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Boletim - Ed. Especial Drogas


Drogas e consumo pessoal: a ilegitimidade da intervenção penal

Autor: Cristiano Avila Maronna

1. Consumo pessoal não afeta a saúde pública

Vem de longe a discussão a respeito da (i)legitimidade da intervenção penal no que diz com o consumo de substâncias proibidas. Não de hoje se questiona a respeito da existência de bem jurídico digno da tutela penal nessa seara, tendo em vista que o uso de drogas causa prejuízo ao indivíduo, não a terceiros.

Para superar esse obstáculo lógico intransponível – uma vez que a alteridade é pressuposto de legitimidade da atuação do direito penal –, criou-se, na jurisprudência, uma justificação que pode ser definida como um salto triplo carpado hermenêutico.

Convencionou-se, no discurso jurídico, que a incriminação do porte de drogas para consumo pessoal justificar-se-ia em função da expansibilidade do perigo abstrato à saúde pública. A proteção da saúde coletiva dependeria da ausência de mercado para a traficância. Em outras palavras, o porte para consumo pessoal teria a função de tornar possível a repressão ao tráfico de drogas, afinal, não haveria comércio clandestino se não houvesse mercado consumidor.

Além disso, haveria uma relação de consequencialidade necessária entre consumo e tráfico de drogas, além de outros ilícitos correlatos, como crimes contra o patrimônio ou mesmo contra a pessoa.

Não por outra razão, as drogas ilegais e seus usuários costumam ser responsabilizados por todos os problemas sociais existentes. Hassemer observa que o problema das drogas, decorrente do ímpeto e da compulsão do ser humano para a intoxicação, o qual pode ser caracterizado como uma constante antropológica, é um campo fértil para dramatizações com motivações políticas.(1)

Para além da demonização de certas substâncias, não é mais possível à ciência jurídica ignorar a existência de um antagonismo evidente entre a destinação pessoal do consumo e a proteção jurídica à saúde pública: se o consumo é pessoal, afeta a saúde individual. Não há alteridade, apenas autolesão, o que inviabiliza a atuação do Direito Penal. Nullum crimen nulla poena sine iniuria.

As ações descritas no art. 28 da Lei 11.343/2006 não afetam qualquer terceiro. Apesar de a posse de drogas não causar qualquer lesão por si só a outra pessoa, é objeto de incriminação porque provoca outros atores, não controlados pelo ator original, a adotar comportamentos que podem causar perigo ou lesão a terceiros.

Aceitar como justificativa para a incriminação dos consumidores a necessidade de punição do tráfico (ou mesmo de outros crimes) significa adotar critério de responsabilidade objetiva, na medida em que se reprime alguém (consumidor de drogas) por atos de terceiros (traficantes ou autores de delitos relacionados ao consumo ou comércio de drogas). O resultado potencialmente lesivo não pode ser atribuído ao autor original, o que viola o princípio da responsabilidade penal pessoal.(2)

O papel normativo da sanção penal sempre esteve relacionado ao âmbito da censura retrospectiva em vista de fato pretérito.(3) Segundo Andrew von Hirsch, o uso da pena em situações de autolesão se “refere à conservação das futuras chances de vida da pessoa atingida: ela é, agora, afastada de um determinado comportamento, para que, mais tarde, continue-lhe possível perseguir seus supostos objetivos de longo prazo”.(4) No entanto, observa o mesmo autor, “esse fundamento para a intervenção é evidentemente orientado para o futuro e essa orientação ao futuro faz da pena – com suas características fortemente retrospectivas e censuratórias – uma forma inadequada de reação”.(5)

No Direito Penal das drogas, pune-se o consumo com vistas à evitação de um futuro e incerto perigo abstrato gerador dessa inaferível expansibilidade do consumo.

Trata-se de inaceitável utilitarismo, que instrumentaliza a dignidade humana, coisificando a pessoa.

A alegação de danos indiretos a terceiros vulnera a alteridade que deve existir, sempre e sempre, quando se trata de norma incriminadora. Daí por que é proibida a incriminação de condutas que excedam o âmbito do próprio autor.

Um dos mais importantes limites do Direito Penal reside no postulado segundo o qual o dano a si mesmo não pode ser objeto de incriminação. A autolesão situa-se na esfera de privacidade do indivíduo, nela sendo defeso ao Direito – especialmente o Direito Penal – penetrar.

Luis Greco assevera que “se o comportamento pertence à esfera privada ou de autonomia do agente, a rigor sequer se coloca a questão do bem jurídico”.(6)

Na mesma direção, Hirsch observa que, “em casos normais, o Estado não deve empregar sua violência coativa para impedir que um indivíduo pratique autolesões”.(7)

O papel do Direito Penal não é realizar a educação moral de pessoas adultas. Não compete ao Estado fiscalizar a moralidade privada, para exercer em face dos cidadãos o papel de polícia dos costumes, de sentinela da virtude.

