INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - Ed. Especial Drogas


A perspectiva da redução de danos

Autor: Fábio Mesquita

A Lei de Drogas em vigor no Brasil, aprovada em 2006, teve desde sua origem, diversas críticas no tocante a suas limitações, no entanto ela é, sem duvida, um avanço em certos aspectos em relação às legislações anteriores.

Quando o país abre a discussão pública acerca do ponto que queremos chegar com a Lei de Drogas (vide entrega do abaixo assinado das Avaaz e do movimento de mudança liderada pelo Vivo Rio, entregue a Câmara dos Deputados em Agosto de 2012) é um bom momento para analisarmos o que poderia avançar do ponto de vista de reduzir os danos à saúde e a sociedade no consumo de drogas. Esta visão, a qual chamaremos aqui de Redução de Danos, é parte de um movimento internacional amplo, baseado em evidências científicas que demonstram que é possível assumir medidas não proibicionistas ou repressivas para se enfrentar o fenômeno do consumo indevido de drogas.

O debate sobre este tema e sobre medidas alternativas ao proibicionismo tem tomado o cenário global.

Desde a formação da Comissão Global de Política Sobre Drogas, que é liderada pelo ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso (e conta com membros como o ex-secretário Geral da ONU Kofi Annan e outros nomes do mesmo porte) mais e mais lideranças políticas clamam por políticas alternativas, algumas em implementação em vários países.

Um exemplo extraordinário de liderança vem do Presidente Uruguaio José Mujica, que enviou para análise do Parlamento uma posição clara do Governo do país de defender a legalização da Maconha. Evo Morales, o Presidente Boliviano, por sua vez, tem sido um baluarte global da luta antiproibicionista, defendendo o uso cultural da coca como parte inseparável da história da América Latina, particularmente da região Andina.

Na sexta cúpula das Américas em Cartagena, ainda em 2012, os Presidentes da Colômbia e da Guatemala defenderam claramente o fim da “Guerra às Drogas”.

Com exceção da inexplicável omissão do Governo do Brasil, que costumava liderar essa questão na região, o mundo tem debatido, incansavelmente, alternativas as políticas públicas repressivas fracassadas das últimas décadas.

Das salas de uso seguro de drogas (Canadá, Austrália, Suíça etc.), ao plantio nacional de maconha por alguns países (Canadá e futuramente Uruguai), da autorização de produção caseira por outros (Espanha e Holanda), aos coffee-shops Holandeses, há um variedade enorme de políticas públicas alternativas de drogas que poderiam ser consideradas na mudança da Lei que entra em curso. O top da nossa própria referência histórica é a legislação de Portugal que completa quase 10 anos de muito sucesso e tem sido celebrada por cientistas de todo mundo como uma política pública vitoriosa.

O porte de quantia para consumo em Portugal – claramente estabelecida na legislação – é considerado apenas como uma infração administrativa e punido desta forma.

A Redução de Danos como conceito propriamente dito, começou a ser discutida no Brasil em 1989 quando na liderança da Secretaria Municipal de Saúde de Santos o brilhante sanitarista Dr. David Capistrano da Costa Filho anunciou publicamente um projeto de distribuição de seringas (que tive a honra de elaborar e coordenar na condição de Coordenador do programa de AIDS da Cidade de Santos) para controlar a epidemia de AIDS entre pessoas que injetavam drogas. Essa era a maior causa da epidemia na cidade naquela época.

O Ministério Público Estadual nos processou com base na Lei vigente de então, a 6.368/1976, pelo crime de tráfico, previsto no art. 12 da mesma.

As autoridades de saúde que queriam evitar a disseminação de uma doença foram levianamente confundidas pelo Ministério Público com pessoas que ajudam as outras a consumir drogas.

Vencemos com o arquivo do processo e isso abriu um debate nacional que foi paulatinamente influenciando as mudanças subsequentes da Lei.

Primeiro foi aprovada no Estado de São Paulo, uma Lei de autoria do hoje Deputado Federal Paulo Teixeira, sancionada pelo finado Governador Mario Covas. Foi a primeira lei no Brasil a autorizar a troca de seringas.

As Leis de Drogas no âmbito Federal de 2000 (durante o Governo de FHC) e a de 2006 (durante o Governo Lula) explicitaram redução de danos como parte da legislação.

No entanto, em 2011 o Ministério da Saúde chamou um grupo de experts para regulamentar o que se definia como Redução de Danos e a regulamentação ficou limitada ao controle da epidemia de AIDS. Esse avanço foi histórico e muito importante, mas insuficiente. Os especialistas propuseram uma regulamentação mais abrangente, mas o Ministério vacilou e não foi até o fim daquilo que poderia ser um avanço mais substancial.

O que faltou nessa regulamentação que poderia ser incorporado à nova Lei de Drogas?

Os princípios da Redução de Danos não devem ser limitados a controlar apenas a epidemia de AIDS, mas sim todos os efeitos nocivos causados pelo uso indevido de drogas, sociais e para a saúde.

