Rogério Fernando Taffarello
Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho, Matheus Silveira Pupo e Rafael Lira.
Autor: Gustavo Badaró
Entre tantas polêmicas surgidas no julgamento da Ação Penal 470/DF, uma delas diz respeito à própria competência do STF para julgar acusados que não gozam de foro por prerrogativa de função, embora lhes tenham sido atribuídas a prática de crimes conexos com delitos imputados a pessoas que gozam de tal prerrogativa ou tenham agido em concurso de agentes com pessoas sujeitas originariamente à competência do STF.
A questão de ordem suscitada por um dos defensores, antes do início da sessão de julgamento, e as divergências entre relator e revisor demonstraram que a questão tem sido resolvida pelo STF, em outras ações penais de sua competência originária, de forma casuística, aleatória e sem que seja possível extrair qualquer padrão que confira a necessária segurança jurídica sobre a determinação do órgão competente.
Ressalte-se, desde já, que a Súmula 704 do próprio STF não resolve a questão, ao enunciar: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do co-réu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”. O que se extrai de tal preceito sumular é apenas que o julgamento de todos os réus, incluindo os que não gozam de foro por prerrogativa de função, perante o tribunal originariamente competente, não viola as garantais constitucionais enumeradas. Todavia, o preceito não impõe, obrigatoriamente, que sempre deverá haver tal reunião de causas conexas ou com relação de continência.
A garantia do juiz natural, em seu aspecto positivo, significa que toda pessoa tem direito de ser julgada pelo órgão jurisdicional competente fixado por lei. O art. 5.º, inciso LIII, da Constituição, assegura que: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. O juiz natural garantido pela Constituição é aquele que, definido segundo todos os critérios que operam ao longo do processo de concretização de competência, quer fixados pela Constituição, quer por leis federais ou mesmo por leis de organização judiciária, seja o competente para o processo. Ou seja, o juiz natural é o juiz que seja territorial, objetiva e funcionalmente competente. Além disso, as normas que definem o juiz competente devem estabelecer critérios gerais, abstratos e objetivos de determinação de competência, não se admitindo qualquer possibilidade de alteração de tais critérios por atos discricionários de quem quer que seja.
Por outro lado, a necessidade de determinação da competência, como um dos elementos integrantes da garantia do juiz natural, exige, segundo ensina Figueiredo Dias, que para cada fato criminoso concreto seja previsto apenas um único juiz ou tribunal competente.(1) E a lei que define o juiz competente não pode deixar “qualquer discricionariedade ao sujeito encarregado de aplicá-la”.(2)
Com isso estará se assegurando a imparcialidade do julgador, ou melhor, nas palavras de Romboli, haverá certeza de que não se tratará de um juiz escolhido especificamente para aquele processo e, portanto, um juiz que não seja, seguramente, parcial.(3) Em última análise, a garantia do juiz natural assegura a objetividade ou a não manipulação na individualização do juiz.
O direito à certeza, determinação e não manipulação do juiz concretamente competente não é incompatível com os fatores legais de modificação da competência. A conexão e a continência – e neste ponto se coloca a questão do concurso de agentes, quando um deles goza de foro por prerrogativa de função – são compatíveis com a garantia do juiz natural, desde que suas disciplinas legais se fundem em critérios objetivos e claros que definam, sem qualquer margem para escolhas discricionárias: (1) as hipóteses de conexão e continência; (2) o efeito de reunião dos processos ou de suas separações; (3) o órgão competente para o conhecimento dos processos conexos.(4)
Mesmo quando opera um fator de modificação da competência, é necessário que a lei predetermine o juiz constitucionalmente competente. Haverá apenas um processo mais complexo de concretização da competência: o juiz competente para julgar o feito decorrerá da aplicação das regras de determinação de competência, mais as regras de modificação de competência somadas, por fim, às regras legais que definem os critérios de atração. Ainda assim, deverá haver apenas um único juiz competente predeterminado por lei. A competência não poderá ser de um juiz (o decorrente dos critérios de determinação) ou de outro (o decorrente destas regras de determinação, mais as regras de modificação).
Todavia, nos casos de conexão e continência envolvendo acusados com foro por prerrogativa de função, o STF tem escolhido, discricionariamente, se julga ou não todos os acusados, ou se desmembra o processo, julgando só aqueles que exercem funções egrégias.
A raiz do problema está numa amplíssima aplicação da parte final do art. 80 do CPP que permite ao juiz, facultativamente, separar os processos quando “por outro motivo relevante, o juiz reputar conveniente a separação”.(5) A expressão é totalmente aberta, sem qualquer referência segura dos casos em que haverá separação. Prova disso é o comentário feito por Borges da Rosa: “Merece elogios o que estabelece o citado art. 80 do Código, porque mitiga a rigidez dos textos legais concernentes à competência pela conexão e favorece o arbítrio do juiz”.(6) Ora, mitigar a lei e favorecer o arbítrio é aceitar a discricionariedade incompatível com a garantia do juiz natural.
