Autor: Sidarta Ribeiro, Renato Malcher-Lopes e João R.L. Menezes
O que é droga? Se tomarmos como referência as leis norte-americanas (Food, Drug, and Cosmetic Act) que regulam o uso de remédios e alimentos daquele país, droga é definida como: (i) substância reconhecida por farmacopeia oficial; (ii) substância utilizada no diagnóstico, cura, alívio, tratamento ou prevenção de uma doença; (iii) substância não alimentícia usada para afetar a estrutura ou a função do corpo; (iv) substância usada como componente de um remédio. Do ponto de vista das neurociências, embora não exista convenção formal para o uso do termo, pode-se dizer que toda substância capaz de alterar parâmetros biológicos é uma droga. Portanto, a despeito das circunstâncias legais, políticas e históricas, do ponto de vista biológico, o termo “droga” pode ser atribuído a todos os fármacos e substâncias psicoativas, além de muitos alimentos. Numa sociedade livre e esclarecida, o debate sobre a melhor forma de regular o consumo de drogas deve pautar-se exclusivamente pelo conjunto de efeitos que produz. O efeito de uma droga é produto da interação de três fatores:(1)-(2)
1) a substância em questão, com seu modo de ingestão, composição molecular e especificidades farmacológicas;
2) o corpo que recebe a droga, com sua história de vida, marcas biológicas e predisposições inatas;
3) o ambiente físico e social em que ocorre o uso.
O debate sobre legalização e regulamentação das drogas costuma centrar-se exclusivamente no primeiro item, esquecendo que os outros itens podem ser determinantes para seus efeitos. É fundamental considerar a especificidade da substância em questão com base no conhecimento científico atualizado e não na percepção política de turno. Como é ingerida a droga? Qual é seu modo de ação aos níveis molecular, celular e sistêmico? Quais são seus efeitos no organismo e em seu comportamento? É verdadeiro o lema de Paracelso (1493-1521) de que a diferença entre remédio e veneno é a dose. Dependendo da dose, as drogas podem causar benefícios ou danos fisiológicos variados. Uma regra geral quanto ao uso de drogas é evitar a superdosagem – as chaves para o uso seguro são a moderação e o conhecimento específico sobre a substância.
Também é preciso esclarecer que diferentes modos de uso acarretam danos distintos. A combustão de drogas de origem vegetal quando fumadas (tabaco, cânabis) acarreta a formação de derivados cancerígenos. Tais derivados nocivos não estão presentes quando as mesmas substâncias são vaporizadas, isto é, quando são aquecidas a ponto de evaporar substâncias psicoativas sem carbonizar a celulose que as compõe.
No caso das drogas psicoativas, importante efeito colateral a ser considerado é o risco de dependência química. A comparação de diferentes drogas legais e ilegais quanto ao dano físico e risco de adição demonstra a existência de três grupos distintos:(3) (i) substâncias de alto dano e com grande risco de adição compreendem cocaína e crack, a metadona e os barbitúricos, além da heroína como caso extremo; (ii) substâncias de médio dano e médio risco de adição incluem a anfetamina, os benzodiazepínicos, o álcool e o tabaco; (iii) substâncias de baixo dano físico e baixo risco de dependência incluem a cânabis, os esteroides e o ecstasy.
É gritante a discrepância entre a classificação biomédica e a regulamentação jurídica do tema. A cânabis, por exemplo, causa menos dano físico e dependência que álcool, tabaco e benzodiazepínicos utilizados para induzir o sono.(4) Esta irracionalidade no tratamento jurídico de substâncias com distintos potenciais de uso abusivo, sem levar em consideração os verdadeiros riscos à saúde, gera estigmas que prejudicam a credibilidade do processo de educação, sobretudo dos jovens, a respeito dos riscos do abuso de substâncias. Com o livre acesso a informações via Internet, tais discrepâncias revelam que a política que regula o uso de drogas é arbitrária e sustentada por falsas suposições. A consequência natural junto aos que mais necessitam formação adequada sobre o tema é o descrédito e ceticismo quanto à legitimidade do discurso protetor. Cientes de que drogas moderadamente perigosas, como o álcool e o tabaco, podem ser usadas com poucas restrições pelos adultos, os jovens tendem a ignorar as orientações para uso seguro de drogas menos perigosas como cânabis e ecstasy.
Por exemplo, está bem estabelecido que o consumo crônico do tabaco na forma fumada causa câncer,(5) enquanto o da cânabis não,(6) provavelmente porque esta contém substâncias antitumorais que contrabalanceiam os derivados carcinogênicos produzidos na combustão.(7)-(8) Além disso, a quantidade de cigarros de cânabis fumados, mesmo por um usuário contumaz, é muito menor do que a quantidade cigarros de tabaco fumada por tabagistas. Os efeitos irritantes da cânabis, que podem evoluir para bronquite, não justificam sua proibição em face da legalização do uso do tabaco, que pode evoluir para câncer e problemas cardíacos ausentes na cânabis. Enquanto esse debate se perpetua sem clareza científica, permanece oculto para a sociedade o fato de que existem dispositivos vaporizadores capazes de extrair os princípios ativos tanto do tabaco quanto da cânabis sem a produção de combustão, praticamente eliminando os efeitos tóxicos da fumaça. Uma legislação racional e legitimamente preocupada com a saúde pública deveria viabilizar e encorajar o uso de vaporizadores nesses casos.
