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Boletim - Ed. Especial Drogas


Direito penal. Princípio da autonomia de vontade. Princípio da proporcionalidade. Constitucionalidade da criminalização do uso ou do porte para uso próprio. *

Tribunal Constitucional Federal Alemão BVerfGE 90, 145 j. 09.03.1993

Submeteu-se à Corte procedimento para se declarar se as disposições penais da Lei de Substâncias Entorpecentes alemã (Lei de 28 de julho de 1981 e posteriores alterações) seria compatível com a Constituição, especificamente em relação às penas de prisão para as várias formas de transação ilegal envolvendo produtos canabinoides.

Questionava-se se qualquer negociação dependeria de uma autorização oficial, o que distinguiria a transação legal da ilegal. Como a lista das drogas vedadas à comercialização contempla Cannabis em folhas, sementes, resina ou na forma concentrada, exceto se tal substância se destinar para fins de produção de cânhamo ou para pesquisa, desde que voltada ao interesse social, foi questionada a proporcionalidade em razão da nãoincriminação de outras drogas igualmente deletérias, como o álcool e o tabaco, e a proporcionalidade na imposição da sanção criminal.

A constitucionalidade das normas penais da Lei de Substâncias Entorpecentes foi confrontada com o artigo 2º, parágrafo 1º, da Constituição;(1) a constitucionalidade da previsão da aplicação da pena prisão com o art. 2º, parágrafo 2º, alínea 2, da Constituição;(2) e a constitucionalidade da diferença no tratamento de substâncias entorpecentes diversas em face do art. 3º, parágrafo 1º, da Constituição.(3)

O art. 2º, parágrafo 1º, da Constituição protege toda forma de atividade humana sem levar em consideração sua influência para o desenvolvimento individual. Entretanto, apenas a essência, o núcleo, do direito de determinar o curso da vida de cada um recebe a proteção absoluta, restando fora da interferência da autoridade pública. O trato com as drogas e, em particular, o ato de voluntariamente intoxicar-se, não poderia ser reconhecido como parte deste núcleo absoluto em razão das diversas consequências, diretas e indiretas, à sociedade. Fora deste núcleo duro, o direito de liberdade de ação é garantido apenas dentro dos estreitos limites da parte final da norma do artigo 2º, parágrafo 1º, da Constituição, isto é, desde que não violem direitos de terceiros. Sendo assim, inexiste um “direito de se intoxicar”, o que não significa, por outro lado, que a conduta mereça uma reprimenda penal.

Com relação ao conteúdo das limitações, o princípio da proporcionalidade é, na falta de uma garantia constitucional explícita, uma ferramenta para se determinar o limite que pode sofrer o direito à liberdade. Este princípio fundamental adquire ainda maior significância na seara penal, uma vez que, neste campo, o descumprimento da norma leva à sanção mais severa prevista ao Estado: a restrição da liberdade de locomoção.

Se a prisão é uma pena cominada pela norma, então a lei estaria autorizando a infração a um direito fundamental, a liberdade individual, que é garantida pela Constituição. A liberdade individual, que se quer inviolável, é um bem jurídico de tamanha importância que somente será imposta pela autoridade competente se houver razões particularmente gravosas para tanto, conforme preceitua a norma do art. 2º, par. 2º, alínea 3. Deixando de lado o fato de que estas intervenções podem atuar em certas circunstâncias quando visam evitar que a pessoa afetada cause a si sérios danos, as restrições são geralmente admissíveis se a proteção aos outros ou ao interesse público os requisitar, depois de terem levado em conta o princípio da proporcionalidade.

De acordo com este princípio, uma lei que limite direitos fundamentais deve ser adequada para atingir o propósito ao qual se dirige e ser necessária para tanto. Uma lei é adequada quando, com seu auxílio, o resultado almejado pode ser obtido; e é necessária quando o legislador não possa escolher outro meio igualmente eficiente e menos gravoso aos direitos fundamentais, ou não tenha podido eleger nenhum outro meio, qualquer que seja ele.