A referência a motivo relevante é desnecessária e ineficaz. Certamente, não iria se cogitar de um motivo irrelevante como autorizador da separação do processo, com a mudança de competência. Aliás, se é irrelevante, com ele sequer deverá se preocupar o juiz. Por outro lado, relevante ou não, o que é um motivo conveniente? Conveniente é aquilo que convém. O que convém exige um complemento, pois deve convir a algo ou alguém. A lei, todavia, não estabelece qualquer delimitação.
Inevitável concluir que, nesse passo, o art. 80 do CPP viola a garantia do juiz natural, como norma formal, a exigir que as hipóteses de fixação e modificação de competência sejam definidas com base em precisos e rigorosos critérios objetivos fixados em lei, não deixando margem a atuações discricionárias.(7)
Volta-se ao caso concreto: o STF considerou não haver motivo relevante para reputar conveniente a separação do processo em questão e julgou tanto os dois deputados federais quanto os outros trinta e seis acusados que não gozavam de foro por prerrogativa de função. Se, porém, entendesse que lhe convinha a separação, julgaria somente os dois deputados federais, remetendo os demais acusados para o primeiro grau de jurisdição. Admitir que um juiz, ainda que se trate do STF, possa, com base em critérios puramente discricionários, escolher se separa ou mantém reunido um processo e, em última análise, definir quem será competente para julgar os acusados significa dar-lhe poder para determinar, ex post factum, quem será o juiz competente. É transformar a garantia do juiz competente predeterminado por lei, em juiz competente pós-determinado discricionariamente.
Urge que o STF defina um critério, claro, seguro e objetivo para tal hipótese, pouco importando qual seja ele. Poderá optar por considerar que sua competência, por ser fixada na Constituição, é de interpretação estrita, não podendo ser alargada por normas infraconstitucionais de conexão e continência e, consequentemente, desmembrar todos os processos, julgando apenas quem goza de foro por prerrogativa de função. Poderá, diversamente, concluir que havendo conexão ou continência, a regra constitucional estará preservada desde que, todos os acusados sejam sempre julgados pelo tribunal originariamente competente. O que não é compatível com a garantia do juiz natural, e gera soluções iníquas, com profunda insegurança para os jurisdicionados, é ora o STF manter o simultaneus processus e julgar todos os acusados, ora separar os processos e julgar apenas quem tem nele a competência originária.
Conclui-se com as palavras de Franco Cordero: a garantia do juiz natural assegura que “entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competência, que exclui qualquer alternativa resolúvel arbitrariamente”.(8) E, em edição posterior da mesma obra, complementa: “ninguém pode escolher o juiz ou sujeitar-se a tal escolha”.(9)
Notas:
(1) Dias, Jorge Figueiredo. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra Ed., 1974. v. 1, p. 329.
(2) Scaparone, Metello. Elementi di procedura penale – i principi costituzionali. Milano: Giuffrè, 1999. p. 55.
(3) Romboli, Roberto. Il giudice naturale. Studi sul significato e la portata del princípio nell’ordinamento costituzionale italiano. Milão: Giuffrè, 1981. p. 132.
(4) Nesse sentido: Nobili, Massimo. Commentario art. 25 comma 1.º. Commentario alla Costituzione a cura di Giuseppe Branca. – arts 24-26, rapporti civili. Roma/Bologna: Zannichelli, 1981, p. 215; Díez, Luis-Alfredo de Diego. El derecho al juez ordinario predeterminado por la ley. Madrid: Tecnos, 1998. p. 159.
(5) Para uma crítica mais profunda, cf.: Badaró, Gustavo Henrique Righi Ivahy. A garantia do juiz natural no processo penal: delimitação do conteúdo e análise em face das regras constitucionais e legais de determinação e modificação de competência no direito processual penal brasileiro. Tese (Livre-docente) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010. p. 403-412.
(6) Comentários ao Código de Processo Penal. 3 ed. São Paulo: RT, 1982. p. 184.
(7) No sentido, na doutrina italiana, em relação à expressão, “in ogni caso in cui ne ritenga la convenienza”, cf. Romboli, Il giudice naturale ... cit., p. 181.
(8) Procedura penale. Milano: Giuffrè, 1966. p. 128-129.
(9) Procedura penale. 5 ed. Milano: Giuffrè, 2000. p. 111.
Gustavo Badaró
Livre-docente, Doutor e Mestre em Direito Processual Penal pela USP.
Professor Associado do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da USP.
Advogado
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