Outro exemplo trata dos efeitos psicológicos da cânabis. É verdade que seu uso, especialmente em usuários inexperientes, pode levar a estados de ansiedade e paranoia, sem que ocorram as alucinações que caracterizam um surto psicótico. Apenas no caso de pessoas dentro do grupo de risco, que corresponde a menos de 1% da população, tais estados paranoides causados pela cânabis podem evoluir para surtos psicóticos. Sabe-se que tanto num caso como no outro, estados de sofrimento psíquico são desencadeados por linhagens de cânabis que contêm proporção excessiva de tetrahidrocanabinol (THC) e baixos níveis de canabidiol (CBD), que é um canabinoide ansiolítico e antipsicótico. Não é casual o equilíbrio na cânabis entre essas duas moléculas, pois é uma planta cultivada e artificialmente selecionada por milênios para servir de remédio. O uso seguro da droga, nesse caso, é a mistura farmacológica de moléculas que se equilibram para gerar benefícios. Quando desequilibrados, podem causar malefícios. Aqui, pode-se novamente afirmar que uma política racional e legitimamente preocupada com o bem-estar público deve priorizar a regulamentação dos teores de THC e CBD na cânabis.
No tangente ao corpo que recebe a droga, com suas tendências inatas e história de vida, é preciso considerar que cada indivíduo apresenta predisposições genéticas e culturais próprias. Quando consideramos a população de um país, verificamos um espectro muito amplo de diferenças hormonais e bioquímicas que correspondem à variação igualmente ampla de reações a uma mesma substância. Assim, o conceito de grupo de risco é crucial para o debate sobre drogas numa sociedade livre e esclarecida. Toda droga pressupõe um subconjunto de indivíduos cuja condição fisiológica e/ou psicológica contraindica o consumo da substância. Isto se aplica a alimentos (intolerância à lactose ou ao glúten, reações alérgicas a crustáceos), remédios (sensibilidade excessiva à dipirona) e substâncias psicoativas (intolerância ao álcool em asiáticos).
Alguns grupos de risco são comuns a muitas drogas distintas: gestantes, lactantes, crianças e jovens. Isso ocorre porque é preciso proteger organismos em formação de alterações químicas que porventura possam desorganizar seu curso saudável. Além desses grupos, para cada substância tipicamente existem outros grupos de risco que são especificamente relacionados a seus efeitos. Substâncias como o álcool e a cânabis, por exemplo, são potencialmente danosas para pessoas com tendência à psicose (ou seja, pessoas com histórico familiar ou que exibam na adolescência os sintomas da fase pré-drômica da doença), enquanto o tabaco não é. Para regulamentar o uso seguro de uma droga, é preciso identificar com clareza os seus grupos de risco.
Dos três eixos determinantes do efeito das drogas, o aspecto mais neglicenciado é o ambiente físico e social em que ocorre o seu uso. Por exacerbarem sensações e emoções, substâncias psicoativas podem magnificar de forma poderosa a influência de agentes externos ao usuário. Uma mesma substância ingerida de uma única forma por uma mesma pessoa pode ter efeitos completamente distintos dependendo do contexto em que o usuário se encontra. Se o ambiente é confortável, seguro e inclui a presença de pessoas em quem o usuário confia, os efeitos de diversas drogas psicoativas são muito mais benignos do que se o ambiente é desconfortável e socialmente aversivo. Assim, tratar o uso de drogas como questão de polícia contribui para que as experiências dos usuários sejam negativas.
Outra consequência deletéria da proibição de certas drogas, em especial da cânabis, é a dificuldade de realizar pesquisas para caracterizar seus efeitos biológicos e investigar seus potenciais usos medicinais em regime de proibição e estigmatização que sabota este importante ramo da ciência biomédica. O estudo dos endocanabinoides, substâncias análogas aos constituintes da cânabis produzidas em grandes quantidades pelo cérebro, constitui uma das fronteiras mais ativas das neurociências.(9)-(10) Mesmo sob as restrições impostas pelo regime de proibição, diversas pesquisas apontam para um vasto potencial terapêutico da cânabis(11) e seus diversos componentes conhecidos como canabinoides.(12) Nos 16 estados dos EUA em que a cânabis medicinal foi regulamentada, muitos pacientes optam por seu uso para tratamento de diversas enfermidades.(13) Devido ao regime de proibição, ainda são poucos os trabalhos realizados com rigor necessário para avaliar a eficiência destes tratamentos.(14) Nesses poucos casos, a efetividade da cânabis medicinal vem sendo confirmada.(15)-(16) A criminalização da cânabis causa, portanto, um fenômeno paradoxal nos EUA, pois pacientes que escolhem este método de tratamento sob indicação médica, permitido por leis estaduais, correm o risco de serem perseguidos judicialmente pelo governo federal.
