Autor: Emílio Nabas Figueiredo
Em 24 de agosto de 2006, foi publicada a Lei 11.343, que entrou em vigor no dia 8 de outubro de 2006, a vigente “Lei de Drogas”. Nessa lei, além da distinção entre o usuário e o traficante, não mais foi prevista a prisão em flagrante e a pena privativa de liberdade para o usuário e para aquele que cultiva para consumo próprio plantas que fornecem as substâncias psicoativas. Isto é, ocorreu o fenômeno da descarcerização, sem, contudo, acabar com a proibição das substâncias e a coerção criminal sobre as condutas do usuário.
Vale destacar, que no Brasil, todas as leis que versaram sobre proibição de drogas antes da vigente foram criadas em períodos ditatoriais, em que as liberdades e garantias individuais eram flagrantemente violadas pelos agentes do Estado, e, mesmo com certa evolução legislativa, o modelo de violenta repressão às condutas do usuário e às substâncias foi continuado.
Nesta guerra às drogas, o Estado e a sociedade ficam com ônus, e isso é ainda mais notório no Brasil, onde há ineficiência estatal, que invade a intimidade de indivíduos inocentes e entrega o monopólio de um mercado de fato a pessoas que cresceram à margem da sociedade consideradas o inimigo combatido pelo braço bélico.
O paradoxo é evidente. Sob o argumento de proteger a Saúde Pública o Estado adota uma Política sobre Drogas proibicionista, baseada no Direito Penal, potencializando o dano à saúde coletiva, com evidentes efeitos colaterais na sociedade, onde a opção pela repressão, ao invés da regulamentação, estimula a situação de risco de certos grupos sociais ao somar os efeitos das drogas aos efeitos da proibição.
Essa contradição da política pública mais preocupa em relação aos jovens, os vulneráveis à publicidade grátis da proibição. A política de drogas vigente acaba por ter um nefasto efeito contrário, pois o tabu do assunto drogas funciona como um chamariz, um verdadeiro fomento ao nitimur in vetitum juvenil, claramente decorrente de avisos alarmistas e obscuros que inibem o diálogo, criam desinformação e conduzem os jovens a experimentar as substâncias proibidas.
Quando o jovem se relaciona com as substâncias proscritas, e isso não é difícil diante de um comércio informal tão ostensivo e desregulado, ele tem contato com riscos que envolvem os aspectos farmacológicos das drogas, e os riscos que envolvem a proibição, como o preconceito social, o abuso de autoridades e o contato com o mercado de tantas substâncias sem qualquer controle eficaz.
Para melhor proteger a juventude e gerações futuras, além de garantir o respeito aos direitos individuais de adultos, urge a necessidade de uma mudança na forma do Estado lidar com a questão individual e social do uso de substâncias psicoativas ilícitas, passando da proibição para a regulamentação extra-penal, de modo a fomentar a prevenção somada à redução de danos.
Tradicionalmente, a substância proibida mais consumida é a maconha, sendo o primeiro passo, em muitas vezes o único, dos jovens na ilicitude. Destarte, descriminalizando o uso da cânabis e regulamentando sua produção e o acesso seguro estará o Estado próximo daqueles que consomem e, ao mesmo tempo, os afasta da máfia que explora o mercado das drogas proibidas.
Devendo ainda ser considerado que de todos os vegetais proibidos pelo ordenamento jurídico, o único que há possibilidade, no Brasil, de ser cultivado para consumo próprio é a cânabis. E, com toda repressão criminal, sempre existiram indivíduos que praticaram a conduta de cultivar para si a erva em suas hortas, varandas ou mesmo dentro de armários.
Assim, ao elaborar a política pública sobre a cânabis, o Estado deve atentar para esse grupo social existente no Brasil, qual seja o dos cultivadores domésticos para uso próprio, aqueles que hoje são enquadrados no § 1.º do art. 28 da Lei 11.343/2006 – pessoas em todo Brasil que não recorrem ao mercado ilícito para chegar às substâncias consumidas por si, embora ainda figurem como sujeitos criminalizados.
Em termos jurídicos, a repressão ao cultivo de cânabis para consumo próprio configura clara invasão à esfera íntima do indivíduo por parte do Estado, caracterizando violação aos postulados da vida privada, garantidos pelo art. XII da Declaração Universal dos Direitos Humanos e pelo art. 5.º, inciso X, da Constituição Federal.
Não há pesquisa sobre o número de cultivadores domésticos para uso próprio no Brasil. Mas uma referência considerável é o espaço virtual Growroom.net, um fórum sobre cultivo doméstico de cânabis, contando, atualmente, com mais de 47.000 inscritos, o que leva a crer que tal conduta é bem difundida no País.
