Rogério Fernando Taffarello
Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho, Matheus Silveira Pupo e Rafael Lira.
Autor: Renato de Mello Jorge Silveira
Das muitas questões emblemáticas tratadas na AP 470, conhecida como julgamento do mensalão, a relativa ao crime de formação de quadrilha ou bando é de destaque inegável. A confusão posta entre a tradicional e conhecida figura típica com a vulgarmente mencionada ideia de organização criminosa, bem como a adequação atual de um crime contra a paz pública, justificaram condenações e, por certo, serão revisitadas, em um ou outro sentido, em momento próximo futuro, até mesmo porque esse já é tema de recorrente retorno no próprio campo penal econômico.
A quadrilha ou bando pode ter o enquadramento visto recentemente no Supremo Tribunal Federal? Limitar-se-ia ela ao “crime do morro”, como destacado em um dos muitos acalorados debates? A quadrilha ou bando tem o mesmo objeto que a chamada organização criminosa? Essas as questões de debate.
Silva Sánchez, com rigor característico, recorda que, fundamentalmente, são três as formas de tratamento da criminalidade organizada: pela tipificação de organização; mediante a introdução de um elemento agravante pela organização; ou, ainda, consoante os clássicos tipos de crimes associativos(1) (vistos, no Brasil, conforme o crime de formação de quadrilha ou bando). Aqui, a pista resolutiva para a confusão posta no caso em exame. O Ministério Público Federal tratou do fenômeno de uma organização criminosa e traçou, assim, a acusação por formação de quadrilha ou bando.
O crime de formação de quadrilha ou bando, previsto no art. 288 do Código Penal, tem história longa e diz respeito à determinada feição de criminalidade corriqueira do início do século passado.(2) Inserindo-se no capítulo “Dos Crimes Contra a Paz Pública”, criminaliza a conduta de associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes. A dúvida inicial versa, pois, sobre os limites dessa imputação.
Pretendendo proteger, como bem jurídico, a paz pública, tem, como requisito fundamental à sua existência, a presença de, no mínimo, quatro agentes que, em associação, destinam-se à prática de crimes.(3) Esse ponto, destacado no julgamento por alguns magistrados, foi objetado em determinado momento sob a alegação de que, sob essa óptica, somente haveria, em dias de hoje, quadrilha ou bando em regiões de conflito. Essa colocação merece alguns reparos.
A quadrilha ou bando há de se mostrar como uma ideia “associativa”, vale dizer, não esporádica. É necessário ter-se, por presente, a estabilidade desse “ajuntamento”, pois, dotado ele de uma voluntas sceleris, pode abalar, de fato, a paz pública almejada.(4) Derradeiramente, afirmam os clássicos, deve-se ter por objetivo a prática de crimes. Essa ideia se refere, justamente, ao bem jurídico protegido – paz pública –, bem como à própria “associação” ilícita.(5)
Isso em tudo se diferencia da noção de organização criminosa. Tal construção tem lastro em aspectos criminológicos. Aí, o problema. Ao simplesmente misturar conceitos criminológicos e dogmáticos, sem pretender idealmente defini-los, aclara-se a confusão e dificuldade de esclarecimento, principalmente quando se verifica uma inconsistência do próprio paradigma mafioso, como menciona Zaffaroni.(6) Não se nega o fenômeno, mas seu acoplamento penal mostra-se extremamente complexo, senão contraditório.
A relação entre o crime de formação de quadrilha ou bando com a questão penal do crime organizado não se explica unicamente por uma proximidade semântica, ou pelo fato de, no Brasil, não haver definição típica do que viria a ser crime organizado. Na verdade, ela foi sedimentada por inesperadas reformas e contrarreformas legislativas. No cenário normativo brasileiro, fez-se primeira menção à organização criminosa na Lei 9.034/1995, a qual dispunha sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas.
O problema se coloca pois, sua redação original, previa certa confusão entre organização criminosa e as ações praticadas por quadrilha ou bando. A distinção se deu com a reforma dessa norma produzida pela Lei 10.217/2001 que claramente isolou previsões de quadrilha ou bando, associações criminosas e organizações criminosas. Isso não trazia grandes problemas, já que, até aquele momento, penalmente não havia a previsão conceitual de organizações criminosas. No entanto, tudo mudou com o advento da Lei 9.613/1998. Ao utilizar o conceito de crime antecedente, e ao mencionar um rol destes, em seu art. 1.º, a Lei de Lavagem de Dinheiro previu como crime a ocultação de dinheiro proveniente de crime “praticado por organização criminosa” (Lei 9.613/1998, art. 1.º, VII). Apesar da menção à organização criminosa, esta não era idealmente definida. Hoje, apesar desse problema se mostrar minorado, em face da alteração do art. 1.º da Lei 9.613/1998, pela Lei 12.683/2012, ainda resta a confusão terminológica, tendo-se, não raro, a imputação de um fato na confluência de outro.
Por tempos, afirmou-se, ainda, pela presença da ideia de organização criminosa no ordenamento nacional. Pontuou-se que a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional – Convenção de Palermo, trazida à realidade normativa brasileira pelo Decreto 5.015/2004, instituiu a definição de crime organizado. Em seu art. 2, a, verifica-se a definição de grupo criminoso organizado. Observe-se, no entanto, que a Convenção de Palermo é unicamente propositiva, assumindo, para seus únicos fins, determinados conceitos. A utilização da Convenção com objetivo de aperfeiçoamento da organização criminosa foi, de fato, totalmente rejeitada, em sede do próprio Supremo Tribunal Federal, pelo HC 96.007/SP, e, ao depois, na própria AP 470.
