INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 242 - Janeiro/2013





 

Coordenador chefe:

Rogério Fernando Taffarello

Coordenadores adjuntos:

Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho, Matheus Silveira Pupo e Rafael Lira.

Conselho Editorial

A Ação Penal 470 e os limites da responsabilidade penal dos agentes financeiros

Autor: André Luís Callegari

A problemática da imputação nos delitos empresariais nunca foi bem compreendida pela doutrina brasileira e causou algumas indagações no julgamento da Ação Penal 470, julgada pelo Supremo Tribunal Federal. O fato gera ainda muitas dúvidas acerca da autoria e participação nesses delitos e quando se deve imputar a responsabilidade ao agente financeiro que tem conhecimento, mas nada faz para impedir o resultado.

A questão principal não é a de imputar o delito àquele que o executa diretamente, mas ao sujeito que colabora de alguma forma para a sua realização. O fato ficou latente nas imputações destinadas aos agentes financeiros que responderam as acusações formuladas na Ação Penal 470, principalmente nos casos em que não havia uma execução direta, isto é, o agente financeiro não realizava a ação descrita no tipo penal.

Os principais questionamentos surgiram quando alguns ministros proferiram seus votos condenando os réus que atuaram no sistema financeiro sem que se tivesse uma prova firme de que estes teriam executado a conduta descrita no tipo penal que lhes fora imputado, embora em alguns casos tivessem o conhecimento do delito cometido ou que pudesse ser cometido. Noutros casos, discutiu-se a possibilidade do eventual conhecimento (dolo eventual) e a possibilidade de responsabilidade do agente que assim atuou.

De forma breve, porque não suscita maiores discussões, a teoria do domínio do fato, muito citada na Ação Penal 470, não elimina a participação e transforma a todos em coautores do delito. Apenas possibilita abarcar de forma mais ampla condutas que não realizam diretamente o tipo penal, mas que também são vistas como sustentadoras para o êxito da empreitada delitiva. Assim, é acertado dizer que em determinados casos os agentes financeiros podem participar do delito sem que tenham realizado o verbo nuclear descrito no tipo, mas também é necessário que se prove que este sujeito de alguma forma detinha o domínio final do fato, isto é, também tinha o controle da execução sob suas mãos (domínio funcional do fato) e que sem ele o fato como um todo não se realizaria.(1) Isso implica também conhecimento e adesão à conduta dos demais participantes. Essa é a fórmula tradicional que muito foi citada, mas preferimos a doutrina dos atos neutros para delimitar a responsabilidade penal dos agentes financeiros.

Os casos que oferecem mais dúvidas nos delitos financeiros são as condutas de determinados sujeitos que ficam numa zona cinzenta entre a participação criminal ou a mera atividade quotidiana, isto é, a atividade neutra que é desenvolvida diariamente pelo agente, ainda que ele possa suspeitar que o fim dessa atividade possa ser aproveitado ilicitamente por outro sujeito.

Em princípio fica limitada a participação criminal do agente financeiro que “colabora” com a atividade criminal de outros sujeitos se a sua conduta se mantém dentro do risco permitido de sua atividade, isto é, se as normas e os procedimentos padrão são por ele utilizados, ainda que possa saber que os sujeitos que intervirão posteriormente irão cometer um delito.

Como o trabalho não nos permite um maior aprofundamento sobre todas as teorias que limitam a participação criminal, entendemos que o tratamento correto para a responsabilidade penal dos agentes financeiros é a utilização da teoria da imputação objetiva com os seguintes requisitos: (a) se o agente criou um risco juridicamente desaprovado; (b) se o risco juridicamente desaprovado se verificou no resultado.

Como já foi dito anteriormente, o debate sobre o conhecimento do agente para a imputação da responsabilidade criminal foi discutida em várias oportunidades no julgamento da Ação Penal 470.

Desde o nosso ponto de vista, os conhecimentos do agente financeiro – imputação subjetiva – que possam ser atribuídos (dolo ou dolo eventual) serão irrelevantes sempre que anteriormente não se tenham estabelecido à imputação objetiva do resultado proibido. Isso significa que o questionamento do elemento subjetivo não deve ser o primeiro, ou seja, ainda não cabe a pergunta se o agente atuou com dolo direto ou eventual. Anterior a esta questão é necessário que se questione se o seu comportamento preencheu o tipo objetivo, por exemplo, criando um risco juridicamente proibido.(2)

Assim, nos casos em que o agente financeiro se mantém dentro do risco permitido, isto é, atende as normativas que lhe são impostas, não haverá responsabilidade penal. Dentro de cada marco profissional a legislação deverá estabelecer de forma taxativa os deveres de atuação e não cabe a ampliação da posição de garante para fundamentar a responsabilidade penal. A posição de garante deve ficar restrita aos âmbitos previamente estabelecidos ou quando o agente tem deveres institucionais em relação ao bem jurídico tutelado, mas isso não significa que ela é ilimitada.

