INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 168 - Novembro / 2006





 

Coordenador chefe:

Mariângela Gama de Magalhães Gomes

Coordenadores adjuntos:

André Pires de Andrade Kehdi, Andréa Cristina D’Angelo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira e Ra

Conselho Editorial

Editorial

Violência de gênero: o paradoxal entusiasmo pelo rigor penal

Maria Lúcia Karam

Juíza de Direito aposentada

A partir das últimas décadas do século XX, são notáveis os avanços, no Brasil, como de resto no mundo ocidental, no sentido da afirmação e garantia dos direitos da mulher, da superação das relações de subordinação e construção de nova forma de convivência entre os gêneros, avanços associados não só ao crescimento da participação das mulheres nas atividades econômicas, com sua entrada maciça no mercado de trabalho, coincidente com a expansão do setor terciário da economia, mas também à evolução comportamental e ao questionamento e parcial superação de preconceitos no campo da sexualidade.

No entanto, as significativas transformações ocorridas desde então não lograram alcançar a plena superação da ideologia patriarcal nem mesmo ali onde registradas. A distinção entre tarefas masculinas e femininas não foi eliminada. Ainda há quem suponha que o trabalho profissional das mulheres seria secundário, funcionando apenas como uma complementação do orçamento familiar, de que sua relação com o trabalho seria diferente, de que seriam menos ambicio­sas, que colocariam a maternidade como primeira opção. Isto conduz à desigualdade de salários e de oportunidades de ascensão a postos mais qualificados. A desigualdade se acentua no campo da participação política. Os espaços e postos políticos de poder e decisão subsistem como espaços masculinos, ainda hoje acessíveis a mulheres apenas enquanto exceções.

Os resquícios da ideologia patriarcal, da histórica desigualdade, da discriminatória posição de subordinação da mulher, naturalmente, também subsistem nas relações individualizadas. Embora os atos de agressão de homens contra mulheres nas relações de casais tenham diminuído sensivelmente — redução nitidamente visível em relação aos chamados homicídios passionais no Brasil, quase desaparecidos dos registros do sistema penal —, relações de hierarquização e dominação ainda subsistem, assim subsistindo atos identificáveis como expressão da chamada violência de gênero, isto é, motivados não apenas por questões estritamente pessoais, mas expressando fundamentalmente a hierarquização estruturada em posições de dominação do homem e subordinação da mulher, por isso se constituindo em manifestações de discriminação.

Mas, certamente, o enfrentamento da violência de gênero, a superação dos resquícios patriarcais, o fim desta ou de qualquer outra forma de discriminação não se darão através da sempre enganosa, dolorosa e danosa intervenção do sistema penal, como equivocadamente crêem mulheres e homens que aplaudem o maior rigor penal introduzido em legislações como a nova Lei brasileira nº 11.340/2006 ou sua inspiradora espanhola Ley Orgáni­ca 1/2004.

Esse doloroso e danoso equívoco vem de longe. Já faz tempo que os movimentos feministas, dentre outros movimentos sociais, se fizeram co-responsáveis pela hoje desmedida expansão do poder punitivo. Aderindo à intervenção do sistema penal como pretensa solução para todos os problemas, contribuíram decisivamente para a legitimação do maior rigor penal que, marcando legislações por todo o mundo a partir das últimas décadas do século XX, se faz acompanhar de uma sistemática violação a princípios e normas assentados nas declarações universais de direitos e nas Constituições democráticas, com a crescente supressão de direitos fundamentais.

Mulheres e homens entusiastas do rigor penal como pretensa solução para a violência de gênero acenam com a finalidade de superação de práticas diferenciadas, arbitrárias ou discriminatórias, acenando com a realização do direito fundamental à igualdade para homens e mulheres. Mas, para atender seus desejos punitivos, não hesitam em, paradoxalmente, aplaudir as próprias práticas diferenciadas, arbitrárias e dis­criminatórias que suprimem direitos fundamentais.

Na Lei nº 11.340/2006 a indevida supressão de direitos fundamentais logo aparece na negação da isonomia, manifestada na exclusão da incidência da Lei nº 9.099/95 em hipóteses de crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher (artigo 41) ou na vedação da aplicação de penas de prestação pecuniária e de substituição da pena privativa de liberdade que implique o pagamento isolado de multa (artigo 17).