O Direito Penal das drogas representa a moralização do problema: significa ortopedia moral.

Entregar as drogas ao manejo do Direito Penal impede a regulação e controle pelo Estado e libera o campo para o domínio econômico das organizações criminosas. Toda proibição de uma constante antropológica, como é o desejo pelas drogas, produz uma pressão contínua no sentido de contorná-la e arrefecê-la.(8) A proibição penal está na raiz do mercado negro, como bem mostrou a experiência da Lei Seca nos EUA, no início do século XX.

2. É razoável punir a vítima à guisa de protegê-la? Condutas autolesivas representam uma pretensão legítima que o autor tem contra si mesmo?

A ideia de que o Estado pode substituir a vontade do indivíduo para protegê-lo de si mesmo contraria o pensamento liberal segundo o qual a pessoa tem o direito de seguir seu próprio plano de vida. Cuida-se, em última análise, de paternalismo: tratar adultos como crianças. A vontade do mais forte que entende saber o que é melhor para proteger o mais fraco prevalece. É a interferência na liberdade de ação de uma pessoa justificada por razões que dizem exclusivamente com o

bem-estar, a felicidade, as necessidades, os interesses ou os valores da pessoa coagida.(9) Trata-se de violação da autonomia do ser humano.

Desde os estudos de Stuart Mill, há notícia de paternalismo na Lei Penal.(10) Esse fenômeno se verifica, em diferentes legislações ao longo do tempo, não apenas na proibição das drogas, mas também na proibição da prostituição, do jogo de azar, de certas práticas sexuais entre pessoas maiores e capazes (como, por exemplo, homossexualidade, sadomasoquismo, sexo grupal, sodomia, incesto), do adultério, da pornografia, do suicídio. Segundo Mill, a lei só pode proibir condutas que lesem terceiros: o dano a outrem deveria ser a única base para a incriminação de comportamentos (harm to others principle).(11)

Tratando do paternalismo na Lei Penal, especialmente no que concerne à repressão, à prostituição e à sua exploração por terceiros, Joel Feinberg define paternalismo legal moralista, “(onde paternalismo e moralismo se justapõem via a vaga noção de ‘dano moral’): é sempre uma boa razão em suporte a uma determinada proibição que ela seja necessária para impedir danos morais (como opostos a danos físicos, psicológicos ou econômicos) ao próprio autor. (Dano moral é ‘dano ao caráter de alguém’, ‘tornar-se uma pessoa pior’, como oposto à idéia de dano ao corpo, à psique ou ao bolso de alguém)”.(12)

O mesmo autor destaca que “em alguns casos envolvendo duas partes, ambas estão sujeitas a penas, ainda que a lei deseje proteger uma só, o solicitador ou comprador. Leis sobre prostituição que punem ‘João’ e a prostituta satisfazem esta definição”.(13)

Na medida em que o proibicionismo busca impedir que o consumidor tenha acesso a drogas por meio não apenas da repressão ao tráfico, mas também ao uso, adota-se o paternalismo legal moralista de que fala Feinberg.

No entanto, a repressão ao tráfico não pressupõe a punição do consumo pessoal.

Ao contrário do que vem sustentando majoritariamente a jurisprudência brasileira, é perfeitamente possível reprimir o comércio clandestino de drogas ilegais sem que o consumo seja objeto de punição.

É exatamente o que ocorre com a prostituição, que em si, na ordem normativa brasileira, é considerada fato atípico, só assumindo relevância jurídico-penal quando terceiro a explora em detrimento da vítima que se presta à mercantilização do sexo.

Deixar de punir quem consome drogas significa abandonar a vitimização secundária de que o usuário sempre foi alvo (a vitimização primária ocorre por ocasião do consumo causador de autolesão).

Por todo o exposto, não há mais como prevalecer o vetusto – e equivocado – entendimento de que o consumo pessoal de drogas afeta a saúde pública. Tratando-se de conduta autolesiva, não há espaço para a intervenção penal. Por isso, o art. 28 da Lei 11.343/2006 é inconstitucional.

3. A impossibilidade de incriminação do porte de drogas para consumo pessoal no âmbito do domicílio

Subsidiariamente, ainda que se admita a possibilidade de a conduta de portar drogas para consumo pessoal caracterizar algum tipo de risco à saúde pública – ad argumentandum tantum –, é certo que essa possibilidade deve restringir-se aos casos em que o agente porta drogas em local público, pois somente nesta hipótese seria possível vislumbrar alguma possibilidade remota de lesão à saúde pública.

A Lei 6.368/1976, em seu art. 12, § 2.º, inciso II, incriminava a conduta de quem “utiliza local de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, para uso indevido ou tráfico ilícito de entorpecente ou de substância que determine dependência física ou psíquica”.