Determinados comportamentos do agente financeiro podem “favorecer” de algum modo à comissão de um delito, mas o importante é verificar se este comportamento criou um risco juridicamente não permitido, ou, de outro lado, manteve-se dentro da conduta neutra do marco de atuação profissional realizada pelo agente. Assim, um comportamento profissional pode se constituir em denominado “ato neutro” e não será punível como participação criminal mesmo que seja uma contribuição fática (não normativa) à realização de um delito financeiro, desde que se comprove que dito comportamento do agente ficou coberto pelo rol (comportamento) social e profissional lícito em que atua (casos de gerentes de banco, contadores, administradores de contas etc.).

A questão mais controvertida na doutrina e que suscitou um forte debate durante o julgamento da Ação Penal 470, como já mencionamos, foi a do conhecimento, ou seja, basta o conhecimento do agente financeiro (dolo direto) ou o eventual conhecimento assumindo o risco (dolo eventual) para a participação no delito. Novamente este tema (dolo) tão rico para o debate não nos permite agora o devido enfrentamento, mas o registro já foi feito em nossa obra sobre a lavagem de dinheiro.(3) O importante é mudar a postura em relação à análise da questão e verificar se a conduta do agente se manteve dentro do marco profissional esperado (ato neutro), olvidando-se do elemento subjetivo como questão primordial à imputação.

Nesse sentido, se existe um “ato neutro” o julgador não deve avaliar se o agente financeiro teve “conhecimento” de estar intervindo instrumentalizado ou não em um delito alheio, ou se dito conhecimento não houve, mas, poderia ser adquirido com uma diligência ordinária. Nesses casos, não existe tipicidade objetiva simplesmente por faltar o risco juridicamente desaprovado, sendo desnecessário analisar o elemento subjetivo.

Por fim, também é necessário que se analise que tipo de conexão existe entre o agente financeiro e o sujeito que pratica o delito, pois a conexão da ação inicialmente neutra com a realização de um delito realizado por outro é requisito necessário, mas, não é suficiente para afirmar a tipicidade da conduta. É pressuposto da tipicidade, mas, não é elemento que decide a relevância penal da conduta. Somente a concorrência de especiais circunstâncias que permitam concluir a existência de forma clara e unívoca de uma especial relação de sentido delitivo entre a conduta inicialmente neutra e o delito pode modificar o caráter neutro da conduta e convertê-la em típica.(4)

Assim, a utilização de um critério normativo permite uma melhor delimitação na imputação, participação e responsabilidade penal dos agentes financeiros. Nessa linha de argumentação, não é qualquer “colaboração” de uma atividade profissional que “favoreça” a atividade delitiva que pode ser justificada como típica. O dolo ou o mero conhecimento não são suficientes para determinar a relevância penal da conduta, mesmo quando os conhecimentos especiais do autor devam ser considerados para a determinação da tipicidade da concreta conduta analisada.(5)

Nesse breve estudo, fica registrado que o conhecimento ou a relação de causalidade são elementos importantes para afirmar a participação criminal de um agente financeiro, porém, não são suficientes ainda para que se possa ter um juízo de certeza. A limitação deve ser feita por meio da imputação objetiva, ou seja, da verificação dos critérios de interpretação normativa do tipo penal.

De acordo com isso, no julgamento da Ação Penal 470 ficaria muito mais claro afirmar que o sujeito criou com o seu comportamento um risco juridicamente não permitido para que se lhe imputasse a conduta descrita no tipo penal.

De outro lado e apenas para finalizar, deve-se separar a questão da prova dos delitos tradicionais para os delitos financeiros. Neste caso, dificilmente teremos uma prova como no homicídio ou nas lesões, com o tradicional exame de corpo de delito. Nos crimes financeiros a questão é mais complexa e a prova se dará pelo conjunto dos indícios que deverão restar provados,(6) o mesmo ocorrendo com a teoria da autoria e da participação. Dificilmente o autor intelectual praticará a conduta típica, fato que não impede o reconhecimento da autoria nesses delitos.

Notas:

(1) Roxin, Claus. Autoría y domínio del hecho em derecho penal. Traducción de Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano González de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1998. p. 79 e ss.; Callegari, André Luís. Lavagem de dinheiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 93 e ss.

(2) Gómez-Trelles, Javier Sánchez-Vera. Lavado de activos: critérios de imputación por la actuación de profesionales (notários, empleados de actividades financieras, etc.). El sistema penal normativista. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2008. p. 547.

(3) Callegari, André Luís. Lavagem de dinheiro cit., p. 151 e ss.

(4) Pérez Manzano, Mercedes. Neutralidad delictiva y blanqueo de capitals: el ejercicio de la abocacía y la tipiciad del delito de blanqueo de capitales. Política criminal y blanqueo de capitales. Marcial Pons: Madrid, 2009. p. 174.

(5) Idem, p. 173.

(6) Montañes Pardo, Miguel Angel. La presunción de inocencia. Madrid: Aranzadi Editorial, 1999. p. 106 e ss.

André Luís Callegari
Doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid.
Professor de Direito Penal na Unisinos.
Advogado



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