A existência do Growroom não significa delinquência ou apologia, mas sim a liberdade de expressão e um salutar efeito colateral do proibicionismo, onde usuários de cânabis, aproveitando a dinâmica comunicação da Internet, desde 2002, trocam informações sobre suas relações com o vegetal, e, principalmente, como cultivá-lo para uso próprio em suas casas.
Neste aspecto, o Growroom se apresenta como agente da redução de danos, como previsto no art. 20 da Lei 11.343/2006, pois o usuário que deixa de comprar maconha para passar a cultivá-la, claramente tem melhoria em sua qualidade de vida, reduzindo os riscos intrínsecos e extrínsecos ao consumo, e por ter oportunidade de cultivar, conhece melhor seus hábitos de consumo restringindo os danos relativos ao uso indevido.
Um estudo antropológico em curso na Universidade Federal Fluminense pesquisa a relação dos cultivadores com a planta, investigando a forma como a planta no cultivo caseiro para uso próprio ao mesmo tempo em que é domesticada para fornecer as substâncias também domestica o cultivador, que é obrigado a treinar sua paciência, dedicação e perseverança, ao mesmo tempo alcança a flores resinadas e adota a jardinagem como terapia.
Além da redução de danos no aspecto individual, o Growroom também fomenta a redução de danos de caráter social, pois cada usuário que cultiva sua maconha deixa de capitalizar o mercado ilícito. Considerando o número de membros do fórum pode-se falar que milhões de reais por ano deixam de financiar a guerra, e passam a pagar tributos pelas contas de energia elétrica e água, ou mesmo dos insumos para o plantio.
Desta forma, ao cultivar a cânabis para seu consumo o indivíduo vai além da figura do viciado ou usuário dito financiador do “crime organizado”, eis que, por um lado, precisa esperar por meses para obter o resultado do cultivo e ingerir as esperadas substâncias, por outro, não conserva qualquer vínculo com o mercado ilícito inimigo do Estado na declarada guerra às drogas.
Contudo, o Poder Público não enxerga assim e usa seu poder policial armado para combater jardineiros domésticos que cultivam flores proibidas para seu consumo, num claro uso desproporcional da força perante indivíduos pacíficos. O roteiro de terror dos cultivadores detidos já é bem conhecido por aqueles que observam de perto tal realidade.
No momento da prisão em flagrante vale o que é dito pelo agente condutor, que quase sempre baseado em denúncias anônimas, apresenta o cultivador para consumo próprio como um traficante sem qualquer investigação que sustente a existência da circulabilidade da produção, o que elimina a possibilidade de assinar o termo circunstanciado e aguardar o dia designado para audiência em juízo.
No inquérito policial, a autoridade não considera a afirmação do sujeito criminalizado que o cultivo se destinava ao consumo próprio. E, na perícia criminal o perito se limita a afirmar que se trata da dita Cannabis Sativa L., a quantidade de plantas e a pesar como um todo o material apreendido, sem considerar que de toda aquela massa vegetal somente as flores fêmeas secas seriam consumidas pelo cultivador.
Já no julgamento, aquele que cultiva para si é condenado, com base no número de plantas, na denúncia anônima e no testemunho do agente que efetuou o flagrante, como um traficante, numa clara demonstração de que a ignorância das autoridades públicas sobre a questão do cultivo doméstico gera sentenças injustas e leva ao encarceramento de pessoas que não merecem ter sua liberdade cerceada.
Enquanto o indivíduo que opta por cultivar sua maconha é encarcerado por uma lei que o eleva ao patamar de criminoso, a imprensa fomenta a desinformação, propagando mitos infundados, como dos “laboratórios de maconha”, ou “maconha transgênica superpotente”, e que a quantidade de plantas apreendidas já sumariamente o qualifica como um perigoso traficante.
Tal confusão ocorre por a Lei de Drogas vigente prever núcleos verbais relativos ao cultivo de vegetais proscritos tanto no § 1.º de seu art. 28, quanto no inciso II do 1.º de seu art. 33, usando elementos ambíguos como a natureza, a quantidade apreendida, o local e as condições do cultivo e cultivador para diferenciar entre a tipificação de cultivo para uso próprio do cultivo para outros fins.
Assim, a fim de evitar injustiças, a lei impõe aos operadores do direito observar que o cultivo caseiro para uso próprio envolve informações complexas sobre a planta como genótipo e fenótipo, e questões técnicas como foto período, fertilização e maturação. E que ao aproveitar o ambiente ou o emular dentro de casa não há como o cultivador prever qual será a quantidade de flores fêmeas secas resinadas obtidas após a colheita, dados os imponderáveis fatores que influenciam o cultivo da planta.