Nas diversas revisões da Lei e ao aderir à Convenção de Substâncias Entorpecentes de 1988, o legislador repetidas vezes reconsiderou sua visão e reafirmou que, para atingir os fins previstos na Lei, seria necessária a proibição do comércio ilegal de Cannabis por meio da cominação de penas restritivas da liberdade, sendo que este posicionamento não seria inadequado de um ponto de vista constitucional. O entendimento do legislador de que não há outro meio menos intrusivo além da pena criminal a atingir eficazmente os objetivos da Lei é arguível, não sendo uma resposta satisfatória o argumento de que a proibição de produtos canabinoides até a presente data não foi capaz de atingir os objetivos da Lei e que a liberação da comercialização de Cannabis seria um meio menos gravoso e com melhores chances de atingir este objetivo. A discussão sobre política de drogas como resposta à redução do consumo da Cannabis pode ser eficazmente atingida por meio do efeito geral-preventivo da norma penal, ou acreditar esperançosamente que a liberação da Cannabis levaria a uma separação dos mercados pelos variados tipos de drogas e diminuiria a criminalidade organizada.

Como não há informação de base científica indicando firmemente qual é a visão mais correta, e as convenções internacionais às quais a República Federal da Alemanha aderiu determinam o uso de medidas penais no combate ao abuso e ao tráfico ilegal de drogas, caminho este que vem sendo seguido.

Levando em conta o estado atual do desenvolvimento do Direito, é impossível saber se é possível separar o mercado de drogas no contexto internacional pela descriminalização dos produtos da Cannabis ou se esta ação teria, ao contrário, o efeito de tornar a Alemanha um novo centro do tráfico internacional de drogas. É igualmente incerto que a redução do consumo de Cannabis seria alcançado pela remoção da “atração pelo ilícito” ou pela instituição de campanhas de informação dos efeitos deletérios do uso de tal substância. Nestas circunstâncias, se o legislador permanecer com a visão de que uma proibição generalizada da droga apoiada em penas criminais desencorajará usuários potenciais, fazendo com que esta sanção se torne adequada e necessária para a proteção dos interesses legais, este posicionamento deve ser aceito do ponto de vista constitucional. Ao fazer-se a escolha entre os diversos métodos potencialmente adequados de atingir o objetivo, o legislador tem a prerrogativa de formar sua opinião e adotar uma decisão.

O próximo passo seria o de decidir se as sanções penais da Lei que foram apresentadas à revisão constitucional correspondem aos requerimentos de proporcionalidade em sentido estrito. Ao realizar tal juízo, é necessário distinguir entre a proibição geral de comércio de produtos derivados da Cannabis e sua aplicação mediante a aplicação de pena privativa de liberdade para os vários tipos de infrações. O posicionamento adotado pelo legislador, de uma proibição abrangente de todos os produtos, sujeito a pequenas e estritas exceções, não é em si uma violação do princípio da proporcionalidade. É justificado pelos objetivos pretendidos a se atingir, quais sejam, a proteção da população, especialmente os jovens, dos riscos à saúde decorrentes da droga e do perigo de dependência psicológica, e, sobretudo, em face das organizações criminais que controlam o mercado e o prejuízo que elas causam ao bem público. Sendo que tais interesses públicos não são contrabalançados por outros interesses de peso equivalente em favor da descriminalização do comércio de drogas.

Contudo, com uma legislação de significação tão ampla, que abarca um largo espectro de comportamentos, há de se sopesar a diferença com relação à natureza e à extensão do perigo aos quais foram submetidos os interesses tutelados. O mesmo se aplica ao âmbito de reprovação e culpabilidade individuais. Dependendo das características e efeitos da droga, a quantidade envolvida no caso específico, a natureza da infração relevante, e todos os outros fatos de relevo, o perigo ao qual foi exposto o bem jurídico tutelado pode ser tão leve que as considerações da prevenção geral que fundamentam a sanção penal perderiam sua força. Nesses casos, em razão do direito do indivíduo à liberdade, a culpa individual do réu e as considerações relacionadas à política criminal, que tem por objetivo a prevenção, a sanção criminal seria desproporcional e, portanto, inconstitucional.

