Mariângela Gama de Magalhães Gomes
André Pires de Andrade Kehdi, Andréa Cristina D’Angelo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira e Ra
QUARTA CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
APELAÇÃO CRIMINAL N° 2006.059.5356.
RELATORA: DESEMBARGADORA GIZELDA LEITÃO TEIXEIRA.
IMPETRANTE: Dr. NELIO ROBERTO SEIDL MACHADO.
PACIENTE: M.N.A.
AUTORIDADE COATORA: JUÍZO DE DIREITO DA 23ª VARA CRIMINAL DA CAPITAL.
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Eminente Relatora,
a
Egrégia Câmara:
Cuida a hipótese de habeas corpus impetrado pelo advogado NELIO ROBERTO SEIDL MACHADO, em favor de MARCELO NUNES DE ALENCAR, aduzindo, em síntese, que o paciente está sofrendo constrangimento ilegal, por parte do Juízo de Direito da 23ª Vara Criminal da Capital, em razão da falta de justa causa para a ação penal a que responde naquele Juízo de Direito, bem como por ter sido afrontado o preceito do art. 514 do Código de Processo Penal, porquanto não foi dado ao paciente, acusado de crimes funcionais, o direito de apresentar defesa prévia antes do juízo de delibação quanto ao recebimento da denúncia. Postula, ao final, a concessão da ordem de habeas corpus, em caráter liminar e definitivo, para que seja trancada a ação penal ou, alternativamente, para que seja anulada a decisão de recebimento da denúncia relativamente ao ora paciente, garantindo-lhe a resposta por escrito de que trata o mencionado art. 514 do Código de Processo Penal.
A liminar foi deferida por essa douta Relatoria, que determinou o sobrestamento do feito até julgamento final do writ, com a extensão dos seus efeitos aos demais co-réus (fls. 97/99), em decisão que merece encômios, não apenas pela fundamentação, mas pelo equilíbrio e prudência.
As informações foram dispensadas por essa Relatoria, tendo sido requisitados os autos da ação penal, os quais foram apensados aos presentes autos.
É o relatório, em apertada síntese. Passo a opinar.
A hipótese objeto desta ação constitucional apresenta singularidade e extremada complexidade, dado que o litígio, no que se refere às exigências procedimentais e processuais, encontra intensa divergência na doutrina e na jurisprudência pátrias.
Ademais, torna-se ainda mais difícil o deslinde da causa quando atingido pela peça acusatória personagem notório da política fluminense, que não apenas fez mas é parte integrante da própria história, tendo sido Prefeito da cidade que é a capital do Estado do Rio de Janeiro e o Governador deste.
Sem dúvida, aqueles que conheceram e conhecem a trajetória profissional e política do ora paciente, notadamente a sua luta em prol da implantação no Brasil de um Estado Democrático de Direito e em defesa dos Direitos Humanos, luta essa que lhe custou não somente a cassação de mandato de senador a que foi ungido pelo povo, bem como sofrida passagem pelos cárceres da ditadura, vê-lo acusado em sede penal não tem como não se sensibilizarem. Isso não significa qualquer crítica ou reparo à atuação dos membros do Ministério Público que subscreveram a denúncia ora atacada, porquanto realizaram trabalho sério, independente e correto, sem prejuízo das eventuais divergências que a seguir serão abordadas.
Da mesma forma, é para este Procurador de Justiça uma satisfação profissional rever na justiça estadual o trabalho do ilustre impetrante, autor de obra de referência em sede de ações mandamentais intitulada “Liberdade, Liberdade, Habeas Corpus sobre Nós”, além de ser merecidamente reconhecido como um causídico que enobrece a atividade jurídica pela sua extremada capacidade e inteligência.
Por tal razão, não obstante a satisfação afirmada anteriormente, se vê este Procurador de Justiça constrangido, mas obrigado a repelir as injustas agressões verbais dirigidas aos membros do Ministério Público que ofereceram a denúncia impugnada, muito embora os excessos constatados, dúvida não há, pelo menos assim penso, devem ser debitados ao amor à causa, que muitas vezes afasta a temperança e o equilíbrio necessários ao enfrentamento da adversidade.
