A war on drugs fracassou miseravelmente: apesar da repressão sem quartel a certas substâncias nos últimos cem anos, as drogas ilegais nunca foram tão abundantes, baratas e acessíveis.
Além de não reduzir demanda e oferta de drogas ilegais, o proibicionismo causou inúmeros males, entre os quais encarceramento em massa, violência – ínsita ao modelo bélico – e corrupção.
A despeito de sua “implementação deficitária”, é dizer, da fracassada tentativa de resolver a questão mediante o emprego intensivo de recursos econômicos e jurídicos, o Direito Penal das drogas passou a influenciar decisivamente a intervenção punitiva: elevação das penas, sobrecarga do sistema de justiça criminal, métodos invasivos de investigação (delação premiada, infiltração de agentes, observação policial), antecipação prospectiva da punibilidade (compreensão abrangente de todas as possibilidades imaginárias de conduta de modo a alcançar todo e qualquer “impulso para a ação”), cooperação internacional, repressão à criminalidade organizada e ao lucro obtido com o delito por meio da incriminação da lavagem de dinheiro, enfim, “é dele que promanam o enrijecimento, a desformalização e a erosão dos princípios” do “moderno Direito Penal orientado para a intervenção”.(1)
Em todo o mundo se discute qual o modelo adequado para uma política de drogas justa, humana e eficiente. Questiona-se: a política de drogas deve ser criminal? Tratando-se o uso de substâncias psicoativas de uma espécie de tradição ancestral do ser humano, existindo, desde a noite dos tempos, essa relação entre pessoas e meios de alteração da consciência ordinária, havendo, enfim, uma constante antropológica no ímpeto para a droga e na compulsão para a intoxicação,(2) por que certas drogas – como álcool, tabaco e fármacos – são culturalmente aceitas, enquanto outras são proibidas?
A alternativa à proibição mais em voga na atualidade é a não incriminação do porte e uso não problemático de pequenas quantidades legalmente definidas de algumas drogas, especialmente a cannabis, modelo adotado, em maior ou menor grau, por diversos países europeus (Holanda, Portugal, Espanha, República Tcheca, Alemanha e Itália).
Nos EUA, o uso medicinal de cannabis é regulado por lei em 17 estados – em dez deles, a ideia surgiu por iniciativa popular. Em 2011, plebiscito no estado da Califórnia a respeito da legalização da maconha rejeitou a proposta, apesar dos 46% de votos a favor. Em novembro deste ano, mais três plebiscitos serão realizados a respeito, no Colorado, em Washington e no Oregon.
Às vésperas da Cúpula das Américas, em 2012, o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, anfitrião do encontro, se declarou favorável à legalização da maconha e da cocaína como alternativas para erradicar a violência decorrente da war on drugs. Logo a seguir, os presidentes da Guatemala e El Salvador, Otto Perez e Mauricio Funes conclamaram seus pares a iniciar o debate sobre a regulação do uso e comércio de drogas. A posição do presidente da Bolívia, Evo Morales, egresso do movimento sindical cocalero, já é internacionalmente conhecida.
O presidente uruguaio José Mujica enviou ao Parlamento no início de agosto de 2012 um projeto de lei para descriminalizar a posse de maconha e controlar a produção, distribuição e comercialização da planta.
No Brasil, o Anteprojeto de Código Penal elaborado pela Comissão de Juristas indicados pelo Senado Federal – a despeito dos problemas de forma e conteúdo existentes na proposta – contempla, acertadamente, a abolição do crime de porte de drogas para consumo pessoal.
Em 2009, as Cortes Supremas da Argentina e da Colômbia sufragaram o entendimento de que a lei penal não possui legitimidade para enquadrar o consumo pessoal de drogas como delito, por ausência de ofensividade, tendo em vista que a autolesão não pode, jamais, ser objeto de incriminação.
Bem por isso, é de especial importância o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do Recurso Extraordinário 635.659, da relatoria do Min. Gilmar Mendes, no qual será examinada a
(in)constitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/2006.
Cumprindo sua missão institucional, o IBCCRIM, ao lado da Rede de Justiça Criminal, produziu esta edição especial do Boletim, com resumos dos memoriais dos amici curiae, além de jurisprudência selecionada e artigos de especialistas que não pertencem à área jurídica, de modo a propiciar uma visão verdadeiramente multidisciplinar sobre a matéria.
Desejamos que a perseguição de pessoas com distintas preferências no campo das drogas, a qual, segundo Sebastian Scheerer, “é uma terrível vergonha, um crime, um pecado, além de ser totalmente impróprio em qualquer sociedade civil aberta e livre”,(3) deixe de ser triste realidade para se tornar apenas amarga lembrança.
Notas:
(1) Hassemer, Winfried. Descriminalização dos crimes de drogas. Direito penal. Fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. p. 322/324.
(2) Idem, p. 326 e ss.
(3) Prohibición de las drogas en las sociedades abiertas. Globalización y drogas. Políticas sobre drogas, derechos humanos y reducción de riesgos. Instituto Internacional de Sociología Jurídica de Oñati. Madri: Dykinson, 2003.p. 65 – tradução livre.
IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040