Várias ações poderiam ser apresentadas como exemplos positivos de Redução de Danos, além do controle da epidemia de AIDS. O projeto Baladaboa foi um exemplo brilhante de como reduzir os danos à saúde das drogas da noite, particularmente o ecstasy, ou outras metanfetaminas. O projeto foi lançado em São Paulo no ano de 2004, por uma estudante de pós-graduação (Stella Pereira de Almeida). Este foi um projeto extraordinário baseado em uma experiência holandesa e que contou com financiamento da FAPESP. Na verdade era um projeto simples, mas capaz de salvar vidas, pela orientação ao usuário de drogas a tomar grande quantidade de água, a fim de evitar a desidratação e, consequentemente, a overdose. Mais tarde a Vereadora de São Paulo Soninha e o Deputado Estadual, também de São Paulo, Simão Pedro, transformaram em lei a obrigatoriedade de bebedouros com água em todas as casas noturnas para que os usuários de drogas possam ter o acesso a àgua gratuitamente. Na época em que as leis foram instauradas, um copo de água mineral custava tanto quanto uma garrafa de cerveja, estimulando as pessoas a beberem cerveja e não água, o que aumentava a desidratação (o uso do álcool em vez de água aumenta a perda de água pelo corpo) e consequentemente potencializava o risco de overdose.

O projeto Holandês é ainda mais completo. Nele o Governo de Amsterdam oferece carona para casa numa Van Pública para aplicar o “usou, não dirija” de maneira mais eficaz e pragmática.

O projeto Baladaboa foi bombardeado pela mídia da época e desapareceu pela reação conservadora a uma proposta de redução de danos arrojada.

Devemos lembrar que segundo o relatório da ONU, a droga cujo consumo mais cresce no Brasil e no mundo é a metanfetamina.

Outro exemplo de medidas que vão na contramão da história são aquelas tomadas em relação ao crack, particularmente nas Cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, por meio da internação compulsória e a “higienização” da Cracolândia como se fossem de fato medidas passíveis de reduzir o consumo de crack. Não são!

Vale ressaltar que fora da mídia, do Governo e de setores conservadores da sociedade, incluindo aí um movimento liderado por profissionais de saúde conservadores chamado “Pauta Brasil de Combate às Drogas”, não há nenhuma evidência científica de que no Brasil exista de fato uma epidemia de crack. Nesse caso me sinto à vontade para falar com muita propriedade já que sou epidemiologista de formação.

Para reduzir os danos sociais do uso do crack, bem como os danos para a saúde dos usuários, deveríamos ter uma política pública de aproximação e oferta de serviços. Isso tem sido feito de maneira brilhante no ABC Paulista e no Recife, onde profissionais de saúde dos Centros de Apoio Psico Social de Álcool e Drogas (CAPS ADs) oferecem consultórios de rua e tratamento nos centros sem opressão pela abstinência.

Projetos como os da ONG É de Lei, de São Paulo, foram extremamente efetivos. A ONG distribuiu com sucesso cachimbos para usuários de crack a fim de evitar a contaminação pela hepatite C e outras doenças, além de prevenir queimaduras graves nos lábios.

Um estudo da Escola Paulista de Medicina, liderado pelo Dr. Eliseu Labigalini e publicado em revista de excelente reputação científica (Journal of Psycoative Drugs, em 1999) mostrou que a substituição de crack por drogas mais leves como a maconha poderia ser uma excelente saída nesses casos. Enfim, não há epidemia, mas os casos que se avolumam pelo descaso das autoridades poderiam ser cuidados com dignidade e soluções inovadoras.

Há ainda o conceito das salas de uso seguro. O Estado compra e distribui a droga da qual a pessoa é dependente. O consumo então é feito em lugar seguro e com todo aparato de saúde à disposição do usuário. A qualidade da droga é controlada, evitando graves intoxicações por drogas “batizadas”. A pessoa não se submete a traficantes e não tem de enfrentar a polícia, a corrupção, o crime organizado e todas as mazelas do uso ilegal. Essas salas são um sucesso absoluto nos casos de uso de heroína e poderiam certamente ser estudadas para drogas como a cocaína em todas as suas formas de administração, que inclui o crack inalado.

Outra alternativa muito usada pelo mundo todo, e boa opção a ser implantada no Brasil, são os Drop Inn Centers, talvez traduzidos como casas de acolhimento. Neles os usuários podem tomar banho, comer, assistir TV, ler, passar o tempo com jogos como dama ou xadrez e até mesmo acessar Internet. Um local acolhedor que funcionaria das sete da manha às dez da noite com portas sempre abertas à população atendida.

Onde essas casas funcionam, a polícia não chega perto, a fim de não inibir a sua procura. Superseguras, porque são como espaços de proteção para os usuários, elas tornam-se portos-seguros para aqueles que foram excluídos das escolas, das famílias, dos empregos ou de outras formas de convivência social. Lá eles podem passar o dia e recuperar parte da dignidade perdida.

Poderíamos enumerar incontáveis alternativas mais racionais, mais protetoras e mais responsáveis para resolver essa questão, onde o Estado, e não o crime organizado, cuida das pessoas que usam drogas.

Estas alternativas no momento não são possíveis no Brasil porque nem a Lei, nem o decreto que a regulamenta entende Redução de Danos de uma forma mais ampla. Penso que este texto é uma contribuição da Saúde Pública para o debate que vemos a nossa frente.

Este não ousa ser um texto final. Ele está aberto ao debate e à complementação por parte daqueles que buscam soluções fora da “caixinha”, longe da repressão, do controle do crime organizado e fora da omissão do Estado.

Fábio Mesquita
Coordenou os Programas de AIDS em Santos, São Vicente e São Paulo.
Chefiou as Unidades de Prevenção e Direitos Humanos do Programa Nacional de AIDS do Ministério da Saúde.
Foi fundador e é Membro Honorário Permanente da Associação Internacional de Redução de Danos (em inglês International Harm Reduction).



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