Com efeito, o douto impetrante em algumas passagens da inicial desta ação de habeas corpus chegou, ainda que implicitamente, a acusar os Promotores que subscreveram a denúncia de prevaricadores, e isso no mínimo, quando sustentou que a denúncia somente não imputou crime previsto na Lei de Licitações, optando-se por crimes funcionais tipificados no Código Penal, para evitar a prescrição daquele, cuja sanção cominada é inferior e dado que o paciente já é um octogenário (fls. 15, primeiro parágrafo). Não é só. Sustenta o impetrante, ainda, que os Promotores de Justiça deixaram de incluir na denúncia o Sr. Luiz Paulo Corrêa da Rocha, exercente do cargo de deputado estadual, porque, nessa hipótese, não teriam eles atribuição para a causa (fls. 19, terceiro parágrafo e fls. 23). Outra prevaricação imputada, sem dúvida.
Na ânsia de se insurgir contra a denúncia, o douto impetrante foi além. Alegou, embora nos autos não haja prova suficiente a respeito, que o procedimento administrativo restou paralisado por cerca de dois anos na Promotoria de Investigação Penal, e, num repente, eis que surge a denúncia, insinuando o impetrante, à toda evidência, que os Promotores de Justiça, por serem jovens e recém ingressos na Instituição e, portanto, não titulares de órgão de execução, ali foram postos para especialmente oferecerem a denúncia ora atacada (fls. 24). Uma vez que os referidos Promotores de Justiça, justamente por não serem titulares de qualquer órgão de execução, foram designados para os citados órgãos pela Chefia Institucional, como determina a lei, é de se imaginar que a impetração pretende insinuar que até mesmo o Procurador-Geral de Justiça que os designou tinha a prévia intenção de ver deflagrada a ação penal em face do paciente.
Não posso, pois, deixar de repelir, com toda veemência, as açodadas argumentações, não obstante, mais uma vez, reconhecer a atuação sempre vigorosa do nobre causídico, o que é próprio daqueles que pretendem realizar a justiça, mesmo que particular.
Dito isso, vamos aos fatos.
O ora paciente foi denunciado juntamente com dezesseis outras pessoas, dentre elas Marco Aurélio Barbosa de Alencar, seu filho, por crime de peculato, sendo o paciente e três co-réus também denunciados pelo crime de corrupção passiva.
De acordo com a denúncia, o paciente, na então condição de Governador do Estado, transferiu toda a responsabilidade e coordenação da propaganda institucional do Estado, que antes era realizada pelo Gabinete Civil da Governadoria, para a Secretaria de Estado de Fazenda, então ocupada pelo co-réu Marco Aurélio Barbosa Alencar. Com isso, criaram-se as condições, segundo a denúncia, para que parte dos ganhos (que deveria ser recebida pelas empresas de comunicação vencedoras em diversos procedimentos licitatórios para promover as realizações institucionais e governamentais) fosse repartida com a empresa de comunicação pertencente ao co-réu José Eduardo Cavalcanti de Mendonça, que não havia participado de nenhum certame licitatório, mas que fora contratada pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) para realizar a campanha do então Governador e candidato à reeleição.
Evidente que todos os argumentos trazidos à colação na impetração dizem respeito ao mérito da causa, sendo vedado, nesta oportunidade, qualquer análise mais profunda quanto à existência ou não dos crimes de corrupção passiva e de peculato. Contudo, permito-me, sem adentrar no referido mérito, consignar que não me sensibiliza o argumento de que o douto Órgão Especial desse egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tenha arquivado expediente que lhe foi direcionado pela Assembléia Legislativa, pois o acórdão – juntado por cópia com a impetração e cujo original se acha entranhado nos autos apensados a estes – é claro o bastante no sentido de que o arquivamento do pedido de quebra de sigilo bancário teve duas únicas razões: não ser aquele Órgão competente para o exame do que fora pedido, porque, à época do seu aforamento – 1999 –, não havia nenhuma pessoa com prerrogativa a justificar aquele foro privilegiado, e, de igual maneira, que a Comissão Parlamentar de Inquérito já estava com o seu prazo de existência legal decorrido quando formulado o requerimento. Vê-se, pois, que o alegado arquivamento em nada atinge ou enfraquece a peça acusatória.
Ademais, para a denúncia formulada existem fundadas razões e justa causa evidente que a respaldam, bem como indícios suficientes a obrigar a deflagração da ação penal.
