Autor: Alexandra Szafir
Existe hoje na sociedade em geral e mesmo entre alguns membros do Poder Judiciário uma regra não escrita, segundo a qual quem defende a descriminalização das drogas é necessariamente favorável ao seu uso e indiferente aos inegáveis males que elas causam à saúde.
Assim, não raro leem-se nos jornais notícias de juízes que proíbem as chamadas “marchas da maconha” pelo País, ao argumento (a meu ver, francamente obtuso) de que estas constituiriam apologia ou incitação ao crime, quando na verdade, elas apenas pedem a descriminalização. Data venia, Excelências, qualquer cidadão tem direito absoluto e irrevogável de se manifestar por mudanças em qualquer lei que considere injusta! Proibir isso me parece um óbvio cerceamento a um dos pilares fundamentais de um Estado democrático: a duramente conquistada liberdade de expressão.
A mim, pessoalmente, a justificativa da proibição das drogas como “proteção da saúde pública” jamais convenceu, por me parecer paternalista e hipócrita.
Hipócrita porque até hoje ninguém soube me explicar por que algumas drogas são proibidas e outras, como o álcool e o cigarro, não. A despeito dos preconceitos amplamente difundidos, a maconha, por exemplo, embora inegavelmente nociva à saúde, tem efeito calmante e analgésico,(1) ao passo que o álcool, além de potencialmente letal, é uma das grandes causas da violência, doméstica ou fora do lar. E a letalidade do cigarro é indiscutível. Ambos viciam.
E paternalista, porque eu sou maior de idade, pago impostos, e sou perfeitamente capaz de, assim como faço em relação ao álcool e ao cigarro, decidir se quero fazer uso de outras drogas, prejudicando, assim, a minha saúde. Não preciso de um Estado-pai me proibindo. Prefiro que o Estado dedique seu tempo, dinheiro e estrutura criando um sistema de saúde pública decente.
Que fique bem claro: não elogio nem defendo o uso de drogas. Não as uso, se algum leitor estiver porventura curioso. Drogas não são “bacanas”. Fazem mal. Mas defendo, sim, meu direito de escolher se delas vou fazer uso.
Felizmente, hoje já se caminha para a descriminalização do uso de drogas ilícitas. Já há um consenso de que mandar um usuário para trás das grades é tão injusto quanto absurdo. Mas falar em descriminalizar a venda ainda é tabu. Assunto proibido!
Então, pergunto eu: se é pacífico (ou quase) que o usuário não é um criminoso, onde se propõe que ele adquira as drogas que consome? Como se podem conciliar as ideias de que usar não é crime, mas fornecer é? Como pode haver usuários sem que haja fornecedores? Descriminalizar o uso, mas manter a venda como criminosa não será também uma grande hipocrisia?
Antes de prosseguir defendendo um ponto de vista tão impopular, sei que preciso de apoio, para não ser crucificada por ousar defender o que é, para a esmagadora maioria, indefensável. Felizmente, não estou só, tenho esse apoio em ninguém menos que o grande e saudoso Evandro Lins e Silva, o qual, se ainda estivesse entre nós, teria completado 100 anos em 18 de janeiro deste ano. Em entrevista dada à revista Época (edição 231, de 21.10.2002), ele defendia a descriminalização da venda, propondo que as drogas fossem fabricadas pelos laboratórios e vendidas em farmácias.
As vantagens de legalizar a venda, a meu ver, são muitas. Não há espaço aqui para análises aprofundadas, mas em linhas gerais, para fins de iniciar a discussão, são elas:
Para começar, a venda, que continua e sempre vai continuar a existir – não se iludam pensando que a guerra ao tráfico será vencida algum dia – seria tributada. A renda poderia ser usada para investir em campanhas de prevenção e educação (principalmente nas escolas) e na construção de centros públicos de excelência para tratamento dos dependentes químicos, hoje praticamente abandonados pelo Poder Público. Como consequência disso, haveria uma queda da criminalidade associada à dependência. Nos mutirões do projeto “S.O.S. Liberdade”, do IDDD,(2) impressiona a quantidade de dependentes de crack presos por pequenos furtos, os quais, mais que querer a liberdade, imploram por tratamento.(3)
Os vendedores seriam submetidos a um controle que hoje, por razões óbvias, não existe sobre os traficantes. Estaria sujeito a sanções, por exemplo, quem vendesse drogas a menores de idade.
Poderia haver, finalmente, estatísticas confiáveis sobre a real dimensão do consumo, dependência e valor movimentado pela venda de drogas no País. Seria um grande passo no sentido de resolver o problema.
Teriam fim as conhecidas guerras por pontos de tráfico, cujas maiores vítimas são as camadas mais pobres da população. Nas palavras de Evandro Lins e Silva, “a droga só gera violência por ser crime. A Chicago dos gângsteres é um bom exemplo. La, o crime se organizou a partir da Lei que proibia a venda de bebidas alcoólicas. Quando liberou, acabou”.
Os gastos feitos hoje com o aparato policial de combate ao tráfico poderiam se destinar à educação, à capacitação profissional e à geração de empregos. Citando novamente o mestre Evandro, “Combater à força é bobagem. O tráfico se tornou a oportunidade de emprego de muitas pessoas”.
E, finalmente, acabariam situações perversas, como a dos usuários que, não querendo correr o risco de ir diversas vezes às perigosas “bocas”, compram, de uma só vez, quantidades maiores de drogas e, surpreendidos pela polícia, acabam presos e até condenados como se fossem traficantes. Confesso que perdi a conta de casos assim que já vi.