As considerações deste tópico não são excluídas apenas por causa da significação geral da legislação, ou seja, a ideia de submeter o comércio ilegal de Cannabis às penas criminais deve ser vista como um meio adequado e necessário de assegurar a proteção dos interesses resguardados pela norma. É precisamente o propósito de um outro passo no teste da proporcionalidade, o de sujeitar as medidas que tem sido vistas como adequadas e necessárias ao dito objetivo a mais uma avaliação. Esta avaliação requer a consideração de que se os meios que têm sido empregados são, de um ponto de vista do indivíduo afetado, ainda proporcionais em relação à proteção de interesses legais que podem ser atingidos pelas mesmas medidas.

Tal relação deve ser analisada com os devidos cuidados, pois pode levar a uma limitação dos direitos e garantias fundamentais. A ideia de proporcionalidade pode resultar na conclusão de que os meios necessários e adequados para proteger o interesse coletivo, poderiam não ser aplicados se resultassem em violações aos direitos e garantias fundamentais. Sendo assim, em determinadas circunstâncias, como no porte de quantidade ínfimas da droga,(4) a proteção dos interesses tutelados pode ser colocada em segundo plano, dando-se prevalência aos direitos do indivíduo.

Ainda, entendeu-se que o princípio da igualdade não determina que as substâncias entorpecentes recebam tratamento (absolutamente) igual no âmbito penal. Assim, drogas como o álcool e o tabaco, apesar de seus efeitos negativos, podem ser consideradas lícitas, enquanto outras, como a Cannabis, ilícitas. Para tanto, deve-se ter em conta a finalidade da utilização da substância e a significação que a sociedade faz deste uso, entre outros fatores relevantes, inclusive os acordos e tratados celebrados no âmbito comunitário e internacional.

Uma pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde em 1990 identificou que 56,7% dos usuários de Cannabis disseram ter usado a droga entre uma e cinco vezes nos últimos doze meses. Outro estudo do Ministério Público revelou que 80 a 90% dos casos penais arquivados refere-se a usuários de pequenas quantidades de Cannabis para uso pessoal. Em vista de fatores como estes, a contribuição individual do consumidor de pequenas quantidades de Cannabis à consumação do perigo que a proibição do comércio pretende extirpar é limitada. Se o oferecimento ou posse de produtos canabinoides é limitado a pequenas quantidades para uso pessoal ocasional, então, como regra geral, o perigo concreto que a droga seja passada a um terceiro não é muito significativo. O interesse público na imposição da pena é, por isso, limitado e a imposição de sanções criminais àqueles que estão apenas fornecendo ocasionalmente a droga ou consumindo pode levar a um resultado que é desproporcional no seu efeito ao violador da norma.

A decisão examina os diversos dispositivos da Lei, e, em síntese, disciplina que: a) a criminalização do tráfico de produtos derivados da Cannabis não ofende o princípio da proporcionalidade, especialmente em razão do interesse na proteção dos indivíduos de seus efeitos deletérios; b) o porte de quantias substanciosas (maiores de 7,5g) de substâncias que contenham o efeito ativo THC, presente da Cannabis, pode ser considerado crime; c) a contrario sensu, que o porte de uma quantidade pequena de substância com o princípio ativo

(até 7,5 g de THC) não deve ser considerado crime(5) e d) a incriminação de determinadas substância (v.g., Cannabis) entorpecentes em detrimento de outras, consideradas legais, não viola o princípio da igualdade.

Notas:

(*) Tradução livre e resumo por Priscila Akemi Beltrame, mestre em Direitos Humanos pela USP, doutoranda em Direito Penal pela USP e advogada; Matheus H. Falivene dos Santos, doutorando em Direito pela USP e advogado.

(1)  Artigo 2º. [Direitos de liberdade]:(1) Todos têm o direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, desde que não violem os direitos de outros e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral.

(2) (...) (2)Todos têm o direito à vida e à integridade física. A liberdade da pessoa é inviolável. Estes direitos só podem ser restringidos em virtude de lei.

(3) Artigo 3º. [Igualdade perante a lei]: (1) Todos são iguais perante a lei. (...)

(4) O Tribunal considerou como quantidade “constitucionalmente adequada” o porte de até 7,5g da substância THC (Tetrahydrocannabinol), princípio ativo encontrado na Cannabis.

(5) As instâncias judiciárias inferiores não ficam obrigadas a respeitar este limite, por expressa determinação do acórdão.



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