De fato, ao contrário do que sustenta a impetração no sentido de que o ora paciente não concorreu à reeleição em nada invalida a denúncia, no ponto, tendo em vista que a testemunha Armando Dias Cardoso Pires, dono da única agência de comunicação que não aceitou a imposição de repartir lucros com a empresa do co-réu José Eduardo Cavalcanti de Mendonça, quando ouvido na Assessoria da Procuradoria-Geral de Justiça (primeiro volume, fls. 119, terceiro parágrafo), afirmou que, em julho de 1997, “logo após haver sido transferida a responsabilidade da comunicação do Governo estadual do Gabinete Civil para a Secretaria de Fazenda, os representantes das sete empresas foram convidados para uma reunião na Secretaria de Fazenda com o novo responsável pela comunicação do Governo, Dr. MARCO AURÉLIO ALENCAR. Que Durante a reunião, ... o Secretário MARCO AURÉLIO disse aos representantes das agências que, em função da candidatura do Governador à reeleição, seria importante unificar a comunicação governamental à eleitoral. Que empresa do publicitário DUDA MENDONÇA já havia sido contratada para a campanha eleitoral e que gostaria que as agências contratadas assinassem o contrato de assessoria com ela. Foi, então, distribuída uma minuta do mencionado contrato, no qual as agências repassariam 50% de suas receitas provenientes dos contratos com o Governo estadual para aquela empresa...”.
Há que se destacar, por oportuno, que a referida reunião ocorreu no dia 14 de julho de 1997, portanto, um mês após a promulgação e entrada em vigor da Emenda Constitucional n.º 16, de 04 de junho de 1997, que introduziu na ordem jurídica pátria o instituto da reeleição para as Chefias dos Executivos federal, estadual e municipal.
Só isso é o bastante para se ver – desde que se tenha olhos – que a denúncia está respaldada por prova oral, conquanto se admita indiciária, porque ainda não ratificada em sede judicial. Há mais. Somente com a instrução criminal, sob o crivo do contraditório, é que se poderá verificar se realmente foi mera coincidência, como afirma o co-réu CLÁUDIO ROBERTO SOARES BENTES, o fato de ter se retirado da sociedade de uma das empresas vencedoras no procedimento licitatório, e isso em 1994, para assumir cargo no Governo estadual, diretamente ligado a Secretarias de Estado, para, em 1997, exonerar-se da função pública de Subsecretário de Planejamento e retornar à antiga sociedade comercial que permaneceu prestando serviços para o Governo na área da propaganda: “Que foi só coincidência o fato de sair da empresa para entrar no governo, e após sair do governo, entrar na empresa” (fls. 51, dos autos do requerimento de quebra de sigilo bancário que tramitou no colendo Órgão Especial desse Tribunal de Justiça).
Da mesma forma, há fortes indícios da existência dos fatos descritos na denúncia quando se percebe que outro co-réu, PEDRO ALOÍSIO MARIA FERNANDES NONATO DA SILVA, admite, ao menos implicitamente, a existência de irregularidades ou anormalidades na subcontratação da empresa do co-réu JOSÉ EDUARDO CAVALCANTI MENDONÇA: “Reconhece não ser normal o governo indicar para as empresas contratadas a subcontratação de uma terceira empresa para assessorar aquelas” (fls. 49, segundo parágrafo, dos autos do requerimento de quebra de sigilo bancário que tramitou no colendo Órgão Especial desse Tribunal de Justiça).
Merece, também, ser destacado que os co-réus JOMAR PEREIRA DA SILVA e DEODÔNIO CÂNDIDO DE MACEDO NETO apresentam fortes divergências em seus respectivos depoimentos no que se refere às atestações de trabalhos realizados (como se vê a fls. 33).
Recomenda a prudência que por aqui se pare, pois já demasiados os indícios que não apenas autorizariam mas imporiam o recebimento de denúncia, não fosse o desrespeito ao princípio da garantia da ampla defesa que, no caso específico dos autos, é expresso em termos de dicção normativa, bem como da inoportuna inclusão do ora paciente na condição de agente criminoso.
Os fatos ditos criminosos teriam ocorrido no ano de 1997. Foram objeto de procedimentos investigatórios no âmbito legislativo (foi realizada uma Comissão Parlamentar de Inquérito “para investigar possíveis irregularidades nos gastos com publicidade do Governo Estadual nos períodos de 1997 e 1998”, através da Resolução n.º 11, de 1999, da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro); policial (foi instaurado inquérito na 10ª Delegacia de Polícia com indicação de infração ao art. 316 do Código Penal); e ministerial (foi instaurado procedimento por determinação do Procurador-Geral de Justiça face a conclusão do relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito da ALERJ – fls. 370/379 do segundo volume). Além disso, a ação penal ora impugnada foi instruída com traslado de peças de Ação Civil Pública que tem como objeto apurar eventuais improbidades decorrentes dos mesmos fatos (fls. 638/691 do quarto volume) e de parecer da Procuradoria-Geral do Estado que, inclusive, sugere o exame pelo Ministério Público dos fatos em tese considerados criminosos (fls. 06/12 do segundo apenso que instrui a ação penal).