O princípio da isonomia implica que o mesmo tratamento seja dado e os mesmo direitos sejam reconhecidos a todos que estejam em igualdade de condições e situações. A particularidade de uma determinada infração penal retratar uma violência de gênero não é um diferencial quando se cuida de institutos relacionados à dimensão do potencial ofensivo da infração penal ou quando se cuida do modo de execução da pena concretamente imposta, não se autorizando, assim, por essa irrelevante particularidade, a desigualdade de tratamento. A dimensão de uma infração penal que a faz ser identificável como de menor potencial ofensivo ou de médio potencial ofensivo é determinada pela Lei nº 9.099/95 com base tão somente na medida das penas máxima ou mínima abstratamente cominadas. Trata-se aqui de lei geral imperativamente aplicável a todos que se encontrem na situação por ela definida, não estando autorizada a desigualdade de tratamento entre pessoas a quem seja atribuída prática de infrações penais que, definidas em regras que a elas cominam penas máximas ou mínimas de igual quantidade, apresentam igual dimensão de ofensividade. No que concerne à dimensão de seu potencial ofensivo, uma infração penal retratando violência de gênero a que cominada pena máxima de dois anos não se distingue de quaisquer outras infrações penais a que cominadas iguais penas máximas. Todas se identificam, em sua igual natureza de infrações penais de menor potencial ofensivo, pela quantidade das penas que lhes são abstratamente cominadas e todos seus apontados autores igualmente se identificam na igualdade de condições e situações em que se encontram.

A obediência ao princípio da isonomia impõe que a aplicabilidade da composição civil e da impropriamente chamada “transação” (artigos 74 e 76 da Lei nº 9.099/95) se estenda a todo e qualquer processo, em que deduzida pretensão punitiva fundada na alegada prática de qualquer infração penal a que cominada pena máxima não superior a dois anos, da mesma forma que a aplicabilidade da suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei nº 9.099/95) há de alcançar todo e qualquer processo, em que deduzida pretensão punitiva fundada na alegada prática de quaisquer infrações penais a que cominada pena mínima igual ou inferior a um ano.

Assim também a substituição da pena privativa de liberdade há de se reger pelas regras gerais vindas nos artigos 43 a 48 do Código Penal, que estabelecem requisitos — pena não superior a quatro anos em crimes dolosos; ausência de violência ou grave ameaça à pessoa; ausência de “reincidência específica”; circunstâncias favoráveis indicativas de menor medida da culpabilidade — que nada têm a ver com o tipo de crime reconhecido na sentença. Atendidos tais requisitos, somente as circunstâncias do caso concreto, a serem consideradas pe­lo juiz no momento da aplicação da pe­na, é que poderão dizer da maior ou menor conveniência da escolha de uma ou outra das penas pecuniárias ou restritivas de direitos elencadas naquelas regras, não sendo cabíveis exclusões antecipadas, ditadas pela mera definição da infração penal abstratamente dada pela regra tipificadora.

No afã de superproteger a mulher, a Lei nº 11.340/2006 não hesita em violar o direito fundamental de crianças e adolescentes à convivência familiar.

Ao lado de medidas que impõem o afastamento do convívio com a ofendida e testemunhas do apontado autor do alegado crime retratando violência de gênero (incisos I a III do artigo 22) — medidas que, vale ressaltar, têm natureza cautelar, sendo aplicáveis unicamente para assegurar os meios e fins de processo em que se busca ou se irá buscar a realização da pretensão punitiva fundada na alegada prática do crime configurador da violência de gênero, sua imposição assim se condicionando à demonstração da presença de fatos demonstrativos de que a proximidade do apontado autor de um tal crime com a ofendida ou com testemunhas estaria a impedir sua livre manifestação, assim constituindo um risco ao normal desenvolvimento do processo —, a Lei nº 11.340/2006 trata de matéria cível, incluindo dentre as medidas protetivas de urgência a restrição ou a suspensão de visitas a “dependentes menores” e a prestação de alimentos provisionais ou provisórios (incisos IV e V do artigo 22).

A restrição ou suspensão de visitas a filhos viola o direito à convivência familiar, assegurado pela Constituição Federal brasileira (caput do artigo 227) e pela Convenção sobre os Direitos da Criança (§ 3º do artigo 9º), esta expressamente enunciando o direito da criança que esteja separada de um ou de ambos os pais de manter regularmente relações pessoais e contato direto com ambos. Ao pretender suprimir tal direito, a Lei nº 11.340/2006 ainda desconsidera a vontade da criança ou do adolescente. Preocupando-se apenas com a audição de “equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar”, viola regras vindas nos §§ 1º e 2º do artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança, que asseguram à criança, que for capaz de formar seus próprios pontos de vista, o direito de exprimir suas opiniões livremente sobre todas as matérias que lhe forem atinentes, levando-se devidamente em conta suas opiniões em função de sua idade e maturidade, para esse fim, devendo lhe ser dada oportunidade de ser ouvida em qualquer procedimento judicial ou administrativo que lhe diga respeito.

