Autor: Denis Russo Burgierman
Na metade do século XIX, de repente ficou óbvio para boa parte da humanidade que o ato de manter pessoas de pele mais escura acorrentadas, trabalhando na base do pau e do chicote, era moralmente injustificável. No mundo inteiro, as elites cultas começaram se escandalizaram com a injustiça da escravidão e, um a um, países de toda parte foram livrando-se dessa instituição abominável.
Argentina, Peru e Venezuela aboliram a escravidão já nos anos 1850, Cuba e Estados Unidos seguiram-nos em 1860 e, quando chegou 1870, toda a América estava livre desse sistema falido, dispendioso e ineficaz. Toda? Toda não. Um país continuava permitindo a escravidão institucionalizada. O Brasil.
Não que os brasileiros do século XIX fossem todos bárbaros ignorantes. Havia já então uma elite ilustrada, instruída, com poder político e valores até parecidos com os de europeus e norte-americanos que naquela época já viam a escravidão como uma excrescência. Na câmara legislativa, no Rio de Janeiro, essa elite sofisticada era representada por dignos políticos que debatiam inflamadamente sobre a escravidão, em discursos no plenário.
Havia então três partidos políticos principais: os conservadores, os liberais e os republicanos, que discordavam em tudo. O interessante é que, nessa questão, eles quase sempre concordavam: todos eram contra a escravidão, em princípio. Mas apenas em princípio.
Num pronunciamento de 1871,(1) no qual se opunha à Lei do Ventre Livre, o deputado conservador Agostinho Marques Perdigão Malheiro avisa que “senhores, eu não falo assim porque seja escravagista, não; nesta questão faço grande violência ao meu coração; mas devo fazê-lo, porque quero que prevaleça a razão”. Neste momento, deputados de todas as facções gritaram “apoiado”.
Agostinho seguiu cuidadosamente com seu discurso: “não se trata de discorrer sobre princípios religiosos, sobre princípios philosóphicos, do direito natural, da philosophia do direito, etc.; não se trata de cousa alguma destas; trata-se do seguinte: admittida a justiça, conveniência e necessidade da extincção da escravidão, quaes os meios para se conseguir este fim, do modo o menos inconveniente que se possa”.
O nobre deputado começa então a descrever “o cenário de insurreição”, a “hecatombe dos inocentes” que adviria da abolição. Segundo ele, a lei, que libertaria as crianças nascidas de pais escravos, mandaria a mensagem errada àqueles negros ignorantes. “É preciso tomar o escravo como elle é: bruto, estúpido, sem educação, fanático, acreditando em divindades mysteriosas, em fetichismo”, afirma Agostinho, cheio de piedade. Uma gente assim tão tosca não seria capaz de compreender a complexidade da lei. Ao notarem o relaxamento, eles iriam querer a própria liberdade imediatamente, e aí o caos tomaria o Brasil.
Interessante é que, enquanto os conservadores diziam isso, os republicanos, de ideias tão modernas, tão avessos à opressão, opositores ferrenhos do Império, corajosos lutadores da liberdade, diziam basicamente o mesmo. O jornal republicano A Província de São Paulo, depois rebatizado “O Estado”, publicava artigos denunciando o “abolicionismo infrene, baseado unicamente na espoliação de direitos adquiridos e no assalto de propriedades penosamente constituídas, propaga-se aos quatro ventos brasileiros, como uma necessidade palpitante e urgente, ainda que em seu louco caminhar leve atrás de si a devastação e a ruína”.(2) Havia republicanos abolicionistas, mas esses se calavam sobre a questão, para não incomodar os financiadores de suas campanhas, que eram cafeicultores de São Paulo e possuíam escravos. O Partido Republicano, tanto quanto o Conservador, defendia uma transição bem gradual, para dar tempo para todo mundo se preparar bem direitinho.
Foi o que aconteceu. A abolição só vingou no Brasil em 1888, 35 anos depois da Argentina. É inegável que os fazendeiros brasileiros, que financiavam os deputados de todas as tendências políticas, prepararam-se muito bem ao longo dessas décadas. Com farto investimento público, eles montaram um impressionante sistema para recrutar trabalhadores pobres na Europa, onde passavam fome. O sistema foi tão bem planejado e recebeu tanto dinheiro do governo que, no final das contas, os fazendeiros saíram ganhando, apesar de perderem seus escravos. A nova solução ficou mais barata para eles, a produção aumentou e os lucros se multiplicaram.
Mas nem todo mundo se deu tão bem naquele período. “Os negros já haviam perdido com a escravidão. Perderam de novo com a abolição”, como bem resume o jornalista Roberto Pompeu de Toledo.(3) Os escravos libertos foram postos na rua, na miséria, sem possibilidade de competir com imigrantes mais bem educados por trabalho. Para eles, não houve “preparação” alguma.
É muito comum nos dias de hoje dizer que “o Brasil não está preparado” para a descriminalização do usuário de drogas, ou para a regulamentação do mercado de certas drogas. É quase um clichê do debate, e um clichê poderoso, às vezes pronunciado em voz alta e tom ríspido, como que para encerrar a discussão. Essa afirmação me deixa bastante intrigado. O que será que essa frase quer dizer?