Em verdade, a denúncia encontra-se instruída com peças de expedientes idôneos. Entretanto, a diversidade de expedientes investigatórios e a significativa documentação não impediram que se cometesse lamentável lapso que não apresenta justificativa plausível, com todas as vênias possíveis. É que dos 17 (dezessete) denunciados, apenas 09 (nove) foram ouvidos pelo menos uma vez (PEDRO ALOÍSIO MARIA FERNANDES NONATO DA SILVA; ANTÔNIO CLÁUDIO NOGUEIRA DE CARVALHO; JOMAR PEREIRA DA SILVA; ARMANDO JOSÉ STROZEMBERG; CLÁUDIO ROBERTO SOARES BENTES; JOSÉ EDUARDO CAVALCANTI DE MENDONÇA; DEODÔNIO CÂNDIDO DE MACEDO NETO; MARCO AURÉLIO BARBOSA DE ALENCAR; e ROBERTO MEDINA.
De ser destacado, igualmente, que houve deflagração de Ação Civil Pública, como já se disse, cujo resultado final é desconhecido, porém inexistindo qualquer indicativo que os réus nessa ação civil tenham todos, também, sido ouvidos no respectivo inquérito civil.
No caso do ora paciente, dúvida não há em constatar-se o equívoco da nobre autoridade apontada coatora quando repeliu o pleito defensivo de concessão de prazo para a defesa prévia ao argumento de que: “de qualquer modo, impende registrar que os denunciados já tiveram oportunidade de se manifestarem sobre os fatos narrados, posto que foram ouvidos no curso das investigações que tiveram tramitação perante a Comissão Parlamentar de Inquérito e o Ministério Público Estadual, o que, por si só, afasta a necessidade de notificação preliminar...nesse passo, inaplicável ao caso em tela, o expediente previsto no art. 514 do Código de Processo Penal” (fls. 842/843, quarto volume – os destaques não são do original).
A impetração, aqui, tem inteira razão.
Como se percebe, o ora paciente jamais foi cogitado em qualquer procedimento investigatório, seja no âmbito legislativo, policial ou ministerial, repita-se, como praticante de ato a ser investigado, tanto assim que nunca foi relacionado como suspeito dos atos apurados ou indicado como testemunha a ser ouvida sobre tais fatos.
Razão pela qual a denúncia ao acusá-lo da prática dos crimes de corrupção passiva (art. 317 do Código Penal) e peculato (art. 312 do Código Penal), fulcrada na relação familiar do ora paciente com o co-réu Marco Aurélio Barbosa Alencar e no suposto atuar livre e consciente ao planejar e dirigir “mediante domínio final e funcional dos fatos narrados” (fls. 02-G, in fine, primeiro volume) pela condição de Governador, comete lapso de interpretação fática e jurídica, dada a generalidade das funções exercidas por qualquer chefe do Poder Executivo de qualquer ente da federação.
Aplaude-se, no ponto, a ousadia própria dos jovens e que contrasta muitas vezes com a acomodação dos mais velhos, ditos experientes, a teoria ou dogmática penal por eles abraçada, isto é, a da chamada “domínio final do fato”.
Aqui, todavia, devo admitir que a pouca vivência com questões envolvendo a gestão da coisa pública levou por certo os nobres Promotores de Justiça a imaginar - e o raciocínio desenvolvido por eles há que se admitir de lógica evidente – que a condição de Governador impõe responsabilidade total pelos atos praticados por seus subordinados.
Não é bem assim, porém.
É necessário, para efeitos penais, uma prova efetiva e não meramente empírica do suposto domínio final dos atos praticados e ditos criminosos. Veja-se que não se pode retirar do Comandante Geral da Polícia Militar ou de um comandante de um batalhão o domínio final que possui (possuem) em relação a qualquer operação militar, desde que oficial e portanto autorizada, ocorrida em uma área carente e cujo ingresso de milicianos tenha provocado a morte de alguém. Nem por isso costumam ser responsabilizados penalmente. Sobre isso, pode-se ainda trazer à colação dois fatos que tiveram intensa repercussão na mídia, um deles bastante recente, nos quais a teoria do domínio final se fez, ao menos em tese, afastada pelo Ministério Público para evitar-se injustiças: durante o governo do Presidente Fernando Collor de Mello, surgiram suspeitas de crime cometido pela Presidente da Legião Brasileira de Assistência, ligada à Roseane Collor, então responsável por parte da área social daquele governo e, na época, esposa do Presidente da República, que a havia nomeado para tal cargo. Os fatos foram objeto de formal denúncia proposta pelo Ministério Público Federal sem que se tenha incluído no pólo passivo o ex-Presidente, não obstante a sua relação familiar com uma das rés.
