Mariângela Gama de Magalhães Gomes
André Pires de Andrade Kehdi, Andréa Cristina D’Angelo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira e Ra
A Suprema Corte dos Estados Unidos, em 29 de junho de 2006, no julgamento do caso Hamdam v. Rumsfeld, decidiu que as comissões militares criadas pelo Governo Bush eram ilegais por carência de autorização expressa do Congresso Nacional, e violadoras também do direito internacional e da legislação militar norte-americana. Tais comissões militares, formadas depois da destruição das Torres Gêmeas, tinham por finalidade estrita julgar os estrangeiros confinados em Guantánamo e considerados inimigos combatentes ilegais, na guerra movida contra o terrorismo.
Para remover esse obstáculo judicial, o Presidente Bush, inspirado no modelo anterior, mas com acréscimos extremamente nocivos aos direitos fundamentais da pessoa humana, enviou ao Congresso Americano projeto de lei, no qual propôs a criação de novas comissões militares com o mesmo objetivo. Tal projeto, que mereceu críticas severas de organizações de defesa de direitos humanos, acabou aprovado sem modificações mais aprofundadas, nas duas Casas do Congresso Americano, nos dias 28 e 29 de setembro de 2006, dando origem ao Military Comissions Act 2006.
Poderia indagar-se: a esta altura qual o interesse que essa legislação pode provocar além dos limites geográficos norte-americanos? A resposta não demanda muitas explicações. No mundo globalizado, tudo pode ocorrer no país que tem a hegemonia no campo econômico, político, cultural e, sobretudo, militar, importa a todos os cidadãos que vivam fora dele, máxime quando essa nação “superior” adotou, em nível internacional e a pretexto de garantir sua própria segurança, a estratégia da guerra preventiva. Se algum interesse norte-americano — qualquer que seja a sua natureza — sofrer agravo em algum lugar do globo terrestre, têm os Estados Unidos o direito de intervir para preservar sua segurança. Logo, toda a legislação norte-americana nessa matéria passa a ter um significado especial, na medida em que, de um lado, possa entrar em conflito com direitos humanos e liberdades fundamentais e, de outro, esteja dotada de alta carga de pressão, idônea a provocar reflexos em países emergentes atacados da irresistível capacidade de imitação.
Não se tem aqui o propósito de analisar a nova legislação na sua totalidade, mas apenas de pôr em destaque alguns de seus artigos. A nova lei amplia o poder do Presidente George W. Bush na definição do conceito de inimigo combatente ilegal. Não trata apenas de estrangeiro suspeito de prática de atos de terrorismo: inclui também quem, estrangeiro ou nacional, deu apoio material a uma organização terrorista. A desmotivada e subjetiva capitulação presidencial acarreta, de imediato, três conseqüências: o detido não terá tempo definido de prisão cautelar; não poderá questionar-lhe a legalidade por não ter acesso ao habeas corpus, e será julgado, com até possibilidade de ser condenado à morte, por uma comissão militar de exceção vinculada ao Poder Executivo, e não por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido pela legislação militar americana. Mas não é só. Ao Presidente Bush foi ainda atribuído o poder exclusivo e secreto de determinar o que constitui uma “técnica abusiva” de interrogatório. Tem ele autoridade para interpretar o significado e a aplicação das Convenções de Genebra, promulgando disposições administrativas sobre violações das obrigações assumidas, desde que elas não representem graves infrações. E no rol das infrações menos graves, o Governo Bush já fez uso de métodos como o isolamento de mais de cento e cinqüenta dias em cela permanentemente iluminada, interrogatórios durante largo espaço de tempo (de 18 a 20 horas diárias), a privação de sono por cinqüenta dias, o uso de hipotermia, simulacros de afogamento, exploração de fobias pessoais, desnudamento dos detentos, abusos físicos, inclusive sexuais, etc. Em resumo, a nova legislação legaliza a prisão arbitrária e a tortura.
Se tudo isso já não bastasse, o Military Comissions Act 2006 impede aos tribunais americanos o reconhecimento, em relação aos agentes estadunidenses, de violações anteriormente praticadas em desrespeito ao art. 3º das Convenções de Genebra, o que significa, por sua aplicação retroativa, uma verdadeira anistia pelas torturas executadas em Abu Ghraib, em Guantánamo, no Afeganistão e em tantos outros centros de detenção norte-americanos espalhados pelo mundo.
A breve análise dessa desastrosa lei põe à mostra não a presença de um Estado respeitoso dos direitos humanos, das garantias individuais e das liberdades fundamentais, mas sim de um Estado prepotente, autoritário, policial e invasor. A versão atual dos Estados Unidos, montada sobre a luta sem quartel e sem escrúpulos ao terrorismo, desmente sua tradição histórica de defensor dos valores democráticos e dos direitos humanos e o iguala a outros tantos países que se destacam pelas marcas da violência e do próprio terror. Os efeitos da mudança dos caminhos adotados pelos Estados Unidos influenciam a ordem internacional, e o mundo começa a caminhar às avessas, tomando direções perturbadoras para a paz e para a convivência entre os povos. Não seria caso de responder afirmativamente a indagação de Eduardo Galeano: “Si el mundo está, como ahora está, patas arriba, ¿no habría que darlo vuelta, para que pueda pararse sobre sus pies?”.
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