Rogério Fernando Taffarello
Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho, Matheus Silveira Pupo e Rafael Lira.
Autor: Marina Dias e Hugo Leonardo
O Desembargador Ranulfo de Melo Freire, ao prefaciar a obra do também Desembargador Adauto Suannes, trouxe a seguinte reflexão: “É que nosso entendimento era de que o homem nasceu antes do processo; e com mais força do que o processo”.(1) Assim, há de se reforçar o axioma por vezes esquecido de que o processo é o instrumento dedicado não ao Estado, mas ao cidadão. E o imperativo de a defesa atuar livremente, ser ouvida e respeitada é condição de validade de qualquer decisão que se pretenda legítima. Portanto, dar voz ao acusado e, por sua vez, ao advogado, não é obséquio, é dever.
O advogado é o porta voz do réu e indispensável para a formulação do contraditório. Tudo para dizer que o fim último da presença inexorável desse profissional é garantir que se aplique à pessoa humana, o que diz a lei, à luz da realidade do homem sobre o qual paira a expectativa da punição.
E a defesa inexiste sem a sensibilidade do julgador na seara criminal para a importante premissa supraestabelecida. E nunca é demais lembrar passagem de acórdão proferido pelo Desembargador Marco Nahum e resgatada pelo Ministro Eros Grau, ao decidir o HC 95.009,(2) que expõe o papel do juiz criminal: “Decisão memorável da Justiça paulista desenhou com precisão o papel do Juiz no processo criminal: ‘A mais importante missão do juiz criminal é resguardar os direitos fundamentais do cidadão frente ao poder do Estado. Ao juiz criminal cabe a função de resguardar e proteger os direitos individuais do homem diante do poder punitivo do Estado’. Este o sentido desta decisão neste ‘writ’. Impedir que o poder punitivo do Estado violente os direitos individuais do paciente” (TACrimSP – HC 362.090, Rel. Juiz Marco Nahum).
Seria o ideal que se pudesse designar o juiz criminal como “garantidor de direitos”. Talvez ficasse mais evidente a função estatuída. Para além de se primar pela atuação da defesa, também a razão de ser do julgador é a de justamente se apropriar de todos os fatos que circundam determinado processamento. E assim aplicar a lei segundo o que consta dos autos e com o ideal de que se proferirá o veredito com base em tais elementos, que se aproximarão tanto quanto possível daquela realidade tangível.
Nota-se que o processo é uma abstração. E que, tratando-se de pessoa na condução da persecução penal, há de se estabelecer regras de acesso do acusado ao processamento. As garantias individuais, portanto, não devem ser vistas como nortes taxativos, mas apenas hipóteses exemplificativas a compreender uma gama ainda maior de possibilidades de contra-ataque à imputação, que no decorrer da instrução, sendo identificadas, devem ser aplicadas prontamente pelo juiz. Dada a desproporção de forças entre acusação e acusado, é tarefa imperiosa fornecer à defesa todo o leque de possibilidades que se apresentar e não somente aquelas já previstas a priori e materializadas no ordenamento jurídico.
A existência e eficácia das garantias individuais visam minimizar o sofrimento humano da punição e da própria persecução criminal, como conceito já imortalizado por Carnelutti: “Infelizmente a justiça humana é feita assim, que nem tanto faz sofrer os homens porque são culpados quanto para saber se são culpados ou inocentes”.(3)
Por tais razões, há de lembrar que um julgamento no âmbito criminal nunca deve ser motivo de regozijo e sim de pesar. Há de ser tratado como um funeral. De um lado se tem o luto por valores que podem ter sido conspurcados pelos acusados e que causam inegável sofrimento a eventuais vítimas. E, de outro, existe sempre a possibilidade de o Estado-juiz, imbuído da missão de aclarar os fatos, proferir um decreto condenatório com a respectiva privação da liberdade de um cidadão. Aqui se tem outro luto. Afinal, uma condenação representa sempre uma fissura na malha social, um trauma, um desenlace, não apenas ao acusado, mas a todos que são atingidos pela aflição decorrente da condenação, do cumprimento corporal de uma pena, da perda da liberdade. Espetáculo do horror que a (in)evolução humana ainda não foi capaz de transcender.
Portanto, é um acontecimento muito sério, que tem inegável repercussão na vida daquele que foi alvo da criminalização, de sua família, como também no sistema de justiça criminal e na sociedade.
E foi nesse clima de regozijo que se deu o julgamento da Ação Penal 470. Transmitido em rede nacional, o julgamento se passou em clima de final de campeonato, como se fosse possível tirar dali algum vencedor. Ledo engano. Não há vitoriosos, apenas derrotados. A sociedade está a testemunhar o inevitável resultado que se encerra em diversos decretos condenatórios: apenas feridas e não reparações.
E no mais, embora a publicidade de um julgamento seja sempre uma homenagem à transparência e tenha como escopo um almejado controle de que os valores consagrados na Constituição Federal serão observados, é manifesto que em algumas circunstâncias a sua espetacularização e a denominada publicidade opressiva podem abalar a serenidade que deve nortear a realização do provimento jurisdicional.