Para aqueles que pensam que a legalização do comércio de drogas aumentaria o consumo, respondo que o proibido é sempre mais atraente, especialmente para os mais jovens. Acabe-se com a mística e a aura de transgressão em torno da droga e a atração fatalmente diminui.
Penso estar mais do que na hora de a descriminalização das drogas
– tanto do uso quanto da venda – deixar de ser “assunto proibido”. Fica a pergunta: afinal, quem lucra com a criminalização? Não me parece que seja a sociedade.
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Descaso: as testemunhas e o compromisso do juiz
Eles tinham sido presos em flagrante pelo suposto tráfico da “expressiva” quantidade de 84 (sim, oitenta e quatro) gramas de maconha. Segundo a acusação, após uma denúncia anônima,(4) policiais do DENARC teriam se dirigido ao local dos fatos. Um deles teria abordado os dois réus e, simulando querer comprar a droga, teria dado a um deles uma nota de dez reais previamente marcada. Ainda segundo a versão acusatória, o outro réu teria se afastado e voltado ao local com uma trouxinha de maconha.
Estava tendo lugar a audiência de instrução, debates e julgamento, numa das salas do Fórum criminal da cidade de São Paulo. Caía um daqueles torrenciais “dilúvios” que costumam castigar (e inundar) a Capital paulista no verão.
As testemunhas de acusação eram os dois policiais do DENARC responsáveis pela prisão. Logo de início, já chamava a atenção (a minha, pelo menos) a empáfia, a postura arrogante dos dois. Riam como se estivessem em uma festa. Nem ruborizaram, tampouco exibiram qualquer expressão de contrição ou embaraço ao responder com um singelo e sonoro “não sei” à pergunta da defesa – pois ao digno magistrado não ocorreu perguntar o óbvio – quanto ao porquê de a tal “nota previamente marcada” não ter sido apreendida e simplesmente não constar dos autos.
Embora admitissem que havia muitas pessoas presentes no momento da prisão (não tinham como negar, pois várias delas estavam do lado de fora da sala de audiência, arroladas pela defesa), alegaram nebulosas “questões de segurança” para não terem chamado ninguém para figurar como testemunha no auto de prisão em flagrante. Como se no banco dos réus estivessem poderosos “barões da cocaína” e não dois acusados de vender trouxinhas de maconha a dez reais cada.
Em tudo e por tudo, a atitude daqueles dois policiais parecia dizer o seguinte: “Eu sou policial e eles são réus. Por definição, a minha palavra tem mais valor que a deles e a das suas testemunhas. Se eu digo que eles são traficantes, a acusação está suficientemente provada. Nada mais é necessário”. Lamentavelmente, no que dizia respeito ao juiz que presidia aquela audiência, eles tinham razão.
As primeiras testemunhas de defesa – presenciais – deram conta de que os fatos tinham se dado de forma muito diferente da narrada pelos policiais. Mas, surpreendentemente, às tantas o juiz me perguntou se as demais testemunhas que aguardavam do lado de fora – as quais, frise-se, tinham sido arroladas no prazo legal e regularmente intimadas – eram também presenciais ou iam se limitar a falar sobre os antecedentes dos réus.
Embora eu soubesse que não tinha obrigação de responder, por uma questão de cortesia, e para facilitar a inquirição delas pelo magistrado – pois, na minha ingenuidade, achei que tinha sido este o motivo da pergunta –, esclareci que as testemunhas restantes eram de antecedentes.
O juiz, então, após pedir que eu desistisse das testemunhas (pedido recusado), comunicou-me que não ia ouvi-las porque tinha um compromisso pessoal para o qual já estava atrasado (motivo que, é claro, não constou do termo de audiência;(5) nele, constou apenas que, segundo o ilustre Magistrado, tratava-se de prova “desnecessária”). Retruquei calmamente que eu também tinha um compromisso – o meu, profissional – do outro lado da cidade, mas que a minha prioridade era a defesa dos réus. Fiz questão de fazer constar no termo que as testemunhas eram de antecedentes, pois, já pensando no habeas corpus que eu iria impetrar, não queria deixar nada dúbio para os desembargadores: queria ganhar honestamente, ver assegurado o direito da defesa de ter as suas testemunhas ouvidas, mesmo que fossem de antecedentes.
De fato, foi o que acabou ocorrendo: em acórdão lavrado pelo Desembargador BORGES PEREIRA, deixou-se assentado que “não cabe ao Magistrado avaliação liminar do que interessa às partes, até porque, mesmo a testemunha de antecedentes poderá trazer valiosas informações para a decisão do processo. (...) Alias, o D. Magistrado que presidiu a audiência apenas soube que se tratava de testemunhas de antecedentes, por informação verbal da própria defesa, que agiu com lealdade ao transmitir a referida informação”.
O processo foi então anulado a partir do indeferimento da oitiva das testemunhas de defesa. Os réus foram soltos por excesso de prazo e as testemunhas, ouvidas.
Ao final, os dois foram absolvidos. Por outro juiz.
Notas:
(1) Seu uso terapêutico em certos casos é legal nos Estados Unidos e lá é praticado em respeitados hospitais.
(2) Instituto de Defesa do Direito de Defesa.
(3) Para os que duvidam, recomendo uma visita ao Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, na Capital paulista.
(4) A famosa e cômoda “denúncia anônima”, a qual, obviamente, nunca passa pelo crivo do contraditório.
(5) Mas tenho testemunhas!
Alexandra Szafir
Advogada.
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