INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 231 - Fevereiro /2012





 

Coordenador chefe:

Fernanda Regina Vilares

Coordenadores adjuntos:

Bruno Salles Pereira Ribeiro, Caroline Braun, Cecilia Tripodi e Renato Stanziola Vieira

Conselho Editorial

Editorial

EDITORIAL - O iluminismo não chegou à luz

A guerra às drogas foi implementada com base no paradigma proibicionista que prega o não uso de certas substâncias como único objetivo a ser perseguido. Trilhões de dólares foram gastos, centenas de milhares de seres humanos foram mortos ou encarcerados, mas o objetivo de construir um mundo livre de drogas fracassou.

Relatórios do Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC) informam que a produção, o comércio e o consumo de drogas ilegais vêm aumentando: apesar da proibição, as drogas ilegais nunca foram tão abundantes, baratas e acessíveis como hoje.

Em São Paulo, governo e prefeitura decidiram deflagrar uma operação de “dor e sofrimento” à população de rua que ocupa a região central da cidade, no bairro da Luz, conhecida como “cracolândia”, com o objetivo de reprimir o tráfico de crack no local, de modo a impelir usuários da substância à abstinência e, com isso, encorajá-los a aderir a programas de tratamento.

Para tanto, a Polícia Militar ocupou a região como se lá houvesse um grave distúrbio a ser enfrentado manu militari: bombas de efeito moral, disparos de projéteis de borracha e todo um aparato bélico absolutamente desproporcional e inadequado, que fomenta a violência e outras formas de desrespeito a direitos humanos.

Não se pode negar que a situação caótica existente na região, marcada pelo prolongado abandono, exige uma intervenção que restabeleça a normalidade. Contudo questão social – no caso do crack, de evidente exclusão social – como caso de polícia, além de violar a Constituição, é ineficaz, já que não há qualquer evidência científica capaz de atestar que a abstinência forçada encoraja a busca por tratamento.

Ademais, o modelo militarizado, no qual a PM é força de reserva do Exército, vê o cidadão como inimigo e a cidade como território a ser ocupado. A polícia deve ser desmilitarizada, unificada sob a égide do poder civil e repensada para agir em um Estado Social e Democrático de Direito: como longa manus do Estado, ela existe para proteger o cidadão e não para oprimi-lo ou torturá-lo.

A intervenção da PM não foi capaz de impedir o tráfico na região e ainda causou um êxodo migratório de usuários em busca da droga em outros locais da cidade. A diáspora provocou a “procissão do crack”, que não apenas favorece a especulação imobiliária, como também torna visíveis dramas sociais que uma governança voltada exclusivamente para os mais ricos gerou.

Essa política higienista, que pretende criar um cordão sanitário no centro de São Paulo, propõe, ao lado da abstinência forçada, também a internação involuntária em massa como solução para a dependência de crack.

O êxito da internação involuntária é mínimo – e, por isso mesmo, só se deve aplicá-la em casos excepcionais –,

sem falar na precariedade da insuficiente estrutura estatal. Também aí parece haver o predomínio de interesses privados sobre o interesse público: ante a incapacidade estatal de acolher tamanho contingente, clínicas particulares serão chamadas para suprir o excedente, mediante remuneração.

Não se pode olvidar que a Lei 10.216/2001 (Lei Antimanicomial, que rejeita o modelo hospitalocêntrico de tratamento da doença mental), consagra, entre outros, os direitos de ser tratado com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade e de ser protegido contra qualquer forma de abuso.

Perseguir a abstinência como meta única ignora a realidade de que existem pessoas que usam drogas e que não querem ou não conseguem interromper o uso.

Em relação a essas pessoas, há estratégias de redução de danos – como, por exemplo, as terapias de substituição –

capazes de incrementar a qualidade de vida e diminuir riscos e mesmo de encorajar a adesão ao tratamento.

Pregar a abstinência e a internação involuntária são iniciativas que descortinam uma opção política ineficaz, que aprofunda o apartheid social em que nos acostumamos a viver. A complexidade da questão das drogas – e do crack, em especial – exige uma intervenção baseada no humanismo e na tolerância, não na segregação e no autoritarismo. O foco deve ser a saúde e a reinserção social. Tratar doença como caso de polícia revela a insanidade do proibicionismo e da guerra às drogas.

Segundo Marx, a história se manifesta como tragédia e se repete como farsa. Na Idade Média, os loucos detidos pelas autoridades europeias eram confiados a barqueiros que se lançavam ao mar sem jamais ter o direito de aportar em terra firme (Stultifera Navis ou “Naus dos Insensatos”).

O confinamento e a ideia subjacente de devolver os indesejáveis usuários de crack às suas respectivas cidades de origem, corolários desta deplorável iniciativa, representam um retorno ao estado pré-moderno, período conhecido como Idade das Trevas. No bairro da Luz, em pleno século XXI, assistimos, perplexos, à reencarnação da escuridão e torcemos, esperançosos, pela tardia chegada do Iluminismo.



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