Mas, o paradoxal comportamento de mulheres e homens entusiastas do rigor penal como pretensa solução para a violência de gênero não se esgota no aplauso a essas exemplares violações de princípios e normas assentados nas declarações universais de direitos e nas Constituições democráticas. Para atender seus desejos punitivos vão além, aplaudindo até mesmo regras que, paradoxalmente, discriminam as próprias mulheres.

Eloqüente exemplo da discriminatória superproteção à mulher encontra-se na regra do artigo 16 da Lei nº 11.340/2006, que estabelece que a renúncia à representação só poderá se dar perante o juiz, em audiência especialmente designada para tal fim e ouvido o Ministério Público. A mulher passa a ser assim objetivamente inferiorizada, ocupando uma posição passiva e vitimizadora, tratada como alguém incapaz de tomar decisões por si própria.

Na inspiradora legislação espanhola, o descumprimento de medidas de proteção, análogas às previstas na nova lei brasileira, conduz à configuração do quebran­ta­miento de condena (artigo 468, 2 do Código Penal espanhol), que, incluído dentre os crimes contra a administração da justiça, é reconhecível independentemente ou mesmo contrariamente à vontade da mulher em nome de cuja proteção são decretadas as descumpridas medidas, o que pode implicar na absurda situação de se privar a própria mulher de prosseguir ou retomar a convivência com o apontado autor da alegada violência de gênero, ou até mesmo em imputação a ela da prática daquele mesmo crime de quebranta­miento de condena, na qualidade de partícipe.

É preciso sempre ter cuidado com mecanismos que, sob o pretexto de tutelar ou proteger determinados grupos de pessoas consideradas mais frágeis ou mais vulneráveis, acabam por inferiorizar tais grupos, acabando por instrumentalizar a materialização de concepções discriminatórias.

A proibição de uma conduta que atenta contra a pessoa não pode servir para tolher, ainda que indiretamente, a liberdade dessa mesma pessoa que a norma pretende proteger. A realização de direitos fundamentais evidentemente não convive com a contrariedade aos anseios e aos direitos dos próprios titulares dos bens destinatários da tutela jurídica.

Quando se insiste em acusar da prática de um crime e ameaçar com uma pena o parceiro da mulher, contra a sua vontade, está se subtraindo dela, formalmente dita ofendida, seu direito e seu anseio a livremente se relacionar com aquele parceiro por ela escolhido. Isto significa negar-lhe o direito à liberdade de que é titular, para tratá-la como se coisa fosse, submetida à vontade de agentes do Estado que, inferiorizando-a e vitimizando-a, pretendem saber o que seria melhor para ela, pretendendo punir o homem com quem ela quer se relacionar — e sua escolha há de ser respeitada, pouco importando se o escolhido é ou não um “agressor” — ou que, pelo menos, não deseja que seja punido.

O enfrentamento da violência de gênero, a superação dos resquícios patriarcais, o fim desta ou de qualquer outra forma de discriminação, vale sempre repetir, não se darão através da sempre enganosa, dolorosa e danosa intervenção do sistema penal. É preciso buscar instrumentos mais eficazes e menos nocivos do que o fácil, simplista e meramente simbólico apelo à intervenção do sistema penal, que, além de não realizar suas funções explícitas de proteção de bens jurídicos e evitação de condutas danosas, além de não solucionar conflitos, ainda produz, paralelamente à injustiça decorrente da seletividade inerente à sua operacionalidade, um grande volume de sofrimento e de dor, estigmatizando, privando da liberdade e alimentando diversas formas de violência.

O efetivo rompimento com tendên­cias criminalizadoras, sejam as sustentadas nos discursos de lei e ordem, sejam as apresentadas sob uma ótica supostamente progressista, é parte indispensável do compromisso com a superação das relações de desigualdade, de dominação, de exclusão. A repressão penal, qualquer que seja sua direção, em nada pode contribuir para o reconhecimento e garantia de direitos fundamentais, tampouco podendo trazer qualquer contribuição para a superação de preconceitos ou discriminações, até porque preconceitos e discriminações estão na base da própria idéia de punição exemplificativa, que informa e sustenta o sistema penal.

Maria Lúcia Karam
Juíza de Direito aposentada



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