital, Paulo: Xamã Editora, 1996, p. 29; Dupont, Dictionnaire des risqué, Paris: Armand Colin, 2003, p. 325; Altvater, Uma nova arquitetura financeira, Globalização e justiça II, p. 89 e 101 e, no Direito Penal, Marinucci; Dolcini, Corso di diritto penale, Milano: Giuffrè,2001, v. 1, p. 550; Ruivo, op. cit., [nota 1], p. 16-18.
(3) Eventualmente, Foffani, Le fattispecie di infedeltà patrimoniale nell’intermediazione del credito e nella gestione del risparmio, Diritto penale della banca, Torino: UTET, 2002, p. 336.
(4) Apenas a título de exemplo, pode ser referido na Alemanha, recentemente, Schünemann, Leipziger Kommentar, Berlin: De Gruyter,2012, v. 7, p. 852, n. 240 e, na Itália, Foffani, Commentario breve alle leggi penali complementari, Padova: CEDAM, 2007, p. 685-690.
(5) Sobre as diretrizes constitucionais de proteção do Sistema Financeiro Nacional, ver Ruivo, op. cit., [nota 1], p. 26-36.
(6) Veja-se, por exemplo, o “Sistema Financeiro Nacional” na sua totalidade não é propriamente um bem jurídico, mas um conjunto de instituições, normas, práticas e bens relacionados a determinados interesses econômicos. Para uma detalhada crítica das concepções doutrinais excessivamente amplas e indeterminadas, assim como das hipóteses de titularidade do bem jurídico, ver Ruivo, op. cit., [nota 1], p. 90-110.
(7) Ruivo, op. cit., [nota 1], p. 106-107.
(8) Ou na expressão, em sentido próximo, que também aparece na doutrina – aí sim na forma de verdadeiro objeto de tutela – como proteção da “credibilidade do sistema” no sentido de impedir “prejuízo patrimonial para os aplicadores” (Maia, Crimes contra o Sistema Financeiro, São Paulo: Malheiros, 1996, p. 54).
(9) Ruivo, op. cit., [nota 1], p. 107-108.
(10) Nesse sentido, na jurisprudência da Corte, ver voto do Min. Cezar Peluso no precedente STF, ROHC 81.057-8, Min. Sepúlveda Pertence, e, no Direito brasileiro, ampla exposição doutrinária encontra-se em D’Avila, Ofensividade e crimes omissivos próprios, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 63-87.
(11) Ruivo, op. cit., [nota 1], p. 106-107.
(12) Idem, p. 170.
(13) Idem, p.149.
(14) Idem, p. 149-150. Assim, anteriormente, STF, HC 89.364, Min. Joaquim Barbosa e STJ, HC 39.908, Min. Arnaldo Esteves, e, mais recente, HC 110.767, Min. Napoleão Maia Filho, também, na doutrina, Maia, op. cit., [nota 8], p. 58 e Bitencourt; Breda, Crimes contra o sistema financeiro nacional, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 40-42.
(15) Ruivo, op. cit., [nota 1], p. 171-176.
(16) Recentemente acerca do empobrecimento do “sentido maior que a noção de crítica pretende assumir” quando restrita ao “terreno jornalístico”, ver Faria Costa, Crítica a tipificação do crime de enriquecimento ilícito, RLJ, 2012, n. 3973, p. 249.
Marcelo Almeida Ruivo
Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra com financiamento da FCT-Portugal.
Pesquisador junto ao Max-Planck-Institut (2011-2012)
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