Há cerca de 04 meses, o Procurador-Geral da Republica ofereceu denúncia contra 40 pessoas por diversos crimes, entre eles os de corrupção, peculato e formação de quadrilha ou bando. No rol dos denunciados, encontra-se o cidadão José Dirceu, ex-Ministro Chefe da Casa Civil e considerado o mais poderoso assessor do Presidente da República que o nomeou. Ninguém desconhece a relação antiga e íntima entre o Presidente Luís Inácio Lula da Silva e o co-fundador do Partido dos Trabalhadores José Dirceu, cuja importância para o governo era (e ao que parece ainda o é) notória. Entretanto, nem por isso o Presidente Lula foi denunciado sob a égide ou fundamento de que tinha o domínio final de todos os atos ditos criminosos, muito embora a relação direta com todos os envolvidos era indiscutível.
É exatamente por esse aspecto, isto é, o de não se poder generalizar em sede penal, que não se vislumbra justa causa para que o ora paciente figure no pólo passivo da relação processual penal, sem prejuízo de que tal venha a ocorrer, por força de natural aditamento, se e quando se fizer provado minimamente qualquer responsabilidade direta pelos fatos objeto da ação penal impugnada.
Destarte, o parecer se dirige para a concessão da ordem, no sentido de se trancar a ação tão somente em relação ao réu (uma vez que a denúncia já foi recebida e ainda não houve desconstituição do referido ato judicial) Marcelo Nunes de Alencar.
Caso, entretanto, outro seja o entendimento desse douto Colegiado, pensa esta Procuradoria de Justiça que o pedido alternativo constante da ação constitucional, no sentido de que seja anulada a decisão que recebeu a denúncia para permitir que o ora paciente apresente por escrito a defesa preliminar, seja deferida e estendida aos demais co-réus, mesmo os que não são ou foram exercentes de função pública.
Com efeito, como já afirmado ao início do presente parecer, a hipótese objeto desta ação constitucional é singular e tem extremada complexidade, encontrando intensa divergência de posicionamento tanto na doutrina como na jurisprudência.
Sobre isso, bastaria a simples leitura das referências jurisprudenciais constantes do pleito defensivo e da decisão judicial impugnada para que se constate a divergência extremada sobre o assunto no seio do Poder Judiciário brasileiro.
Diga-se mais: se há decisão que entende indispensável a notificação de que trata o art. 514 do Código de Processo Penal (“nos crimes funcionais, é imprescindível a notificação prévia do acusado, cujo escopo é de evitar queixas infundadas contra servidores públicos” – STJ , RT708/374), há aquela que entende desnecessária a referida notificação em caso de existência de inquérito policial (“a notificação do denunciado, para resposta escrita, prevista no art. 514 do Código de Processo Penal, só é necessária quando a denúncia vem acompanhada apenas de documentos ou justificação. Não assim, quando precedida de inquérito policial, que a instrui” – STF, HC 75.600, Informativo de 11.12.98, n.º 95).[1]
De igual maneira, divergem os tribunais quanto à necessidade ou não de intimação do denunciado para oferecer a resposta por escrito quando se tratar de funcionário exonerado ou não mais ocupante do cargo público: I - “se foi no exercício da função pública que o acusado praticou o delito que lhe é atribuído, irrecusável é o seu direito à defesa preliminar a que se refere o art. 514 do CPP, antes do recebimento da denúncia” – (TJSP, RT543/315); II – “o procedimento inscrito no artigo 514 do CPP, somente assegura o direito à defesa preliminar ao denunciado nos crimes funcionais, não se aplicando na hipótese em que o réu não mais exerce cargo público, por força de exoneração” (RSTJ115/514).
