Fernanda Regina Vilares
Bruno Salles Pereira Ribeiro, Caroline Braun, Cecilia Tripodi e Renato Stanziola Vieira
Autor: Thiago Bottino
No dia 9 de dezembro de 2011, o Poder Executivo encaminhou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2.902/2011, que modifica o regime das medidas assecuratórias patrimoniais no Código de Processo Penal (CPP), criando uma nova medida cautelar denominada “indisponibilidade de bens” em substituição aos institutos do sequestro, arresto e hipoteca legal (arts. 125 a 144).
A necessidade de aprimoramento dessas medidas pode ser considerada uma unanimidade. Todos aqueles que militam na seara criminal (advogados, defensores, juízes, membros do Ministério Público e policiais) sabem muito bem que as cautelares patrimoniais são muito pouco utilizadas e, quando o são, não atendem nem aos interesses do Estado (quando se trata de assegurar o perdimento dos proveitos do crime), nem da vítima (na hipótese de reparação do dano causado pelo crime) e nem do acusado (que mesmo sendo inocente está sujeito a sofrê-las, em virtude de sua natureza cautelar).
Pesquisa realizada pela Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito Rio), que reuniu dados empíricos e teóricos sobre o funcionamento das medidas assecuratórias, afirma que a desatualização das medidas para bloquear bens foi afirmada por 82% dos magistrados ouvidos.(1) Outro dado aferido na pesquisa (e que reforça essa constatação) foi a baixa utilização das medidas pelos magistrados: dentre as sentenças proferidas entre agosto de 2008 a agosto de 2009, apenas 4% dos magistrados que participaram da pesquisa decretaram a indisponibilidade dos bens com vistas à reparação do dano (medidas de hipoteca legal e arresto) e apenas 6% decretaram medida similar (sequestro) com objetivo de assegurar que o proveito do crime fosse perdido em caso de condenação.
E não é difícil diagnosticar os motivos do mau funcionamento dessas medidas, sendo o mais óbvio a sua desatualização. Afinal, desde a edição do CPP, há mais de 70 anos, a única reforma pela qual passaram essas medidas foi meramente “cosmética” com a alteração da nomenclatura das medidas (Lei 11.435/2006).
Desde a edição do CPP, em 1941, várias foram as iniciativas de reforma pontual, parcial ou total da legislação processual brasileira. Devido ao seu grande número, não é pertinente citar cada um dos projetos que trataram das reformas pontuais ou parciais do Código, mas cumpre registrar as iniciativas de reforma completa do sistema processual penal brasileiro:
Comissão Hélio Tornaghi, cujo projeto de reforma apresentado em 1963 não chegou a ser levado ao Legislativo;
Anteprojeto Frederico Marques, apresentado em 1970, posteriormente transformado no PL 633/1975, mas retirado do Congresso;
Anteprojeto Rogério Lauria Tucci, apresentado em 1981 e transformado no PL 1.655/1983 e igualmente retirado do Congresso;
Comissão Sálvio de Figueiredo Teixeira, que apresentou uma proposta de reforma total que foi posteriormente dividida pela comissão sistematizadora em 16 anteprojetos separados, os quais foram apresentados em 1994. Apenas um desses projetos foi aprovado pelo Congresso Nacional, sendo os demais retirados pelo Poder Executivo. No entanto, nenhum deles tratava das medidas assecuratórias.
Comissão Ada Pellegrini Grinover, instituída em 1999, optou por apresentar textos separados, que resultaram em oito anteprojetos (quase todos já aprovados pelo Congresso Nacional), sendo certo, no entanto, que, mais uma vez, as medidas assecuratórias ficaram de fora da proposta de reforma.
Ora, as mudanças ocorridas nesses 70 anos (sobretudo na integração dos serviços financeiros mundiais, nos avanços na área de telecomunicações e no esmaecimento das fronteiras entre os países gerado pela globalização) tiveram impacto profundo na realidade socioeconômica brasileira, sobretudo no que tange à facilidade de aproveitamento e ocultação, pelo autor do crime econômico, do proveito de seu crime, o que por si só justificaria a necessidade de atualização da legislação.
Mas assim como os projetos de reforma global que o antecederam, o PLS 156/2009 (elaborado por uma Comissão de Juristas indicada pelo Senado Federal), em pouco modifica esse cenário.(2) Segundo o próprio relator do PLS 156/2009 no Senado, Senador Renato Casagrande, ao comentar essa parte do texto apresentado pela Comissão de Juristas, “Em que pesem alterações na redação de alguns dispositivos, o que se percebe é que prevaleceu a disciplina do atual diploma”.(3)
A principal inovação é a criação de uma medida cautelar genérica que antecederia a decretação das medidas cautelares específicas, chamada “indisponibilidade”. Trata-se de uma “medida assecuratória” para aplicação das demais “medidas assecuratórias”, já que poderia ser decretada mesmo sem indícios da origem ilícita dos bens. Além da fragilidade do pronunciamento judicial nessas circunstâncias, a inovação peca ao ampliar ainda mais a multiplicidade de medidas, cada uma com sua particularidade. Por sua vez, o PL 2.902/2011 unifica todas as medidas em uma só, o que facilita a compreensão de seu funcionamento.