A soma da imprecisão da lei em vigor com a ignorância do Poder Público sobre a cânabis geram, no Brasil, uma realidade de injusta repressão e criminalização de cultivadores de flores para uso próprio, principalmente por desconsiderar aspectos como a variação da quantidade consumida de acordo com a subjetividade da necessidade de cada usuário.
Esta é a realidade que os cultivadores, organizados por meio do Growroom, trabalham para mudar. Hoje, com mais de dez anos no ar, o Growroom demonstra maturidade ao realizar seu proselitismo pela regulamentação da cânabis, contando com um grupo voluntário de operadores do direito que, movidos pelo antiproibicionismo, ajudam nas questões jurídicas e políticas.
Os Consultores Jurídicos do Growroom são advogados e acadêmicos de direito que esclarecem as dúvidas dos usuários do fórum sobre aspectos legais do cultivo doméstico para consumo próprio, também ensinam como evitar abusos por parte de autoridades públicas no momento da coerção e prestam auxílio na defesa judicial de cultivadores para uso próprio presos provendo suplementos de informações jurídicas e fáticas sobre o cultivo.
Na questão da Política Pública de Drogas, a demanda do Growroom vai além do pedido de legalização considerado liberalizante, e com base nas sugestões de seus membros preparou um escopo de projeto de lei, no qual propõe um modelo de regulamentação do ciclo socioeconômico da cânabis, contemplando desde o cultivo caseiro para consumo próprio até o uso industrial, passando pelas questões do uso medicinal e sacramental, além das técnicas, jurídicas e econômicas de um mercado lícito, fiscalizado e tributado em todos os seus aspectos.
Na visão dos cultivadores para uso próprio, é possível um ordenamento jurídico que releve o controle social adequado à realidade, qual seja, a cânabis é consumida sem transtornos por razoável parcela da população adulta, que criminalizar e penalizar não são o suficientes para dissuadir o consumo, principalmente entre jovens, que a prevenção eficiente deve ser feita com isenção e sem alarmismo e que a redução de danos é necessária para garantir a dignidade dos usuários.
Essa proposta anseia por um novo modelo legal de regulamentação, considerando as informações sobre a cânabis que hoje são ignoradas, elaborada com a expertise dos cultivadores domésticos, a qual, sempre quanto à maconha, vai além das técnicas de plantio, e, levando em conta que nem todos os consumidores querem ser ou são jardineiros, o que impõe criar outras formas de acesso seguro.
Por vigorar o embargo ao comércio internacional dos psicoativos canábicos, a única forma de garantir o acesso seguro aos usuários brasileiros é criar formas lícitas de produção e comercialização para aqueles que não vão cultivar para si, e nesse ponto o Growroom sugere olhar para o que ocorre na Espanha e na Califórnia, com seus clubes sociais de cânabis e dispensários de maconha medicinal, respectivamente.
A mudança na Política Pública de Drogas é questão de tempo tendo em vista que hoje a Comissão de Juristas do Senado Federal para a mudança do Código Penal e a Comissão Brasileira de Drogas e Democracia já propõem a adoção de políticas pragmáticas de descriminalização das condutas relacionadas ao consumo próprio, como a vigente há onze anos em Portugal.
Contudo, os cultivadores do Growroom, como parte interessada que são nessa questão, demandam por ir além da mera descriminalização e almejam uma inovadora política de regulamentação que crie um mercado permitido e controlado com objetivo de extinguir o violento mercado ilícito e ainda custear a prevenção e a redução de danos dos riscos inerentes ao uso de substâncias psicoativas, gerando uma realidade mais segura para os jovens e sustentável para as gerações futuras.
Diante de todo o exposto, conclui-se que essa é a realidade do cultivo doméstico de cânabis para consumo próprio no Brasil. Realidade esta de milhares de pessoas, que dentro de sua intimidade cultivam e consomem uma substância natural hoje considerada ilícita, ao mesmo tempo em que não participam da declarada guerra proibicionista. E por serem criminalizados pela lei vigente e conhecerem a fundo os aspectos relacionados à cânabis propõem um novo modelo de Política Pública que enalteça os direitos individuais, a prevenção, acesso seguro, a redução de danos e a responsabilidade social.
Emílio Nabas Figueiredo
Consultor Jurídico do Growroom.net e parte do Coletivo Projects.
Advogado.
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