No tocante à nulificação, absoluta ou relativa, dos atos judiciais praticados por falta de prévia notificação para a resposta escrita, também o conflito jurisprudencial é marcante: I – “art. 514 do CPP. Falta de notificação do acusado para responder, por escrito, em caso de crime afiançável, apresentada a denúncia. Relevância da falta, importando nulidade do processo, porque atinge o princípio fundamental da ampla defesa. Evidência do prejuízo.” (STF, RT572/412); II – “Crime funcional. Processo.resposta escrita (art. 514 do CPP): Falta. Nulidade relativa. Demonstração de prejuízo. Para que se proclame a nulidade do processo decorrente da supressão do momento destinado à resposta escrita de que fala o art. 514 do CPP cumpre demonstrar o réu o prejuízo que sofreu na apuração da verdade” (STF , RT628/408).
Diante das posições antagônicas, não basta que o intérprete opte por qualquer delas simplesmente. Necessário que justifique fundamentadamente a opção que orienta o seu mister.
No caso deste Procurador de Justiça, a linha hermenêutica adotada é aquela que se faz mais consentânea com o princípio constitucional da ampla defesa, somente se relativizando eventual nulidade no exame do caso concreto.
O assunto merece alguns comentários, ainda que breves, a respeito do disposto no art. 514 do Código de Processo Penal, notadamente sobre os chamados crimes funcionais e os que não são assim considerados, e adjetivação de próprios e impróprios.
O legislador penal, com vistas a assegurar interesses da Administração Pública, adotou, no artigo 327 do CP, conceito extensivo de funcionário público, segundo o qual mesmo aqueles que exerçam função, cargo, ou emprego público de modo meramente transitório poderão ser considerados “funcionários públicos” para os fins da lei penal.
Semelhante artificialidade legislativa tem o condão de, com arrimo na dicção do artigo 30 do Código Penal – que cuida das circunstancias elementares do tipo infringido e que se comunicam a todos os agentes do crime - , permitir que o particular figure como co-autor ou partícipe de crime próprio de funcionário público, o que pode parecer – se evidentemente não o é - contrário à teoria monista do concurso de agentes, que se diz abraçada no artigo 29 do CP.
Malgrado tal equiparação em sede jurídico-penal, o que se verifica é que doutrinária e jurisprudencialmente se veda ao particular sua submissão ao procedimento próprio dos crimes praticados por funcionários públicos (artigos 513 e seguintes do CPP), negando-se a ele, por conseguinte, a possibilidade de apresentação de defesa preliminar antes do ato processual de recebimento ou rejeição da inicial acusatória.
A todas as luzes vê-se a assimetria de tratamento do ente “funcionário público” pelos nossos direitos material e processual: enquanto o primeiro é capaz de estender-lhe os contornos para alcançar o particular, o segundo encampa um conceito restrito e acanhado do que seja funcionário público. Dito de outro modo: há em nosso ordenamento penal e processual penal duas espécies distintas de “funcionário público”.
Tal diferenciação, além de desafiar a lógica, a razoabilidade e a natureza das coisas, parece violar princípios comezinhos de um Estado Democrático de Direito, em especial o princípio constitucional da isonomia. Como ensina CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, em texto de clareza e profundidade invulgares, a igualdade é princípio que visa a um duplo objetivo: de um lado propiciar garantia individual contra perseguições e, de outro, tolher favoritismos. [2]
O eminente professor CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, uma vez mais, merece pendular transcrição de seus ensinamentos acerca do sentido de igualdade, in verbis:
“O ponto nodular para exame da correção de uma regra em face do princípio isonômico reside na existência ou não de correlação lógica entre o fator erigido em critério de discrimen e a discriminação legal decidida em função dele. (...) Com efeito, há espontâneo e até inconsciente reconhecimento de juridicidade de uma norma diferenciadora quando é perceptível a congruência entre a distinção de regimes estabelecidos e a desigualdade de situações correspondentes. De revés, ocorre imediata e intuitiva rejeição de validade à regra que, ao apartar situações, para fins de regulá-las diversamente, calça-se em fatores que não guardam pertinência com a desigualdade de tratamento jurídico dispensado. Tem-se, pois, que é o vínculo de conexão lógica entre os elementos diferenciais colecionados e a disparidade das disciplinas estabelecidas em vista deles, o quid determinante da validade ou invalidade de uma regra perante a isonomia. (...) Esclarecendo melhor: tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é erigido em critério discriminatório e, de outro lado, se há justificativa racional para, à vista do traço desigualador adotado, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade afirmada.” [3]
Assim, há que se admitir a inexistência de critério lógico que possa sustentar a adoção – pela norma do artigo 513 do CPP – de um conceito de funcionário público diverso daquele gizado pelo artigo 327 do CP.