Ela entrou na moda no final dos anos 1990, quando, após uma ofensiva global contra as drogas, liderada pela CIA, fartamente financiada pelos Estados Unidos e com a adesão de basicamente todas as nações da Terra, ficou claro que a Guerra Contra as Drogas simplesmente não funciona. Não apenas a política de repressão e encarceramento em massa custava astronomicamente caro e não dava resultados, mas o índice de uso de drogas começou a aumentar, em consequência da imensa lucratividade e da falta de regulação do mercado. A Guerra enriqueceu os traficantes, o que gerou um surto de violência no mundo todo, principalmente nas regiões produtoras, como a América Latina.
Diante desses fatos cada vez mais difíceis de contestar, o que se viu é que ficou mais raro encontrar alguém disposto a defender a Guerra Contra as Drogas como uma resposta adequada ao problema. Foi aí que o novo discurso se espalhou. Passou-se a afirmar que a Guerra é mesmo injusta e ineficaz, mas o Brasil está despreparado para tentar algo diferente disso, sob pena de uma explosão de caos, com milhões e milhões de pessoas subitamente mergulhando nas drogas.
Foi nessa época, o final dos anos 1990, que os governos do Brasil e de Portugal começaram a trocar ideias sobre possíveis soluções sistêmicas para o problema das drogas. Depois de uma empolgação inicial dos dois governos, com algumas pessoas imaginando que ambos adotariam um caminho comum, os dois países seguiram direções bem diferentes.
Portugal, desde então, fez um belíssimo trabalho de “preparação”. Em 2000, juntou um comitê multidisciplinar de especialistas para pesquisar ideias pelo mundo de formas mais eficazes para lidar com os problemas ligados a drogas. Esse comitê redigiu um livro, com uma proposta de um novo sistema, fortemente centrado em proteger a saúde dos usuários de drogas e em economizar o dinheiro do contribuinte português. Uma das principais recomendações foi a de estruturar o sistema de saúde no país inteiro, com protocolos de atendimento muito modernos e grande participação da sociedade civil. O governo seguiu as recomendações dos especialistas à risca, apesar da gritaria na imprensa e nas tribunas do parlamento.
Em 2001, o novo sistema português foi implantado e hoje o país gasta muito menos com cadeias e polícia e tem como investir fartamente em saúde e educação. No aniversário de dez anos do sistema, duas grandes pesquisas foram feitas, por institutos sérios de tendências ideológicas bem distintas.(4) Ambas concordam que a mudança foi um grande sucesso. O abuso de drogas diminuiu em Portugal, o uso problemático caiu, o uso por menores de idade também, diminuiu a lotação das cadeias e dos tribunais, a contaminação por HIV e hepatite C entre usuários de drogas despencou, a polícia ficou mais eficaz, mais gente procura tratamento e este funciona melhor. Segundo uma pesquisa publicada em 2012 pelo think tank Release,(5) 21 países já descriminalizaram as drogas, como fez Portugal. Em nenhum deles houve aumento relevante no uso de drogas. Em nenhum deles instaurou-se “o cenário de insurreição”, a “hecatombe dos inocentes” que se anunciava.
Já no Brasil nada disso aconteceu na última década e o problema das drogas ficou pior em todos os aspectos: mais crack, mais uso, mais abuso, mais dependência, mais crianças usuárias e traficantes, tudo isso acompanhado da maior explosão da população carcerária da história do país. Enquanto Portugal melhorava todos os seus indicadores importantes esvaziando as cadeias, o Brasil aumentava a população carcerária em 150%, e todos os seus indicadores pioravam.
Isso quer dizer que o Brasil não fez nada enquanto Portugal “se preparou”? Não exatamente. Houve sim muita atividade ao redor desse tema no país ao longo da última década. Por exemplo, as construtoras trabalharam muitíssimo, enquanto faziam do Brasil o país do mundo onde mais se constrói novos presídios. As fábricas de armas jamais pararam de comemorar recordes de lucros. As igrejas criaram lucrativos centros de tratamento de dependentes, a maioria deles sem nenhum embasamento científico, todos alimentados por gordas verbas públicas. As milícias ganharam poder e tornaram-se grandes financiadoras de eleições. E os traficantes estão envolvidos em muitos novos negócios, inclusive nas altas rodas de Brasília.
Enfim, o Brasil também se preparou. Mas, assim como aconteceu nas décadas que antecederam a abolição da escravatura, nossa preparação não foi no sentido de pensar no bem da sociedade toda ou em estruturar o cuidado das populações mais necessitadas – foi no sentido de enriquecer alguns poucos setores. São esses setores que estão financiando políticos para evitar que o debate avance no Congresso Nacional.
Outra coincidência entre os séculos XIX e XX é que, se lá foram os negros que terminaram miseráveis, vagando sem emprego pelas ruas, agora são igualmente os negros que lotam os presídios que nossos políticos ansiosamente constroem. A cor da pele continua sendo o critério principal para determinar quem está livre, e quem fica cativo.
Notas:
(1) Discurso proferido na Sessão da Câmara Temporária de 12 de julho de 1871 sobre a proposta do governo para reforma do estado servil, pelo Dr. A. M. Perdigão Malheiro. Disponível em:
(2) Reproduzido em Almanach literário para o ano de 1884, p. 80, citado em A capital da solidão, de Roberto Pompeu de Toledo, Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
(3) A capital da solidão, cit.
(4) Hughes, Caitlin Elizabeth; Stevens, Alex. What Can We Learn from the Portuguese Decriminalization of Illicit Drugs? Oxford: Oxford University Press, 2010. Disponível em:
(5) Disponível em:
Denis Russo Burgierman
Diretor de redação das revistas Superinteressante e Vida Simples.
Jornalista.
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