A Lei 11.343/2006, em seu art. 33, § 1.º, inciso III, deixou de tipificar a utilização de local ou bem de que tem a propriedade, posse etc., para fins de uso de drogas, mantendo a incriminação somente quando a utilização tem por destinação o tráfico.

Pois bem, a atual Lei de Drogas fez uma opção clara ao não incriminar a utilização de local ou bem de que tem a propriedade, posse etc., para fins de uso de drogas. Trata-se de abolitio criminis, cujas consequências merecem análise detida.

Como sabido, a Lei Penal não pune o uso de drogas, mas tão somente as condutas de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo. A alegação de que o porte para consumo pessoal – conduta tipificada no art. 28 da Lei 11.343/2006 – lesa o bem jurídico saúde pública é, como visto anteriormente, insustentável. Como é possível uma conduta direcionada a ofender a saúde individual – o porte destina-se ao consumo pessoal do agente – lesar a saúde pública? Há uma evidente contradição entre a destinação pessoal do consumo e a suposta ofensa, ou mesmo risco de ofensa, à saúde pública.

Assim, a interpretação teleológica da abolitio criminis operada em relação ao crime descrito no art. 12, § 2.º, inciso II, da Lei 6.368/1976, conduz à conclusão de que a novel legislação teve por ratio a proteção constitucional da intimidade e da vida privada, valores que se sobrepõem à repressão penal do porte de drogas para consumo pessoal.

Nessa linha de argumentação, por se tratar de infração penal de ínfimo potencial ofensivo, o crime do art. 28 da Lei 11.343/2006 não admite prisão em flagrante, na exata dicção do que dispõe o art. 48, § 2.º, do referido Diploma Legal (“Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante”). A inadmissibilidade da prisão em flagrante bem demonstra que, no conflito entre valores, deve preponderar a proteção constitucional da intimidade e da vida privada (CF, art. 5.º, inciso X), a qual só cede no caso de o porte de drogas para consumo pessoal dar-se em local público.

Esse entendimento foi pioneiramente defendido por Maurides de Melo Ribeiro,(14) na dissertação Políticas públicas e a questão das drogas: o impacto da redução de danos na legislação brasileira de drogas (2007) e na tese Drogas e redução de danos: análise crítica no âmbito das ciências criminais (2011), com as quais o autor obteve, respectivamente, os títulos de mestre e doutor em Direito Penal pela USP.

Tratando-se, portanto, de delito que tutela – ao menos em tese – a saúde pública, o art. 28 da Lei 11.343/2006 só tem incidência quando a posse da droga se dá em local público. No âmbito inexpugnável da privacidade, a posse de drogas para consumo pessoal é fato atípico.

Notas:

(1) Hassemer, Winfried. Descriminalização dos crimes de drogas. Direito penal. Fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. p. 326-327.

(2) Hirsch, Andrew von. Paternalismo direto: autolesões devem ser punidas penalmente? Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, n. 67, p. 25 e 26, 2007.

(3) Hirsch, op. cit., p. 19-21.

(4) Idem, p. 20-21.

(5) Idem, p. 21.

(6) Posse de droga, privacidade, autonomia: reflexões a partir da decisão do Tribunal Constitucional argentino sobre a inconstitucionalidade do tipo penal de posse de droga com a finalidade de próprio consumo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT, n. 87, p. 100, 2010.

(7) Hirsch, op. cit., p. 14.

(8) Hassemer, op. cit., p. 328-329.

(9) Dworkin, Gerald. Paternalism. In:Feinberg, Joel (Coord.). Philosophy of Law. Beltmont: Wadsworth, 1986. p. 230.

(10) Silveira, Renato de Mello Jorge. Tipificação criminal da violência de gênero: paternalismo legal ou moralismo penal? Boletim IBCCRIM, n. 166, set. 2006.

(11) On Liberty, The Pennsylvania State University, 2006, Chapter 4 “Of the limits to the authority of society over the individual”, p. 74 e ss.

(12) Harmless wrongdoing: The Moral Limits of the Criminal Law. Oxford: Oxford University Press, 1990. v. 4, p. XX, apud ESTELLITA, Heloisa. Paternalismo, moralismo e direito penal: alguns crimes suspeitos em nosso direito positivo. Boletim IBCCRIM, n. 179, out. 2007.

(13) FEINBERG, apud ESTELLITA, op. cit., com a observação da autora de que “este não é o caso do Direito Penal brasileiro que não pune a prostituição em si mesma, o que, talvez, possa explicar a severidade das penas para a parte, que é a única punida, nos crimes indicados acima e abaixo”.

(14) Presidente da Comissão Nacional de Política de Drogas do IBCCRIM.

Cristiano Avila Maronna
Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP.
Diretor do IBCCRIM.
Advogado.



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