Com efeito, ao se negar ao particular, co-autor ou partícipe de crime próprio de funcionário público, a utilização de direitos previstos no procedimento destinado aos funcionários públicos, está-se violando grosseiramente o princípio da isonomia, à míngua de qualquer elemento de caráter lógico que possa justificar semelhante desequilíbrio de tratamento.
Destarte, visando a evitar tamanha afronta ao princípio da isonomia é que deve ser estendido ao particular o direito de apresentação de defesa preliminar, uma vez que tal ato processual configura óbvia projeção do postulado fundamental da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Sobre o assunto, no ponto, não se pode desconhecer que em matéria de ação originaria dos tribunais, o co-réu que não detém prerrogativa de foro não possui em seu favor o duplo grau de jurisdição. Em outras palavras: ao bônus conferido se exige o mesmo ônus.
O fato de não ter sido incluído na imputação o atual Deputado Estadual LUIZ PAULO CORREIA DA ROCHA (PSDB) – o qual seria o suposto beneficiário do desvio de verbas públicas objeto da imputação – porquanto foi quem efetivamente concorreu ao cargo de Governador do Estado em 1998 – fez com que a ação tramitasse no primeiro grau ou instância. Caso, porém, a ação penal impugnada tivesse incluído tal pessoa no seu pólo passivo, todos os acusados – servidores, ex-servidores e particulares – fariam jus à defesa preliminar, nos termos do artigo 1º da Lei 8.658/93 e do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Daí que pelo princípio constitucional da isonomia impõe que a oportunidade de exercer a defesa preliminar, já prevista em diversos procedimentos disciplinados pela nossa legislação (art. 43, § 1º, da Lei 5.250/67 – Lei de Imprensa; art. 4º da Lei 8.038/90 – Lei dos procedimentos de competência originária dos Tribunais Superiores; art. 81 da Lei 9.099/95 – Lei dos Juizados Especiais Criminais; art. 38 da Lei 10.409/02 – Lei de Tóxicos), seja estendida a todos os co-réus que estão denunciados por crime funcional embora jamais tenham exercido qualquer munus publicum. Note-se que o artigo 395 do projeto de reforma dos procedimentos do CPP (projeto de lei nº 4.207/01), fruto do trabalho da Comissão de reforma do CPP constituída pela Portaria nº 61, de 20 de janeiro de 2000 [4], prevê a defesa preliminar em todos os procedimentos:
Art. 395. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de dez dias, contados da data da juntada do mandato aos autos ou, no caso de citação por edital, do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído.
§ 1º. Na resposta o acusado poderá argüir preliminares e alegar tudo que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e, dependendo o comparecimento de intimação, requerê-la desde logo.
(omissis) [5]
Assinalo minha posição contrária à extensão genérica da defesa preliminar a todos os procedimentos ordinários e sumários, notadamente aqueles cuja denúncia for instruída com inquérito policial instaurado a partir de auto de prisão em flagrante.
De qualquer sorte, como o artigo 514 do CPP prevê a defesa preliminar sem fazer qualquer ressalva expressa quanto ao ex-funcionário, à denúncia baseada em inquérito policial e ao particular acusado de praticar crime próprio de funcionário público, esse dispositivo não pode ser interpretado de forma restritiva, como infelizmente vem ocorrendo, para fins de excluir tais hipóteses, pois se trata de dispositivo que é um corolário lógico da garantia fundamental da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (CR, art. 5º, LV).
Em decorrência da natureza jurídica da sobredita garantia fundamental, é lícito aduzir que o seu desrespeito ensejaria, em tese, a nulidade absoluta do processo judicial, por atipicidade constitucional. Minha posição a respeito é no sentido de que não se há de afastar de cogitar-se de “nulidade relativa” ou de mera “irregularidade”, em razão da dimensão de garantia que tem o preceito constitucional mencionado, por interessar à ordem pública e à boa condução do processo. Despicienda, por conseguinte, a demonstração do prejuízo causado aos defendentes, pois a ocorrência dele é manifesta. Na abalizada lição de ADA PELLEGRINI GRINOVER:
“Não se pode sequer imaginar que o ato processual que infrinja uma norma ou um princípio constitucional seja simplesmente eivado do vício de irregularidade sem conseqüências. Nem se pode imaginar que o vício do ato processual que infrinja a garantia constitucional leve simplesmente a uma nulidade relativa. Exatamente na medida em que os princípios e as normas constitucionais relevantes para o processo têm dimensão de garantia, uma dimensão que interessa à ordem pública e à boa condução do processo, a contrariedade a essas normas constitucionais, de relevância processual, acarreta sempre a ineficácia do ato processual, seja por nulidade absoluta, seja pela própria inexistência.” [6]
A interpretação assim orientada já se verifica nesse Egrégio Tribunal de Justiça:
“HABEAS CORPUS. SERVIDOR PÚBLICO ACUSADO DE COMETER CRIME DE PECULATO SEM QUE LHE FOSSE DADA A OPORTUNIDADE PARA A DEFESA PRELIMINAR. CONCESSÃO DA ORDEM.