É de ver, ainda, que, recentemente, foi promulgada a Lei 12.694/2012, a qual, apesar de dar definição ao que seria organização criminosa, ainda não tipifica a matéria. Ela dá, contudo, prova da necessidade de distinção entre a quadrilha tradicional e a organização criminosa. Uma tem por base o abalo à paz pública, em visão de criminalidade tradicional. A outra, busca o rompimento com problema da modernidade. Visando a primeira sorte de casos, instituiu-se, não sem críticas, até mesmo a Lei 12.720/2012, que criminaliza a constituição de milícia armada (art. 288-A do Código Penal). Quanto ao segundo grupo, ainda não existe definição típica adequada, claudicando tenazmente a legislação nacional nesse jaez. O Ministério Público Federal tratou a matéria como se os elementos fossem sinônimos, e não o são. De um lado, reconheceu-se a não existência de crime de organização criminosa, e, de outro, utilizou-se de seu esquadro como se quadrilha ou bando fosse.
A preocupação é de caráter mundial, não limitada somente ao Brasil. Baseando-se nos termos definidos em convenções internacionais, e com proximidades ao modelo anglo-saxão da conspiracy, intentou-se internacionalmente um conceito para além do tradicional engessamento da quadrilha ou bando, ancorado que é na questão da paz pública. Hoje, discute-se a formatação de novos tipos com proteção de outros bens jurídicos, como a ordem pública, segurança do cidadão ou mesmo segurança pública.(7) Como anota Faraldo Cabana, os clássicos modelos típicos são absolutamente deficientes para o combate à realidade hodierna.(8) Inadmissível, contudo, é a tentativa de adequação claudicante, ao menos desde um ponto de vista de lastro no bem jurídico, da tradicional disposição de quadrilha ou bando para questões diversas, definidas genericamente como organizações criminosas. Até que isso se dê, a ideia de formação de quadrilha se limita, sim, não somente ao crime das ruas e outros assemelhados, mas àqueles que agridem a paz pública. Não necessariamente à situação de criminalidade econômica ou a casos similares aos tratados na AP 470, em que resta dúvida sobre esse ponto.(9)
Notas:
(1) Silva Sánchez, Jesús-María. La “intervención a través de organización”, ¿uma forma moderna de participación en el delito? In: Cancio Meliá, Manuel; Silva Sánchez, Jesús-María. Delitos de organización. Montevideo: BdeF, 2008. p. 87 e ss.
(2) Cf. Pitombo, Antônio Sérgio Altieri de Moraes. Organização criminosa. Nova perspectiva do tipo legal. São Paulo: RT, 2009. p. 55 e ss.
(3) Como bem coloca Hungria, “a delinqüência associada ou de grupo fêz-se, na atualidade, um alarmante fenômeno de hostilidade contra a ordem jurídico-penal. Certos indivíduos que, por circunstâncias múltiplas, notadamente por influência de um ambiente criminógeno, a agravar-lhes a inconformação com a própria incapacidade de êxito pelos meios honestos, coligam-se como militantes inimigos da sociedade, formando entre si estáveis associações para o crime, entregando-se, pelo encorajamento e auxílio recíprocos, a tôdas as audácias e a todos os riscos. É o banditismo organizado. Seus componentes, chefes ou gregários, íncubos ou súcubos, são, via de regra, homens sem fé nem lei, que não conhecem outra moral além dos aberrantes ‘pontos de honra’ com que requintam a solidariedade para o malefício” (Hungria, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958. v. 9, p. 175).
(4) Afinal, como se sabe, o “elemento subjetivo do crime é a vontade de associar-se (ou participar de associação já existente) com o fim de cometer crimes (dolo específico)” (Hungria, Nélson. Op. cit., p. 179).
(5) Cf. Estelitta, Heloisa; Greco, Luís. Empresa, quadrilha (art. 288 do CP) e organização criminosa). RBCCrim 91/398 e ss.
(6) Zaffaroni, Eugenio Raúl. Il crimine organizzato: una categorizzazione fallita. In: Moccia, Sergio. Criminalità organizzata e risposte ordinamentali. Napoli: Edizioni Scientifiche, 1999. p. 73 e ss.
(7) Cf. Faraldo Cabana, Patricia. Asociaciones ilíicitas y organizaciones criminales en el Código Penal español. Valencia: Tirant lo Blanch, 2012. p. 206 e ss.; Cancio Meliá, Manuel. El injusto de los delitos de organización: peligro y significado. In: Cancio Meliá, Manuel; Silva Sánchez, Jesús-María. Delitos de organización. Montevideo: BdeF, 2008. p. 42 e ss.
(8) Faraldo Cabana, Patricia. Op. cit., p. 379.
(9) Cf., sobre o tema, posições variadas, analisando jurisprudências limitando a incidência do crime de quadrilha ou bando para questões econômicas, Estelitta, Heloisa; Greco, Luís. Op. cit., p. 405 e ss.; Reale Jr., Miguel. Quadrilha ou bando. In: _______ (coord.). Direito penal. Jurisprudência em debate. Rio de Janeiro: GZ, 2012. v. 3, p. 197 e ss.
Renato de Mello Jorge Silveira
Professor Titular da Faculdade de Direito da USP.
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