Outra inovação contida do PLS 156/2009 é a possibilidade de alienação antecipada dos bens, medida também contemplada no PL 2.902/2011, mas com sensíveis diferenças, que tornam este último mais completo: (1) o PLS 156/2009 não prevê procedimentos claros para a conduta de avaliação dos bens; (2) o PLS 156/2009 não prevê mecanismos que assegurem o contraditório e a ampla defesa do acusado durante o procedimento de arrecadação, avaliação e alienação dos seus bens; (3) o PLS 156/2009 peca ainda por não disciplinar o modo de administração dos bens não deterioráveis.
Além da desatualização, outro motivo pelo qual as medidas atuais são ineficientes é sua incompatibilidade com a Constituição de 1988, que trouxe mais garantias ao acusado. Nesse ponto o projeto é muito cuidadoso, conceituando expressamente a indisponibilidade como medida cautelar e exigindo a demonstração de prova da materialidade do crime e indícios de autoria (como na prisão cautelar), além de indícios de comportamento do detentor ou proprietário dos bens tendente a se desfazer destes.
O CPP atual exige apenas o fumus boni iuris, como também ocorre com o PLS 156/2009. Ambos pecam por não tratarem de uma exigência constitucional derivada do princípio da presunção de inocência. Além disso, a doutrina é uníssona ao considerar que o periculum in mora é requisito inerente à natureza cautelar da medida.
O PL 2.902/2011 modifica esse cenário, pois elenca como requisitos para a aplicação da medida de indisponibilidade de bens, direitos e valores: I – indícios da proveniência ilícita dos bens, direitos e valores, ressalvada a hipótese de reparação do dano; II – prova da materialidade do crime e indícios suficientes de autoria; e III – indícios de comportamento do detentor ou proprietário dos bens, direitos ou valores tendente a se desfazer destes ou utilizá-los para a prática de infração penal.
Certamente a ineficácia do atual regime de medidas cautelares alimenta a preferência dos juízes por mecanismos de lege ferenda, traduzido pela demanda pela aplicação de um “poder geral de cautela” por parte de 83% dos juízes entrevistados pela equipe da FGV Direito Rio, sendo que 17% do total manifestaram preferência pela existência apenas desse instituto, sinalizado a imprestabilidade das atuais medidas assecuratórias.
Esses números servem como importante alerta para o equilíbrio dos Poderes da República, já que o uso de institutos ainda não legislados como mecanismo de restrição de direitos acarreta grave risco à segurança jurídica. Se o Legislativo não promover as mudanças necessárias o Judiciário não terá à disposição meios de enfrentar as situações cotidianas e se verá no dilema de deixar de aplicar medidas assecuratórias ou aplicar medidas inominadas, diferentes daquelas aplicadas por outros juízes, mais ou menos gravosas e sem critérios claros e objetivos. Qualquer desses dois caminhos ameaça o indivíduo, a sociedade e o Estado.
Por fim, não se trata de fazer apologia ao recrudescimento da lei penal – muitos poderão criticar o PL 2.902/2011 porque uma de suas finalidades é dotar as cautelares patrimoniais de maior eficácia e facilitar sua aplicação.(4)
A reforma dessa legislação é necessária para resgatar a confiança da população nesse aspecto particular do funcionamento do sistema penal, marcado pela ineficiência. Dados do Sistema Nacional de Bens Apreendidos, mantido pelo Conselho Nacional de Justiça, mostram que os bens apreendidos pela Justiça em todo o país somam R$ 2,2 bilhões. Os veículos representam a maior parcela (R$ 1,4 bilhões) seguidos pelos imóveis (R$ 422 milhões). Alguém duvida que muito em breve todos esses bens estarão seriamente depreciados, com perda substancial do seu valor, prejudicando a parte que ganhará a ação, seja ela o Estado ou o indivíduo?
NOTAS
(1) O inteiro teor do relatório de pesquisa está disponível no sítio do Ministério da Justiça:
(2) O PLS 156/2009 foi aprovado no Senado e enviado à Câmara dos Deputados em 22.12.2012, sob o número 8.045/2011. Em 05.01.2011, ocorreu o apensamento do PL 7.987/2010, que também propõe uma reforma completa do CPP.
(3) Relatório final disponível em:
(4) Quando se fala em “facilitar a aplicação”, não significa diminuir as garantias individuais nem ampliar as hipóteses de sua decretação, mas simplificar os procedimentos, tornando-os racionais.
Thiago Bottino
Doutor em Direito.
Professor Adjunto de Direito Penal e Processual Penal da FGV Direito Rio.
Professor Adjunto de Direito Penal e Processual Penal Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
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