A advogada Flavia Rahal discorre sobre os efeitos nefastos do excesso de publicidade no processo penal: “O processo penal por si só tem o peso da infâmia para aquele que sofre e, ainda, para a própria vítima. Por outro lado, o Estado na persecução dos fins punitivos exerce a atividade investigatória que leva quase que automaticamente a uma violação da vida privada do indivíduo. A superexposição do processo pela mídia é fermento para essas duas circunstâncias: acrescenta ainda mais infâmia ao fato e torna a invasão da vida privada ainda mais profunda (...)”.(4)
Estabelecida a premissa de que o julgamento é um ato de desfecho traumático para todos os envolvidos, o que se anseia é que as garantias já previstas, e outras surgidas contemporaneamente aos acontecimentos, sejam respeitadas. Isso para que haja uma tentativa, ainda aquém do ideal, de reduzir os danos do processo, de buscar civilizar o ritual da punição.
Pois bem. Ao longo dos vários dias de julgamento estiveram os Ministros do STF na posição de garante dos direitos individuais. Mas não se pode deixar de apontar destemperanças que não poderiam ter ocorrido, pois deslegitimam a proclamação de resultado, por se ter assistido atropelos ao rito procedimental, ao cerimonial garantidor.
Testemunhou-se em rede nacional o indeferimento de questão de ordem levantada por advogado da tribuna da defesa. Mas não se negou a questão de ordem, propriamente. Afastou-se a possibilidade de se formulá-la.
Talvez o paradigma que permeou a razão de decidir tenha sido a pressa. Frise-se, pressa e jamais celeridade. Esqueceu-se, contudo, que a justiça deve e tem a prerrogativa de caminhar soberana e a seu tempo. E não na velocidade dos meios de comunicação, ou para alimentar a ansiedade da “opinião pública”.
Houve ainda o repúdio novamente à fala da defesa, que sustentou serem os fatos que se colocavam a julgamento próprios a uma figura penal e não a outra, ambas ilícitas e reprováveis, por óbvio. Mas, tratou-se de interpretar a sustentação do advogado como se fosse uma afronta à ordem constituída, ou como se a Corte Constitucional, e naquela ocasião, o juiz de conhecimento, não pudesse ouvir tal heresia: a confissão de um ato ilícito.
O juiz da causa é o responsável para que a justiça se realize de forma a se distanciar das sensações preconcebidas. Realiza o papel de aglutinador do saber de tudo o quanto paira acerca do fato considerado criminoso. E não é um ser imaculado que não possa ser exposto às mazelas da natureza humana. A demonização do debate de teses e não a sua apreciação serena e técnica, tornam o julgamento um espetáculo não pretendido, algo tenebroso para as gerações vindouras. É notório que tal manifestação configurou inegável afronta ao sagrado direito de defesa que não pode sofrer qualquer restrição.
No desenrolar do julgamento, debochou-se ainda de advogado que pleiteou que o voto proferido por um julgador acerca da fixação da pena, àquela altura já fora da Corte, fosse lido antes do pronunciamento dos demais Ministros, pois aquele já declarado atribuía a pena mínima aos delitos em questão. Em razão desse pleito, acatado, é bem verdade, argumentou-se entre risos no Plenário que no caso de a referida tese, já adiantada, ser acolhida, ocorreria a prescrição. Entretanto, sabe-se que os critérios para a fixação da pena são os do art. 59 do Código Penal e não do art. 109 e seguintes do mesmo diploma legal.
O mau uso do Direito vai se espraiando e permitindo a subversão de institutos basilares num Estado Democrático, como se referida tarefa representasse uma militância em favor do “bem”. Essas distorções havidas em busca do inimigo público eleito, apenas faz evidenciar nefasta flexibilização na distribuição da justiça a conspurcar o atual patamar da democracia a duras penas alcançado.
Por fim, também se ouviu dos microfones do STF que réu se trata como réu. Há de se bem interpretar essa passagem, pois não é possível entender como se trata um réu, senão como cidadão.
Desenrolou-se o julgamento e matérias foram decididas a transmitir para a jurisprudência pátria novas plagas teóricas. De qualquer forma, não foram exatamente essas as preocupações que pautaram os meios de comunicação, mas sim o destino dos personagens.
Vislumbra-se um futuro nebuloso e incerto. Isso porque o STF é o guardião da Constituição Federal e a sua história tem provado que muitas vezes é naquela mais alta Corte, apenas, que ilegalidades manifestas são rechaçadas. Mas com situações como as que acima foram expostas e assistidas por todos em rede nacional de televisão, resta aguardar como se posicionará o Judiciário em âmbito nacional diante de causas criminais, processos sensíveis a preconceito, ódio e desconstrução do início ao fim.
Notas:
(1) Prefácio à 1.ª edição da obra: Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2004. p. 22.
(2) STF, Pleno, Rel. Min. Eros Grau, j. 06.11.2008.
(3) As misérias do processo penal. Trad. José Antônio Cardinalli. 7. ed. Campinas: Bookseller, 2006. p. 47.
(4) Publicidade no processo penal: a mídia e o processo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 47, p. 270, São Paulo: RT, mar. 2004.
Marina Dias
Presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD.
Advogada.
Hugo Leonardo
Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD.
Advogado.
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