O ponto de vista das neurociências coloca em xeque não apenas o senso comum sobre as drogas, mas o alarmismo e a intolerância consonantes com as políticas públicas adotadas atualmente, as quais prescrevem punição e intolerância àqueles que necessitam respeito, acolhimento e eventualmente ajuda médica. A esfera adequada para o debate sobre regulamentação do uso de drogas deve ser biomédica e cultural, jamais criminal. Pelo prisma das ciências do cérebro, nenhuma droga deveria ter seu uso criminalizado e todas deveriam ser reguladas, caso a caso, de acordo com suas especificidades, e em parâmetros científicos isentos de moralismos e tendências políticas. A objetividade científica exige tratamento isonômico para drogas com potencial danoso semelhante. O proibicionismo é uma política irracional que exacerba os malefícios das drogas nos três eixos determinantes para seus efeitos. No que diz respeito aos efeitos específicos das substâncias, o proibicionismo produz um mercado negro que não é fiscalizado quanto à composição química das drogas que negocia (exemplo: composição de THC versus CBD na cânabis) e que favorece enormemente a adulteração das drogas com substâncias desconhecidas pelo usuário. No que diz respeito aos cérebros que recebem a ação das drogas, o proibicionismo inviabiliza uma política educacional de drogas baseada em evidências científicas, descredenciando o discurso protetor justamente entre os mais suscetíveis ao uso abusivo de drogas, isto é, os jovens. No que diz respeito ao contexto social do uso de drogas, o proibicionismo induz estados de temor e paranoia que potencializam efeitos psicologicamente danosos.
Por todas essas razões, a proibição absoluta do consumo de certas drogas é uma alternativa radical, ineficiente e perversa para proteger a população dos potenciais efeitos negativos do abuso dessas substâncias. Enquanto o mercado de drogas for monopolizado por agentes econômicos marginais, nenhum controle de qualidade pode ser exercido, nem é possível uma política racional de redução dos danos causados pelo uso de drogas.
Notas:
(1) Shewan, D.; Dalgarno, P.; Reith, G. Perceived risk and risk reduction among ecstasy users:the role of drug, set, and setting. International Journal of Drug Policy, 2000. 10: p. 431-453.
(2) Zinberg, N. E. Drug, Set, and Setting. New Haven: Yale University Press, 1984.
(3) Nutt, D. J.; King, L. A.; Phillips, L. D. Drug harms in the UK: a multicriteria decision analysis. Lancet, 2010. 376: p. 1558-65.
(4) Idem, ibidem.
(5) IARC, IARC Working Group on the Evaluation of Carcinogenic Risks to Humans. Tobacco smoke and involuntary smoking., I. P. Editors., Editor 2004, WHO: Lyon.
(6) Hashibe, M. et al. Epidemiologic review of marijuana use and cancer risk. Alcohol, 2005. 35: p. 265-275.
(7) Blazquez, C. et al. Cannabinoids inhibit the vascular endothelial growth factor pathway in gliomas. Cancer Research, 2004. 64: p. 5617-23.
(8) Melamede, R. Cannabis and tobacco smoke are not equally carcinogenic. Harm Reduct J, 2005. 2: p. 21.
(9) Wilson, R. I.; Nicoll, R.A. Endocannabinoid signaling in the brain. Science, 2002. 296(5568): p. 678-82.
(10) Guindon, J.; Hohmann, A. G. The endocannabinoid system and cancer: therapeutic implication. Br J Pharmacol, 2011. 163(7): p. 1447-63.
(11) Bostwick, J. M. Blurred Boundaries: The Therapeutics and Politics of Medical Marijuana. Mayo Clin Proc, 2012. 87(2): p. 172-186.
(12) Izzo, A. et al. Non-psychotropic plant cannabinoids: new therapeutic opportunities from an ancient herb. Trends in Pharmacological Sciences, 2010. 30: p. 515-527.
(13) Reinarman, C., et al. Who Are Medical Marijuana Patients? Population Characteristics from Nine California Assessment Clinics. Journal of Psychoactive Drugs, 2011. 43(2): p. 128-135.
(14) Bostwick, J. M. Op. et loc. cits.
(15) Grant, I. et al. Medical Marijuana: Clearing Away the Smoke. The Open Neurology Journal, 2012. 6: p. 18-25.
(16) Lucas, P. Cannabis as an adjunct to or substitute for opiates in the treatment of chronic pain. J Psychoactive Drugs, 2012. 44(2): p. 125-33.
Sidarta Ribeiro
Professor titular do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Renato Malcher-Lopes
Professor adjunto do Departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade de Brasília (UnB).
João R. L. Menezes
Professor adjunto do Departamento de Anatomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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