1. Se foi oferecida denúncia contra o paciente pelo crime de peculato, sendo-lhe reconhecida a qualidade de funcionário público, sem que, no entanto, lhe fosse assegurada a oportunidade de defesa preliminar, sendo recebida a denúncia antes dessa formalidade essencial, verificando-se flagrante desrespeito à Constituição Federal, no que concerne ao devido processo legal e à ampla defesa, configura-se a legitimidade da pretensão, razão pela qual deve ser concedida a ordem tão-só para admitir ao paciente as prerrogativas do artigo 514 do Código de Processo Penal.
2. "Writ" deferido.” [7]
Quanto à relativização da nulidade a depender da prova do prejuízo, há, como já se verificou, divergências abissais na jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal. De fato, em relatoria do eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE até mesmo a impossibilidade de tal prova já foi assinalada:
“I. STF - HC - Competência originária. Não pode o STF conhecer originariamente de questões suscitadas pelo impetrante - fixação do regime integralmente fechado e de execução provisória da pena - que não foram submetidas ao Superior Tribunal de Justiça, ao qual, em conseqüência, não se pode atribuir a alegada coação.
II - Defesa - Entorpecentes - Nulidade por falta de oportunidade para a defesa preliminar prevista no art. 38 da L. 10.409/02: demonstração de prejuízo: prova impossível (HC 69.142, 1ª T., 11.2.92, Pertence, RTJ 140/926; HC 85.443, 1ª T., 19.4.05, Pertence, DJ 13.5.05). Não bastassem o recebimento da denúncia e a superveniente condenação do paciente, não cabe reclamar, a título de demonstração de prejuízo, a prova impossível de que, se utilizada a oportunidade legal para a defesa preliminar, a denúncia não teria sido recebida.” [8]
De todo evidente que a posição radical do citado acórdão no que se refere a impossibilidade de se fazer prova do prejuízo deve ser atenuada e verificada caso a caso.
Ante todo o exposto, e considerando principalmente que oito dos dezessete denunciados sequer prestaram uma única declaração ou depoimento nos diversos procedimentos investigatórios, o parecer é no sentido da concessão da ordem para que se determine o trancamento da ação penal em relação ao ora paciente e, de ofício, conceda essa egrégia Corte habeas corpus em favor dos demais co-réus para que seja desconstituída a decisão judicial de recebimento da denúncia, para que outra seja proferida, após oportunizar-se a resposta escrita de que trata o art. 514 do Código de Processo Penal.
Rio de Janeiro, 09 de outubro de 2006.
JOSÉ MUIÑOS PIÑEIRO FILHO
Procurador de Justiça
[1] Na hipótese da ação penal impugnada, não se pode ter verdadeiramente como inquérito policial o expediente de fls. 393/406, constante do segundo volume dos autos originais.
[2] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 23. 7ª tiragem. Malheiros: São Paulo, 2000.
[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 38-39.
[4] Integrada pelos seguintes juristas: Ada Pellegrini Grinover (Presidente), Petrônio Calmon Filho (Secretário), Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Miguel Reale Júnior, Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti (posteriormente substituído por Rui Stoco), Rogério Lauria Tucci e Sidney Beneti.
[5] BRASIL. Anteprojetos de lei de reforma do código de processo penal (Legislação e documentos), In: Revista Brasileira de Ciências, São Paulo, n. 33, p. 325, jan./mar. 2001.
[6] GRINOVER, Ada Pellegrini. O sistema de nulidades processuais e a constituição, In: O processo em evolução, p. 35-44. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. Grifamos.
[7] TJ/RJ, 3ª Câmara Criminal, HC 2003.059.03888, Rel. Des. Álvaro Mayrink da Costa, julgado em 14.10.2003.
[8] STF, 1ª Turma, HC 84835-SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 26.08.2005, p. 28. Grifamos.
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